terça-feira, 25 de outubro de 2011

ITÁLIA: LIVRO RECENTE REVELA PRÁTICA DA TORTURA




Itália: Livro Recente Revela Prática da Tortura

Carlos A. Lungarzo
AIUSA 9152711

Tortura e Coação nas Últimas Décadas

Durante a repressão da esquerda dos anos 30 na Itália ( Anos de Chumbo), foi constatado por numerosas organizações e pessoas individuais a aplicação sistemática de tortura contra membros de grupos alternativos, mesmo pacíficos, e ainda contra grupos de luta assimétrica, como as Brigadas Vermelhas.
Já em 1977, Anistia Internacional tinha comprovado a prática de tortura contra 13 militantes dos PAC, um dos quais, Sisinnio Bitti, aparece relatado em seu calvário no excelente livro da época de Laura Rinaldi: Processo all’ Instruttoria. Posteriormente, AI descobriu muitos outros abusos e torturas, não apenas contra “guerrilheiros”, mas contra cidadãos pacifistas, especialmente os membros da seita bíblica Testemunhas de Jeová.
Em 1981, ano de seu 20º aniversário, AI recebeu um pesado presente de seus chefes em Londres: fazer a primeira investigação sobre a tortura num país Europeu. A investigação incluiu o maior team que jamais AI tinha preparado.
Nos anos seguintes, novos livros foram publicados, e centenas de denúncias foram lançadas, numa amostra de coragem singular, pelas próprias organizações italianas de Direitos Humanos. A organização Antígone, que defende os direitos humanos de pessoas sob a custódia do estado (e cujo depoimento dirigido ao Presidente Lula foi absolutamente essencial para que este recusasse a extradição de Cesare Battisti), estudou os casos de tortura física e psicológica, o abandono médico e a indução ao suicídio nas prisões.
A extensão e brutalidade das torturas fizeram com que até o complacente poder judiciário italiano aceitasse algumas denúncias dos prisioneiros, porém, várias delas foram em seguida arquivadas por juízes mais graduados. O juiz instrutor Giuliano Turone, que nestes dias tornou-se popular com um livro contra Cesare Battisti, foi responsável do arquivamento dos processos de tortura contra os PAC.
 Em fim, essas torturas hoje não são um mistério para ninguém. Entretanto, não se tinha ainda um documento baseado em depoimento dos próprios atores. Apesar dos anos passados, o clima de omertà (silêncio cúmplice) se manteve rigorosamente na Itália, enquanto em outros países agentes do estado envolvidos em tortura acabaram, por diversas razões, contando os crimes que tinham conhecido. Apesar desse longo silencio, num novo livro publicado em 2011, se usam os testemunhos de dois atores diferentes: o líder combatente Antonio Savasta, um membro das Brigadas Vermelhas, e o delegado Rino Genova, um dos líderes do principal grupo de tortura.

“Golpe ao Coração” e sua Resenha

Nicola Rao é jornalista e escritor, nascido em Latina em 1962, autor de vários artigos e livros sobre política, cujas simpatias pessoais são consideradas como claramente de direita. Parece pertencer a uma direita moderada que não demoniza os inimigos de esquerda e, portanto, sua obra sobre a luta assimétrica não pode ser considerada parcial. De qualquer maneira, se fosse parcial, não seria, com certeza, em favor da esquerda. Isto dá a sua pesquisa um caráter que não se pode contestar aduzindo, como sempre, desvio ideológico do autor.
O livro reconstrói os últimos meses de existência das Brigadas Vermelhas, após o sequestro de um militar americano, James Dozier, num período em que as forças públicas italianas usam pesadamente a tortura como único meio para encontrar o esconderijo dos sequestradores, entre maio de 1981 e outubro de 1982.
Colpo al Cuore foi editada pela casa Sperling & Kupfer, que pertence ao grupo editor de Silvio Berlusconi, e apareceu no começo de  outubro de 2011, tem 208 pp., e IBSN 978882005126.
Logo de aparecer, o livro foi resenhado por vários jornais e magazines, mas temos escolhido para apresentar ao leitor a resenha escrita por Aldo Cazzullo, colunista do prestigioso jornal Corriere della Sera, que tampouco pode ser qualificado de simpatizante da luta armada.
Em síntese: Um livro escritor por autor de direita, resenhado por um jornal de centro, reproduz as confissões de um guerrilheiro e de um policial, nas quais se reconhece o uso sistemático da tortura na democracia italiana!
Aos alcoviteiros da máfia peninsular sempre ficará um recurso: ambos, autor e resenhistas mentem, como, segundo eles, mentia Anistia Internacional, Antígone, HR Watch, a Comissão de DH da ONU, a Corte Europeia, Oxfam, e todo o mundo que não simpatiza com o fascismo-stalinismo.

Alguns Conceitos Prévios

Para os pouco familiarizados com os crimes de estado nos anos de Chumbo, muitas das menções que aparecem nesta resenha do Corriere podem não ser inteligíveis. Vou esclarecendo alguns conceitos na lista que segue, exatamente na ordem de aparição do texto do jornal.
Os grifos são do próprio jornal.
Em geral, as Brigadas Vermelhas serão indicadas pelas iniciais BR e não “BV” por causa do nome em italiano “Brigate Rosse”.  A sigla BR é mais conhecida inclusive por leitores de outras línguas.
Antonio SAVASTA ¾  Foi o líder da seção do Veneto das BR e um dos organizadores do sequestro do militar americano DOZIER. Transformado em delator, após ferozes torturas, descreveu a organização interna e as conexões externas das BR. Entretanto, nunca tinha falado sobre as torturas, por medo a ser executado. Mas, neste livro de RAO, pela primeira vez, ele revela a existência de tormentos.
James DOZIER ¾  James Lee Dozier (nascido em 1931) era vicecomandante da aliança Atlântica, o organismo intercontinental que incubou o famigerado plano megaterrorista Operação Gladio, cujo objetivo na Itália era produzir megamassacres (com até 85 mortos), para colocar a culpa na esquerda. Dozier foi sequestrado pelas BR em dezembro de 1981. Esta foi a primeira vez na história americana que um militar de alto rango era capturado por um grupo de resistência anti-imperialista. Tanto italianos como americanos ficaram desesperados pelo que parecia uma amostra de capacidade de luta contra a suposta invencibilidade ianque-neofascista. Portanto, os americanos exigiram, e os italianos realizaram, a maior campanha de torturas já vista em algum país Europeu após a Segunda Guerra.
NOCS ¾ Acrônimo de Nucleo Operativo Centrale di Sicurezza, uma esquadra de choque, tortura e extermínio pertencente ao escritório de Anti-Terrorismo do departamento da Polizia di Stato.
Caso Di Lenardo ¾  Cesare Di Lenardo foi membro das BR que participou no sequestro do militar americano. Di Lenardo foi barbaramente torturado no pior estilo das ditaduras latino-americanas, o que contribuiu ao desprestígio dos NOCS.
Céltica ¾ De croce céltica (cruz céltica). Cruz utilizada por algumas seitas cristãs primitivas, e depois adoptada pelo fascismo e, especialmente, por grupos neofascistas após a segunda Guerra para enfatizar sua fraternidade e afinidades com o cristianismo.
Esquadrão Móvel ¾ Esquadrão de ataque da Polícia de estado que se movimenta em viaturas. Foi usado durante os Anos de Chumbo quase exclusivamente contra os movimentos de esquerda.
NAR ¾ Núcleos Armados Revolucionários, organização neofascista com perfil quase exclusivamente terrorista, que atou em vários megaatentados (como o da estação de Bolonha, que matou 85 pessoas e feriu mais de 200). Giorgio Vale foi um dos fundadores e chefes dessa organização. Apesar de que os atentados megaterroristas foram planejados pela OTAN junto com os governos italianos e o neofascismo, o atentado de Bolonha (que aconteceu em dezembro de 1980) cobrou uma quantidade inusitada de vítimas, e recebeu críticas de alguns setores fascistas que tinham perdido parentes no atentado. Além disso, os verdadeiros executores se supõem que foram altos quadros fascistas, que foram “cobertos” com a acusação de outros menores, como Mambro e Fioravanti, que atuaram como “laranjas”. O livro de RAO não se detém sobre isto, mas várias fontes acham que Giorgio Vale foi morto pela polícia como queima de arquivo, aproveitando o massacre contra a esquerda, o que, de passagem, criava um clima de confusão.
Salvatore Genova ¾ Chefe policial que capturou Savasta.
Giovanni Senzani ¾ Um dos líderes das BR, nascido em 1942.
Coronel Varisco ¾ Coronel dos Carabinieri (Polícia Militar) na época do sequestro de Dozier.
Engenheiro Giuseppe Taliercio ¾ Diretor do oligopólio MONTEDISON, executado pelas BR com o argumento de que seria, como muitos outros altos executivos na Itália e também nas ditaduras latino-americanas, financiador da repressão e das torturas. Não conheço provas desta acusação no caso particular de Taliercio.
Asinara ¾  Ilha sarda onde existia um presídio.
Bad’ e Carros ¾  Nome de um presídio na província de Nuoro (Núgoro) na Sardegna. O nome significa, em sardo, “passagem (vau) das carroças”.
Barbagia ¾  Região montanhosa da Sardegna central.
Potere Operaio ¾ Movimento de esquerda alternativo, que floresceu na década de 70, que procurava difundir a cultura mais avançada na classe operaria e se diferenciava dos grupos militaristas, como BR, e dos burocráticos, como o PCI
MSI ¾ Movimento Social Italiano. Nome que adoptou o Partido Nacional Fascista em 1947, após a Constituição proibir (art. trans. 12º) partidos que tiveram o nome ou o símbolo do fascismo. O MSI gerou numerosos grupos fascistas com diversas estratégias.
Mario Zicchieri ¾  Adolescente membro do MSI, morto em 1975 pelas BR em Prenestino, bairro de Roma.
Morucci, Maccari, Seghetti ¾ Militantes das BR, alguns deles tendo passado depois a uma fração armada de Potere Operaio.   
Autonomos ¾ Nome genérico dado à esquerda alternativa, que incluía Lotta Continua, Potere Operaio, Autonomia Operaia e outros grupos.
Ano 1977 romano ¾ Foi um ano de grandes revoltas sociais em Roma, e de apogeu dos movimentos sociais e culturais da esquerda. Também foi o ano em que PCI assumiu explicitamente a repressão em aliança com a direita.
A Resenha do Corriere della Sera

CORRIERE DELLA SERA
10 outubro 2011 - Pagina 27
Os últimos 500 dias do grupo de terroristas contado em “Golpe ao Coração” de Rao. Fala o delator Savasta: “Dozier estava para ser morto”
Aquele Esquadrão Especial contra os Brigadistas
Os chamavam os “Quatro da Ave Maria”. As Revelações de um ex policial.
Na Itália de há 30 anos, na culminação do terrorismo e, ao mesmo tempo, no começo de seu final, um esquadrão de torturadores se movia entre os cárceres. Não os agentes do NOCS, acabados pelo processo do caso Di Lenardo; um esquadrão de profissionais especializado em extrair indicações e confissões. Eles foram os que capturaram Antonio Savasta. Os que encontraram o escondereijo de Dozier. Os que desmantelaram a colônia napolitana. E os que aplicaram aos BR aquele “golpe ao coração” que no decorrer de poucos meses decretou seu final.
Intitula-se exatamente Golpe ao Coração: dos arrependidos aos “métodos especiais”, como o Estado matou as BR. A história nunca contada o ensaio-pesquisa de Nicola Rao que amanhã Sperling & Kupfer entrega nas livrarias. Pela primeira vez, Savasta fala. Também fala o comissário Genova, que o capturou, e fala o misterioso funcionário do UCIGOS (l' Ufficio centrale per le investigazioni generali e per le operazioni Speciali =  O escritório para as investigações gerais e para as operações especiais, um organismo da polícia do Estado que foi operativo dos Anos de Chumbo), indicado pelos seus colegas com o significativo nome de “professor De Tormentis” - que contribuiu de maneira determinante a destruir as BR, praticando um estilo de waterboarding, a tortura do sufocamento com água.
Na estória que a gíria da época batizou com o nome de filme B, o esquadrão era chamado de Os Quatro da Ave Maria, que nos desloca a uma época dramática de nosso passado recente, que o autor indaga com o mesmo método que seu livro de sucesso, dedicado, inversamente, à extrema direita, A Chama e a Céltica. Constituída logo após a morte de Moro, o esquadrão do UCIGOS era composto de ex oficiais do Esquadrão Móvel de Nápoles, que tinham conhecido o “professor De Tormentis”, quando estava na liderança daquele escritório, entre o fim dos anos 60 e o início dos 70. O grupo de ação, mantido durante alguns anos em descanso, foi retornado à atividade quando se fez mais violento o ataque das BR, com o sequestro do General Dozier, e as pressões de Washington sobre a Itália.
Graças aos métodos especiais daquele esquadrão, no desenrolar de poucas semanas foram desmanteladas as duas almas das BR. Preso Senzani, chefe do “Partido Guerrilha”, individualizado e liberado Dozier, prisioneiro do “Partido comunista combatente” (PCC).
Savasta decide falar e destruir, com suas revelações, o PCC, fazendo prender dezenas de “rivais”. Os “métodos especiais” são logo introduzidos também em Nápoles, na primavera-verão de 1982, para capturar os sobreviventes da última coluna BR ainda em atividade. Sempre com estes “tratamentos”, a polícia chega à guarida romana onde se encontra o terrorista dos NAR, o Giorgio Vale, que morre durante o tiroteio com os agentes. O delegado Genova (junto com outros funcionários) explica ter assistido pessoalmente, durante a investigação do sequestro Dozier, a dois “tratamentos” em Verona - o segundo consente em arrancar a indicação da guarida onde está recluído o general americano - e outro tratamento a Nápoles. O “professor De Tormentis” confirma, e conta de ter-se ocupado também de Enrico Triaca, o tipógrafo das BR preso após a morte de Moro, e de dois brigadistas que lhe indicaram onde estava escondido Senzani. Logo está o testemunho di Savasta.
Algumas páginas são, às vezes, terríveis. O arrependido conta como matou o coronel Varisco. E como participou de outras ações: o sequestro e o assassinato do engenheiro Taliercio; a viagem até a Sardenha para liberar o núcleo histórico das BR detido em Asinara e na Bad’ e Carros, com a cumplicidade de bandidos-pastores, a travessia noturna na Barbagia, o tiroteio com os carabineiros e com a polícia.
Com revelações inéditas sobre o sequestro de Dozier, começando pela reação do general no momento da captura, quando com socos e cabeçadas estava neutralizando os dois brigadistas que tinham entrado na casa, e só ficou quieto quando viu Savasta apontar a pistola à cabeça da esposa. Nem sequer a blitz dos NOCS aconteceu na realidade como foi contado: os brigadistas perceberam a chegada dos agentes; um deles, como prevê o protocolo das BR, mira com a pistola a têmpora do refém; depois se produz um átimo de dúvida, não há coragem para ir bem até o fundo, e os homens da divisão especial se arriscam a liberar o general; mas a operação, que passou à história como um exemplo de ação fulminante, esteve perto de transformar-se em derrota.
Savasta conta também as origens do terrorismo. E indica num grupo “proto-brigadista” do ex Potere Operaio, os responsáveis pela morte do jovem militante do MSI Mario Zicchieri em Prenestino. Já Savasta tinha acusado Morucci, Maccari e Seghetti, que tinham sido absolvidos.
Todavia, fornece novos detalhes. Por exemplo, conta que, na tarde do homicídio de Zicchieri, Seghetti ordenou a ele e a outro companheiro ficar na casa e sintonizar a rádio frequência da polícia para verificar as posições e comunicações das forças da ordem. E acrescenta, sem dar o nome, que um dos componentes do grupo armado era um companheiro morto logo depois num acidente de trânsito.
Da discussão interna da coluna romana sobre o perigo representado pelos fascistas da seção Acca Larenzia, de Tuscolano e de Cinecittà, surge o assalto ao comitê do MSI que acabou em tragédia. Savasta conta sobre as armas distribuídas pelas BR aos Autonomos durante as manifestações do ano 1977 romano. E sobre a investigação que conduz sobre Aldo Moro, que inicialmente devia ser morto ao interior da universidade, como depois teria acontecido a Bachelet.
E ainda: o dia-a-dia ao interior da organização, os medos dos brigadistas, o terror das mulheres de serem torturadas e estupradas, as traições, os amores, as antipatias. E sua relação conflitiva com seu pai: um agente de polícia.
Aldo Cazzullo
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