sexta-feira, 2 de julho de 2010

A SOBRINHA DO BISPO - REGINA M.A.MACHADO >> blog da Revista Espaço Acadêmico (CLIQUE AQUI)

Publicado: 09/06/2010 por Revista Espaço Acadêmico em colaborador(a)

por Regina M. A. Machado*

Na porta da catedral, os fiéis saindo, ele sorrindo, circulando o olhar, grande, suave e imponente, dando o anel a beijar, vestido de púrpura, cambraia e renda, o solidéu redondo e a mão adequada ao gesto e ao beijo.
- E você, beijava o anel?
- Nao, eu virava as costas, mas não por convicção. Seria por pudor, por não me enquadrar na cena? Má atriz, desde então, incapaz de participar da encenação geral. Estou na saída da missa na catedral nova que se via de longe, toda branca com ângulos atenuados por uma espécie de moldura amarela que lhe traçava linhas levemente barrocas. Mas quando o povo entrou e descobriu as figuras e as paredes verde sujo, foi um escândalo, que alguns resolveram caçoando, “Por fora bela viola,por dentro pão bolorento”, outros se refugiaram naquelas igrejas que a gente entendia, como a matriz velha, ou a capela do colégio, que nos envolvia os retiros e as bênçãos da tarde do mês de maio em tons desmaiados, e onde um anjo branco e dourado balançava a cabeça quando se punha esmola no cofrinho da entrada.
Foi realmente um susto, aquele verde oleoso nas paredes, a feiura esquisita das figuras, que lembravam a caipirada que vinha das fazendas nos sábados fazer compras nas lojas. A mesma cor de pele, as mesmas caras enfezadas. Não eram nem brancos nem pretos, nem mulatos nem nada, eram cor de terra. Cor de sol com poeira. Bom, o pintor era comunista, e isso apesar de ser irmão do bispo. Enfim, de repente ficou tudo muito desencontrado para os fiéis e até para os infiéis. Comunista. Só a palavra retumbava como um trovão sinistro, naqueles anos 50 da guerra fria, dos filmes no cine Éden ensinando como era o mundo e como julgar cada figura conforme fosse mais ou menos como os cavalos brancos dos mocinhos de nariz arrebitado, com a crina loira voando com o vento toda para um lado, as mocinhas de cabelo pagem e vestidos claros, rodados e esvoaçantes. Naquele tempo, os mexicanos tinham chapéus enormes e dormiam barrigudos e bigodudos em calçadas empoeiradas; os japoneses eram cruéis e perigosos; os franceses indignos de confiança, com bigodinho e boina, carregando uma eterna baguete sem papel debaixo do braço. Não que confundíssemos a realidade com os filmes, mas havia tipos assim, que não se podia admirar nem ter confiança. Então, de repente, a catedral virava o contrário do cinema e em volta do altar apareciam aquelas caras que a gente não gostava. Para qualquer lado que se olhasse enquanto se rezava, era aquela caboclada em vez dos anjos e santos de sempre, branqueados como a cidade. Não que se falasse nisso no footing da praça, mas pensava. E as famílias comentavam. E a gente perdia um pouco o pé no nosso chão aglutinante, garantia e exclusão das coroações de maio, reservadas aos anjos loiros de olhos azuis que eu não tinha, como não tinha certezas, embora achasse que tinha fé, já que era impossível não ter.
Junto com as pinturas, veio também a sobrinha do bispo, que tinha tudo isso, só que não era nenhum anjo de procissão. Ela ficou logo amiga da moça mais exibida de todas, começou a se pintar do mesmo jeito e a se vestir igual. As duas eram altas, magras, se vestiam com cores chamativas, uma loira de olhos azuis, mas não de mocinha de filme, eram olhos fuçadores e desconfiados, a outra, morena, olhos verdes de feiticeira, boca grande. Nós da cidade só clarinha e limpinha olhávamos descontentes aquele andar ondulando naquelas cores todas que elas esbanjavam. Mas a primeira sessão de cinema de domingo à noite nem pensar que começasse sem as duas terem entrado, requebrando, rindo alto, provocando nossos vestidos que ficavam com cara de reformados da primeira-comunhão e indo até lá na frente e depois voltando. Pelo meio da plateia, com o cinema inteiro olhando e ouvindo. No final, acho que até na missa ela vinha com a amiga, e a missa também só começava de verdade depois que acontecia a chegada das duas. Só que ela tirava notas boas, as melhores da classe, no nosso colégio Imaculada Conceição . A professora de história leu alto uma prova dela, que me foi um desafio, quase tão esquisita e difícil quanto as pinturas da catedral. Além disso, tinha vindo do Rio de Janeiro, tinha aquele sotaque chiado, meio chique meio enjoado, que não soava natural, mas que talvez permitisse dizer coisas que a gente nem sonhava. Sempre caçoando, acho que até do tio bispo ela caçoava.
O pintor irmão do bispo tinha coberto as partes baixas das paredes com frisas verde escuro sobre fundo verde mais claro, não sei porque tanto verde, aliás, já que segundo diziam a pintura dele queria retratar a realidade e por ali em volta era tudo marrom. As abóbadas, sim, tinham paisagens iguais às das fazendas dos arredores, com arbustos e caras conhecidas. Algumas a gente até sabia o nome, era muito esquisito aquilo, além da terra ressecada, desertada de árvores, sofrida, uns pés de café que bem se via serem da época da colheita, com os frutos vermelhos, mas o mais eram galhos caídos pelo chão, numa terra desolada. O pior mesmo eram os caboclos, gente de pé no chão, espingarda na mão, lá em cima, em volta do altar das capelas laterais. No altar-mor, devia ser o Juízo Final, uma multidão, que em vez de palmas trazia galhos de café e outras plantas conhecidas, mas era muito grande e muito alto, não dava para ver direito. Só os anjos da coroação do mês de maio, que subiam no altar para coroar Nossa Senhora, é que podiam ver de perto aquela gente e saber quem era.
Pelo menos as estátuas eram lindas, isso ninguém negava. Embora diferente da Nossa Senhora das Graças azul e branca da capela do colégio, a imagem da virgem de madeira ondulada, rosada, cheia, drapeada e quase macia de pele, essa a gente entendia, ou tinha vontade. Havia outros santos, havia um Cristo também de madeira, acho, mas só me lembro bem dessa. Vindo da Itália, a gente esperava que pelo menos o escultor, sendo do país do papa, fosse bom católico. O que é certo, é que as esculturas que ele fazia enchiam os olhos e a alma, se bem que não como os filmes; até ajudavam a rezar, melhor do que na capela do colégio. Acho que me afeiçoei à madeira por causa delas; muito mais tarde, quando pude por minha vez pegar no cinzel, nunca pus cores na madeira que trabalhava. As cores, foi a sobrinha do bispo que resguardou, as que ela trouxe, no rosto e nas roupas, e as das paredes pintadas pelo pai, pois soube que mais tarde ela abriu uma galeria de pintura.
Na década seguinte, com o país e o mundo em plena reviravolta,falou-se muito nesse bispo, líder de uma direita ultra-conservadora, defensor de um direito inalienável de propriedade sobre extensões de terra sacralizadas pelas grilagens históricas que construíram a riqueza colonial e nacional. Nessa época, em que ele catalisou o ódio dos estudantes de uma esquerda em que me situava, eu ficava à parte. Talvez por uma imprecisa gratidão, por causa das pinturas da catedral, da sobrinha adolescente colorida, do alargamento dos horizontes que isso tudo trouxe à cidade de terra branca, obrigada a se perceber rodeada da terra vermelha e exausta de todo o café que nos criara.
Muito mais tarde voltei e andei por ali tudo, reconhecendo quase todas as casas do centro que, vistas da rua, não tinham mudado tanto. O jardim de São Benedito estava um pouco mais esburacado, mas os tijolos tinham uma velhice quebrada e fincada na terra escura que me tranquilizou, mas espantou também. Nunca soube que dentro da cidade houvesse terra vermelha, fiquei imaginando que só no jardim de São Benedito, santo preto e meio pobre é que ela podia ter aflorado. De noite saímos para dar uma volta e entramos pelo portão aberto do colégio velho, meio demolido, onde só conseguimos avançar graças à luz da lua, até chegar ao pátio da capela. A ingênua gruta de Lourdes onde se tirava fotografia de primeira comunhão tinha sido arrasada; as paredes da capela não tinham mais pintura, as cores douradas e azuis tinham desaparecido. Havia um grupo que cantava perto do altar, no meio de andaimes e que nos fez sentir indesejáveis. Na manhã seguinte, visita rápida à catedral, que revelou novas cores à minha memória enganosa, muito cinza nas paredes e, lá em cima, abóbodas que ressoaram como cânticos emocionados a meus olhos surpreendidos. Um tanto maltratada também, ameaçada, disseram, por cristãos fundamentalistas que não queriam mais saber de pinturas nem de imagens. Me fez pensar nas estátuas explodidas dos Budas; fiquei imaginando se falariam da catedral da cidade pequena como se falou das estátuas milenares. E me lembrei do bispo conservador intratável, que fora capaz de fazer uma igreja que nos obrigava a enxergar as rachaduras do nosso mundinho, estranhamente o mesmo que ele teimava em preservar.
Desconcerto do mundo…!

Igreja de Nossa Senhora Imaculada Conceição - Catedral de Jacarezinho

* REGINA M. A. MACHADO é uma brasileira expatriada que em geral trata dos escritos dos outros, mas que de tanto engolir crias alheias, acaba pondo para fora alguma criatura nascida do medo e da escuridão, como tantas outras. Fez um doutorado tardio em 2007, na Sorbonne, sobre literatura brasileira. Atualmente anima oficinas de francês para imigrantes em Bonneuil-sur-Marne, onde mora. Quando tem oportunidade, traduz autores brasileiros para o francês e, em se tratando de ficção ou teatro, sempre em colaboração com algum francês de raiz. Publicado Publicado na leva 45 de Divers

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