Discussão política, com a participação de todos os membros da comunidade.
ROBERTO: Nós não romantizamos a guerrilha, nem endeusamos as armas. Nosso objetivo sempre foi político. Quando a repressão estourou as entidades de massa, quando eles ocuparam cidades operárias com as tropas para prender grevistas e aterrorizar a população, quando as passeatas estudantis já não tinham o que fazer se não andar de um lado para outro no centro da cidade, então nós nos organizamos para oferecer uma opção, um caminho para o qual pudesse ser canalizado todo esse movimento de massas, criando uma alternativa de poder.
ANA: E isso tudo isolados do povo, escondidos nos
aparelhos, querendo fazer a revolução só com estudantes e intelectuais?
ROBERTO: Junto com as massas a repressão acabaria localizando a gente. Prende um operário, ele entrega a base da fábrica, daí é aberto o coordenador do movimento de massas e logo acabam caindo todos os elos da corrente. Para sobrevivermos na luta era necessário nos organizarmos como revolucionários profissionais, vivendo unicamente para a causa.
CARLOS: Mas que adiantava sobreviver se o povo não participava da sua luta nem se interessava por suas ações?
ROBERTO: Numa outra fase do processo executaríamos ações de propaganda armada, como expropriarmos gêneros de primeira necessidade para distribui-los nas favelas, tomarmos supermercados para o povo saquear, ações desse tipo. Além disso, não esperávamos vencer o imperialismo só no nosso país, sabíamos que era impossível. Nossa idéia era desencadear a luta em larga escala, coordenada com os grupos guerrilheiros de outros países, como os tupamaros e o ERP.
ANA: E por que deu tudo errado?
ROBERTO: Foi uma corrida contra o tempo. Nós demoramos tanto para priorizar a luta armada que, quando começamos pra valer, já era tarde, o imperialismo estava bem preparado. Veja o caso do nosso país: eles investiram rios de dinheiro, criaram o milagre econômico, a classe média passou a apoiar o regime, nós acabamos sozinhos e agora a repressão está liquidando nossas Organizações, uma por uma.
GERALDO: Você não acha que foi uma tentativa desesperada?
ROBERTO: Até certo ponto, sim. Nós sabíamos que os militares utilizariam o estado totalitário para conduzir nosso país a um estágio capitalista mais avançado, com o predomínio absoluto das grandes empresas na economia, a colocação do ensino a serviço do capital, a propaganda fascistóide, tudo isso. Então, tínhamos de evitar que eles reestruturassem a sociedade dessa forma, caso contrário as possibilidades de uma revolução ficariam afastadas por um longo período. Foi por isso que arriscamos tudo, nenhum de nós queria esperar mais 20 ou 30 anos por outra situação potencialmente revolucionária.
ANA: Só que, com esse imediatismo pequeno-burguês, vocês acabaram quase todos dizimados e a ditadura ficou ainda mais forte...
ROBERTO: Putz, a companheira pega pesado! Olha, pelo menos uma coisa temos certeza que fizemos: nós lavamos a honra da esquerda, depois daquela rendição sem luta quando os militares tomaram o poder. Quem sabe se nós não pagamos as contas do passado, deixando o terreno limpo para que a juventude entre na luta sem traumas, sem nossa necessidade obsessiva de provar que também tínhamos coragem de sangrar por uma causa?
CARLOS: Mas, a repressão está liquidando as lideranças forjadas em décadas de luta. Assim a juventude ficará sem memória, sem referencial, vai ter de recomeçar tudo da estaca zéro.
VALDOMIRO: Não sei, eu às vezes sinto como se nós fôssemos uma geração maldita, que sentiu como nenhuma outra a necessidade de lutar mas não tinha opção correta para fazer. Parece que a História só nos conduziu a ruas sem saída, e mesmo assim brigamos, polemizamos, discutimos, fizemos o impossível para convencer uns aos outros, trazê-los para a posição que achávamos correta, sem perceber que todas elas acabariam num mesmo fracasso. Num enorme fracasso.
CARLOS: Pelo menos cada um de nós seguiu até o fim suas opções, sacrificou tudo por elas, se entregou à luta como nenhuma outra geração. Esse exemplo a gente deixa pro futuro.
VALDOMIRO: O futuro só fixará nossa derrota. Perdemos, logo estávamos errados. Para eles, esse vai ser o veredito da História.
* * *
Geraldo se despede de cada um dos companheiros, pois decidiu voltar ao seu país. Todos estão emocionados. Até Ana o abraça, chorando. Depois que sai, comentam sua opção.
GERALDO: Ele sabe que a luta está perdida, não tem mais nenhuma esperança, então por que é que resolveu voltar? Está indo direto pro matadouro.
VALDOMIRO: O problema do Roberto é que ele perdeu os amigos, os irmãos, a companheira. Todos de quem gostava acabaram presos ou mortos. Ainda por cima, ele não vê a menor possibilidade das coisas melhorarem em nosso país nos próximos anos. Então, o Roberto chegou até a pensar num recuo, mas não viu nada do outro lado. Não havia mais lugar onde quisesse ficar, nem pessoa que o prendesse à vida. Acabou se solidarizando com os últimos da sua Organização. Vão lutar até o fim...
GERALDO: E acabar presos ou mortos.
VALDOMIRO: Ou mortos. O Roberto, pelo menos, acho que nunca vai
cair vivo. Ele sabe muito bem o que encontrará nos porões.
GERALDO: É, estamos no tempo dos mártires.
VALDOMIRO: E muita gente ainda vai morrer à toa. Mas, para o Roberto, talvez seja mesmo a melhor opção. Gente como ele aguenta qualquer sacrifício no presente porque vive sonhando com o futuro, com o dia em que nosso país for libertado. Mas, quando descobre que a revolução não é mais pra amanhã nem pros próximos anos, já não consegue voltar pra rotina. A vidinha normal não significa mais nada para ele. O Roberto viveu com tanta intensidade seu sonho que tinha de morrer junto com esse sonho.
GERALDO: E você, ainda tem esperanças?
VALDOMIRO: Tenho pensado muito nisso e acredito que ainda valha a pena viver. Mesmo que as novas gerações não se interessem por nossas histórias, temos de insistir, procurar os meios para transmitir tudo que aprendemos. Afinal, poucos dos que participaram das últimas fases da política revolucionária sobreviveram. Temos de tornar conhecidas as lições que aprendemos com tanto sacrifício, para evitar que a juventude pague o mesmo preço por seu aprendizado. Para isso faz sentido voltar, faz sentido esperarmos o dia certo para voltar.
Obs.: trabalho em grupo feito para a cadeira de Linguística. Tínhamos de escolher uma obra artística, dela derivar uma história que permitisse destacar o jargão utilizado por tal ou qual grupo social e apresentá-la por meio de audiovisual, programa radiofônico, filme, teleteatro, etc. Convenci o grupo a escolher a canção do Vandré sobre exilados porque era um assunto já na ordem do dia e porque seria fácil trabalharmos em cima do jargão da esquerda. Fiquei com a tarefa de criar o script. E acabei me envolvendo muito com as situações enfocadas, por estarem próximas da minha vivência. O vídeo despertou interesse, causando polêmica.