Itália: Livro
Recente Revela Prática da Tortura
Carlos A.
Lungarzo
AIUSA 9152711
Tortura e Coação nas Últimas Décadas
Durante a repressão da
esquerda dos anos 30 na Itália ( Anos de
Chumbo), foi constatado por numerosas organizações e pessoas individuais a
aplicação sistemática de tortura contra membros de grupos alternativos, mesmo
pacíficos, e ainda contra grupos de luta
assimétrica, como as Brigadas Vermelhas.
Já em 1977, Anistia Internacional tinha comprovado a
prática de tortura contra 13 militantes dos PAC, um dos quais, Sisinnio Bitti,
aparece relatado em seu calvário no excelente livro da época de Laura Rinaldi: Processo all’ Instruttoria. Posteriormente, AI descobriu muitos outros abusos e torturas, não apenas contra
“guerrilheiros”, mas contra cidadãos pacifistas, especialmente os membros da
seita bíblica Testemunhas de Jeová.
Em 1981, ano de seu 20º
aniversário, AI recebeu um pesado
presente de seus chefes em Londres: fazer
a primeira investigação sobre a tortura num país Europeu. A investigação
incluiu o maior team que jamais AI tinha preparado.
Nos anos seguintes, novos
livros foram publicados, e centenas de denúncias foram lançadas, numa amostra
de coragem singular, pelas próprias organizações italianas de Direitos Humanos.
A organização Antígone, que defende
os direitos humanos de pessoas sob a custódia do estado (e cujo depoimento
dirigido ao Presidente Lula foi absolutamente essencial para que este recusasse
a extradição de Cesare Battisti), estudou os casos de tortura física e
psicológica, o abandono médico e a indução ao suicídio nas prisões.
A extensão e brutalidade
das torturas fizeram com que até o complacente poder judiciário italiano
aceitasse algumas denúncias dos prisioneiros, porém, várias delas foram em
seguida arquivadas por juízes mais graduados. O juiz instrutor Giuliano Turone, que nestes dias
tornou-se popular com um livro contra Cesare Battisti, foi responsável do
arquivamento dos processos de tortura contra os PAC.
Em fim, essas torturas hoje não são um
mistério para ninguém. Entretanto, não se tinha ainda um documento baseado em
depoimento dos próprios atores.
Apesar dos anos passados, o clima de omertà
(silêncio cúmplice) se manteve rigorosamente na Itália, enquanto em outros
países agentes do estado envolvidos em tortura acabaram, por diversas razões, contando
os crimes que tinham conhecido. Apesar desse longo silencio, num novo livro
publicado em 2011, se usam os testemunhos de dois atores diferentes: o líder
combatente Antonio Savasta, um
membro das Brigadas Vermelhas, e o delegado Rino Genova, um dos líderes
do principal grupo de tortura.
“Golpe ao Coração” e sua Resenha
Nicola Rao é jornalista e escritor, nascido em Latina em 1962, autor de
vários artigos e livros sobre política, cujas simpatias pessoais são
consideradas como claramente de direita. Parece pertencer a uma direita
moderada que não demoniza os inimigos de esquerda e, portanto, sua obra sobre a
luta assimétrica não pode ser considerada parcial. De qualquer maneira, se
fosse parcial, não seria, com certeza, em favor da esquerda. Isto dá a sua
pesquisa um caráter que não se pode contestar aduzindo, como sempre, desvio ideológico do autor.
O livro reconstrói os
últimos meses de existência das Brigadas Vermelhas, após o sequestro de um
militar americano, James Dozier, num período em que as forças públicas
italianas usam pesadamente a tortura como único meio para encontrar o
esconderijo dos sequestradores, entre maio de 1981 e outubro de 1982.
Colpo al Cuore foi
editada pela casa Sperling
& Kupfer, que pertence ao grupo editor de
Silvio Berlusconi, e apareceu no começo de
outubro de 2011, tem 208 pp., e IBSN 978882005126.
Logo
de aparecer, o livro foi resenhado por vários jornais e magazines, mas temos
escolhido para apresentar ao leitor a resenha escrita por Aldo Cazzullo,
colunista do prestigioso jornal Corriere
della Sera, que tampouco pode ser qualificado de simpatizante da luta
armada.
Em
síntese: Um livro escritor por autor de direita, resenhado por um jornal de
centro, reproduz as confissões de um
guerrilheiro e de um policial, nas quais se reconhece o uso sistemático da tortura na democracia
italiana!
Aos
alcoviteiros da máfia peninsular sempre ficará um recurso: ambos, autor e
resenhistas mentem, como, segundo
eles, mentia Anistia Internacional, Antígone, HR Watch, a Comissão de DH da
ONU, a Corte Europeia, Oxfam, e todo o mundo que não simpatiza com o fascismo-stalinismo.
Alguns Conceitos Prévios
Para os pouco
familiarizados com os crimes de estado nos anos de Chumbo, muitas das menções
que aparecem nesta resenha do Corriere podem
não ser inteligíveis. Vou esclarecendo alguns conceitos na lista que segue, exatamente
na ordem de aparição do texto do jornal.
Os grifos são do próprio
jornal.
Em geral, as Brigadas Vermelhas serão indicadas pelas
iniciais BR e não “BV” por causa do
nome em italiano “Brigate Rosse”. A sigla
BR é mais conhecida inclusive por
leitores de outras línguas.
Antonio SAVASTA ¾ Foi o líder da seção do Veneto das BR e um dos organizadores
do sequestro do militar americano DOZIER. Transformado
em delator, após ferozes torturas, descreveu a organização interna e as
conexões externas das BR. Entretanto, nunca tinha falado sobre as torturas, por
medo a ser executado. Mas, neste livro de
RAO, pela primeira vez, ele revela a existência de tormentos.
James DOZIER ¾ James Lee Dozier (nascido em 1931) era vicecomandante
da aliança Atlântica, o organismo intercontinental que incubou o famigerado
plano megaterrorista Operação Gladio,
cujo objetivo na Itália era produzir megamassacres (com até 85 mortos), para
colocar a culpa na esquerda. Dozier foi sequestrado pelas BR em dezembro de 1981. Esta foi a primeira vez na história
americana que um militar de alto rango era capturado por um grupo de
resistência anti-imperialista. Tanto italianos como americanos ficaram
desesperados pelo que parecia uma amostra de capacidade de luta contra a
suposta invencibilidade ianque-neofascista. Portanto, os americanos exigiram, e
os italianos realizaram, a maior campanha de torturas já vista em algum país
Europeu após a Segunda Guerra.
NOCS ¾ Acrônimo de Nucleo Operativo
Centrale di Sicurezza, uma esquadra
de choque, tortura e extermínio pertencente ao escritório de Anti-Terrorismo do
departamento da Polizia di Stato.
Caso Di Lenardo ¾ Cesare Di
Lenardo foi membro das BR que participou no sequestro do militar americano. Di
Lenardo foi barbaramente torturado no pior estilo das ditaduras latino-americanas,
o que contribuiu ao desprestígio dos NOCS.
Céltica ¾ De croce céltica (cruz
céltica). Cruz utilizada por algumas seitas cristãs primitivas, e depois adoptada
pelo fascismo e, especialmente, por grupos neofascistas após a segunda Guerra
para enfatizar sua fraternidade e afinidades com o cristianismo.
Esquadrão Móvel ¾ Esquadrão de ataque da Polícia de
estado que se movimenta em viaturas. Foi usado durante os Anos de Chumbo quase
exclusivamente contra os movimentos de esquerda.
NAR ¾ Núcleos Armados Revolucionários,
organização neofascista com perfil quase exclusivamente terrorista, que atou em
vários megaatentados (como o da estação de Bolonha, que matou 85 pessoas e
feriu mais de 200). Giorgio Vale foi um dos fundadores e chefes dessa
organização. Apesar de que os atentados megaterroristas foram planejados pela
OTAN junto com os governos italianos e o neofascismo, o atentado de Bolonha
(que aconteceu em dezembro de 1980) cobrou uma quantidade inusitada de vítimas,
e recebeu críticas de alguns setores fascistas que tinham perdido parentes no
atentado. Além disso, os verdadeiros executores se supõem que foram altos
quadros fascistas, que foram “cobertos” com a acusação de outros menores, como
Mambro e Fioravanti, que atuaram como “laranjas”. O livro de RAO não se detém
sobre isto, mas várias fontes acham que Giorgio
Vale foi morto pela polícia como queima
de arquivo, aproveitando o massacre contra a esquerda, o que, de passagem,
criava um clima de confusão.
Salvatore Genova ¾ Chefe policial
que capturou Savasta.
Giovanni Senzani ¾ Um dos líderes das BR, nascido em
1942.
Coronel Varisco ¾ Coronel dos Carabinieri (Polícia Militar) na época do sequestro de Dozier.
Engenheiro Giuseppe Taliercio ¾ Diretor do
oligopólio MONTEDISON, executado
pelas BR com o argumento de que seria, como muitos outros altos executivos na
Itália e também nas ditaduras latino-americanas, financiador da repressão e das
torturas. Não conheço provas desta acusação no caso particular de Taliercio.
Asinara ¾ Ilha sarda onde existia um presídio.
Bad’ e Carros ¾ Nome de um presídio na província de Nuoro (Núgoro) na
Sardegna. O nome significa, em sardo, “passagem (vau) das carroças”.
Barbagia ¾ Região
montanhosa da Sardegna central.
Potere Operaio ¾ Movimento de esquerda alternativo, que floresceu na década de 70, que
procurava difundir a cultura mais avançada na classe operaria e se diferenciava
dos grupos militaristas, como BR, e dos burocráticos, como o PCI
MSI ¾ Movimento Social Italiano. Nome que adoptou o Partido Nacional
Fascista em 1947, após a Constituição proibir (art. trans. 12º)
partidos que tiveram o nome ou o símbolo do fascismo. O MSI gerou numerosos grupos
fascistas com diversas estratégias.
Mario Zicchieri ¾ Adolescente membro do MSI, morto em
1975 pelas BR em Prenestino, bairro de Roma.
Morucci, Maccari, Seghetti ¾ Militantes
das BR, alguns deles tendo passado depois a uma fração armada de Potere Operaio.
Autonomos ¾ Nome genérico dado à esquerda alternativa, que incluía Lotta Continua,
Potere Operaio, Autonomia Operaia e outros grupos.
Ano 1977 romano ¾ Foi um ano de
grandes revoltas sociais em Roma, e de apogeu dos movimentos sociais e
culturais da esquerda. Também foi o ano em que PCI assumiu explicitamente a
repressão em aliança com a direita.
A Resenha do Corriere
della Sera
CORRIERE DELLA SERA
10 outubro 2011 - Pagina 27
Os últimos 500 dias do grupo
de terroristas contado em “Golpe ao Coração” de Rao. Fala o delator Savasta:
“Dozier estava para ser morto”
Aquele
Esquadrão Especial contra os Brigadistas
Os chamavam
os “Quatro da Ave Maria”. As Revelações de um ex policial.
Na Itália de há 30 anos, na
culminação do terrorismo e, ao mesmo tempo, no começo de seu final, um
esquadrão de torturadores se movia entre os cárceres. Não os agentes do NOCS,
acabados pelo processo do caso Di Lenardo; um esquadrão de profissionais
especializado em extrair indicações e confissões. Eles foram os que capturaram Antonio
Savasta. Os que encontraram o escondereijo de Dozier. Os que desmantelaram a colônia
napolitana. E os que aplicaram aos BR aquele “golpe ao coração” que no decorrer
de poucos meses decretou seu final.
Intitula-se exatamente Golpe ao Coração: dos arrependidos aos
“métodos especiais”, como o Estado matou as BR. A história nunca contada o ensaio-pesquisa de Nicola Rao que amanhã Sperling & Kupfer entrega nas livrarias.
Pela primeira vez, Savasta fala. Também fala o comissário Genova, que o
capturou, e fala o misterioso funcionário do UCIGOS (l' Ufficio centrale per le investigazioni generali e per le operazioni Speciali
= O
escritório para as investigações gerais e para as operações especiais, um
organismo da polícia do Estado que foi operativo dos Anos de Chumbo), indicado pelos
seus colegas com o significativo nome de “professor De Tormentis” - que contribuiu de maneira
determinante a destruir as BR, praticando um estilo de waterboarding, a tortura do sufocamento com água.
Na estória que a gíria da época
batizou com o nome de filme B, o
esquadrão era chamado de Os Quatro da
Ave Maria, que nos desloca a uma época dramática de nosso passado recente,
que o autor indaga com o mesmo método que seu livro de sucesso, dedicado,
inversamente, à extrema direita, A Chama
e a Céltica. Constituída logo após a morte de Moro, o esquadrão do UCIGOS
era composto de ex oficiais do Esquadrão Móvel de Nápoles, que tinham conhecido
o “professor De Tormentis”, quando estava na liderança daquele escritório,
entre o fim dos anos 60 e o início dos 70. O grupo de ação, mantido durante
alguns anos em descanso, foi retornado à atividade quando se fez mais violento
o ataque das BR, com o sequestro do General Dozier, e as pressões de Washington
sobre a Itália.
Graças aos métodos especiais daquele
esquadrão, no desenrolar de poucas semanas foram desmanteladas as duas almas das BR. Preso Senzani, chefe do
“Partido Guerrilha”, individualizado e liberado Dozier, prisioneiro do “Partido
comunista combatente” (PCC).
Savasta decide falar e destruir, com
suas revelações, o PCC, fazendo prender dezenas de “rivais”. Os “métodos
especiais” são logo introduzidos também em Nápoles, na primavera-verão de 1982,
para capturar os sobreviventes da última coluna BR ainda em atividade. Sempre
com estes “tratamentos”, a polícia chega à guarida romana onde se encontra o
terrorista dos NAR, o Giorgio Vale, que morre durante o tiroteio com os
agentes. O delegado Genova (junto com outros funcionários) explica ter assistido
pessoalmente, durante a investigação do sequestro Dozier, a dois “tratamentos”
em Verona - o segundo consente em arrancar a
indicação da guarida onde está recluído o general americano - e outro tratamento a Nápoles. O “professor De Tormentis”
confirma, e conta de ter-se ocupado também de Enrico Triaca, o tipógrafo das BR
preso após a morte de Moro, e de dois brigadistas que lhe indicaram onde estava
escondido Senzani. Logo está o testemunho di Savasta.
Algumas páginas são, às vezes,
terríveis. O arrependido conta como matou o coronel Varisco. E como participou
de outras ações: o sequestro e o assassinato do engenheiro Taliercio; a viagem
até a Sardenha para liberar o núcleo histórico das BR detido em Asinara e na
Bad’ e Carros, com a cumplicidade de bandidos-pastores, a travessia noturna na
Barbagia, o tiroteio com os carabineiros e com a polícia.
Com revelações inéditas sobre o
sequestro de Dozier, começando pela reação do general no momento da captura,
quando com socos e cabeçadas estava neutralizando os dois brigadistas que
tinham entrado na casa, e só ficou quieto quando viu Savasta apontar a pistola
à cabeça da esposa. Nem sequer a blitz dos
NOCS aconteceu na realidade como foi contado: os brigadistas perceberam a
chegada dos agentes; um deles, como prevê o protocolo das BR, mira com a
pistola a têmpora do refém; depois se produz um átimo de dúvida, não há coragem
para ir bem até o fundo, e os homens da divisão especial se arriscam a liberar
o general; mas a operação, que passou à história como um exemplo de ação
fulminante, esteve perto de transformar-se em derrota.
Savasta conta também as origens do
terrorismo. E indica num grupo “proto-brigadista” do ex Potere Operaio, os responsáveis pela morte do jovem militante do
MSI Mario Zicchieri em Prenestino. Já Savasta tinha acusado Morucci, Maccari e
Seghetti, que tinham sido absolvidos.
Todavia, fornece novos detalhes. Por
exemplo, conta que, na tarde do homicídio de Zicchieri, Seghetti ordenou a ele
e a outro companheiro ficar na casa e sintonizar a rádio frequência da polícia para
verificar as posições e comunicações das forças da ordem. E acrescenta, sem dar
o nome, que um dos componentes do grupo armado era um companheiro morto logo
depois num acidente de trânsito.
Da discussão interna da coluna romana
sobre o perigo representado pelos fascistas da seção Acca Larenzia, de
Tuscolano e de Cinecittà, surge o assalto ao comitê do MSI que acabou em
tragédia. Savasta conta sobre as armas distribuídas pelas BR aos Autonomos
durante as manifestações do ano 1977 romano. E sobre a investigação que conduz
sobre Aldo Moro, que inicialmente devia ser morto ao interior da universidade,
como depois teria acontecido a Bachelet.
E ainda: o dia-a-dia ao interior da
organização, os medos dos brigadistas, o terror das mulheres de serem
torturadas e estupradas, as traições, os amores, as antipatias. E sua relação
conflitiva com seu pai: um agente de polícia.
Aldo Cazzullo
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