Por Lúcia de Fátima do Vale
(...)O presente artigo tem sua origem a partir das seguintes indagações: "O que levou Monteiro Lobato a falar tão mal da obra de Anita Malfatti? Ele entendia de arte a ponto de fazer tal crítica?" É importante relembrar o ocorrido, pois trata de um episódio importantíssimo para a cultura brasileira: o estopim do Modernismo.
É claro que Monteiro Lobato, no ápice de sua erudição e no cargo que exercia no tradicional e respeitável jornal O Estado de São Paulo, tinha plenas condições de exercer a função de crítico; até porque, na época, um jornalista se fazia por talento ao lidar com as palavras, e não simplesmente porque possuía um diploma do curso de jornalismo.[1] Em seu artigo "Paranóia ou mistificação? A propósito da Exposição Malfatti", publicado em 20 de dezembro de 1917 – fato que, paradoxalmente, imortalizaria a obra da artista – Lobato declara sua total preferência pela arte clássica:
"Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que vêem normalmente as coisas e em conseqüência disso fazem arte pura, guardando os eternos ritmos da vida, e adotados para a concretização das emoções estéticas, os processo clássicos dos grandes mestres. (...)"
Na seqüência dessa afirmação, Lobato cita, entre outros, Praxíteles, Rafael, Rembrandt, Rubens, Rodin, como modelos a serem seguidos, revelando razoável conhecimento de História da Arte. Mas é assim imediatamente definida por ele a outra "espécie de artista":
"formada pelos que vêem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. (...)"
Seu repúdio às novas tendências artísticas, as chamadas Vanguardas Européias - fonte da técnica desenvolvida por Anita - , fica claro nesses trechos:
"Essas considerações são provocadas pela exposição da Sra. Malfatti onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e companhia."
e mais:
"Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de outros tantos ramos da arte caricatural. (...) Caricatura da cor, caricatura da forma – caricatura que não visa, como a primitiva, ressaltar uma idéia cômica, mas sim desnortear, aparvalhar o espectador."
Essa "arte efêmera" à qual se refere Monteiro Lobato era, em seu artigo, considerada fruto ou de paranóia ou de mistificação, tal qual se encontram desenhos desconexos nas paredes dos manicômios. Talvez essa tenha sido a maior ofensa para Anita: ter sido chamada, mesmo que indiretamente, de louca, psicótica, possuidora de um "cérebro transtornado". Nem mesmo alguns elogios ao seu talento serviram para aplacar a ofensa, porque há momentos em que Lobato se rende ao seu talento: Essa artista possui um talento vigoroso, fora do comum; mas logo aponta o aspecto caricatural de sua obra: Entretanto, seduzida pelas teorias do que ela chama de arte moderna, penetrou nos domínios dum impressionismo discutibilíssimo, e põe todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura.
Embora os trechos aqui transcritos não dêem a dimensão real das palavras que provocaram a reação de desolamento de Anita, ainda assim, convém investigar os reais motivos que levaram o escritor Monteiro Lobato a ser tão ríspido em sua crítica, o que resultou em um trauma que ela carregou para o resto de sua vida.
Encontrei parte da resposta nos estudos de Mário da Silva Brito[2], um incansável pesquisador do Modernismo brasileiro, que compilou importantes documentos da época.
Rua Líbero Badaró na época da polêmica exposição de Anita MalfattiPrimeiramente, é preciso ficar claro que o conjunto das obras de Anita, expostas no salão da Rua Líbero Badaró, 111, assustou também aos próprios familiares e amigos próximos da pintora e, principalmente, ao então diretor do jornal o Estado de São Paulo, Nestor Pestana. E foi este quem encomendou a Lobato a crítica. Ao que foi relatado em depoimento a Paulo Duarte, Nestor Pestana, amigo pessoal da família de Anita, depositava nela grande expectativa. Contudo, frustrado com o que vira na exposição, em virtude de seu extremo conservadorismo, teria confiado ao articulista Monteiro Lobato, a crítica em tom de "pito"[3], aproveitando-se do fato de Monteiro Lobato, apesar de jovem, ser "velho de sensibilidade"[4]
Foi o casamento perfeito entre o desgosto de Pestana e a hostilidade de Lobato às estéticas modernas. Segundo Mário da Silva Brito, o conhecimento de Lobato acerca de arte limitava-se às lições acadêmicas e tradicionais. Sérgio Milliet, notável modernista, anota que a crítica de Lobato se baseia na concepção primária de uma pintura fotográfica, numa escultura naturalística, o que se origina por certo da ingênua convicção dum progresso contínuo, na superioridade de nossa civilização ocidental sobre as demais.[5]
Silva Brito ainda relembra-nos de que o tom mordaz de Lobato está mais para a caçoada do que para sátira. Lobato confessara em vários contos e artigos que suas "observações zombeteiras" não passavam de vinganças pessoais. Mas o que haveria de vingança pessoal no caso Malfatti? Eis a descoberta que pode completar a resposta às nossas indagações iniciais: Monteiro Lobato, além de escritor e jornalista, era também pintor, ou como diz Silva Brito, "queria ser pintor", tanto que a primeira edição de sua obra Urupês teve ilustração por seu próprio punho. Na verdade, era um pintor com traços acadêmicos, tradicionais mas que, apesar disso, não atingiu o êxito no campo das artes plásticas, o que resultaria no seguinte comentário de Menotti del Picchia[6]: Lobato é um grande contista com fama de mau pintor.[7] Assim sendo, parece ser consenso entre alguns de seus contemporâneos que Lobato, além de defender um estilo abraçado convictamente, alimentava um certo "despeito"[8] pelo sucesso de novos talentos, e em particular, os modernos.
Todavia, há quem defenda essa postura de Lobato, entendendo que sua crítica era proveniente de sua formação positivista, determinista e liberal (Cf. PENTEADO, 1997), oriunda de leituras fundamentais para sua formação ainda na Faculdade de Direito de São Paulo, dentre elas Spinoza, Fichte, Hegel, Voltaire, Taine, Spencer, Darwin e Nietzsche. Isso justifica seu repúdio à "influência estrangeira exacerbada", por meio da crítica aos "ismos" importados (CAMARGOS, 1999). A autora ainda pondera sobre Lobato:
"Na verdade, para ele, o artista brasileiro não se encontrava suficientemente amadurecido para apreender criticamente os modelos artísticos das vanguardas européias. E, sem esse amadurecimento, corria o sério risco de cair no imitativismo puro e simples." (Idem, p. 135)
O criador do símbolo nacionalista desprovido de idealizações românticas, a personagem Jeca Tatu, tinha uma convicção nacionalista voltada para uma realidade à qual as elites davam as costas. Nesse afã de buscar a verdadeira identidade nacional, sem influências estrangeiras, longe das cidades litorâneas como o Rio de Janeiro ou próximas ao litoral, como São Paulo, Lobato voltou-se para o interior. A partir disso, Lobato passou a defender a idéia de que a modernidade era o progresso, o saneamento, o acesso à educação e à cultura, não a reprodução de movimentos artísticos europeus, que ele considerava apenas modismos passageiros. Por outro lado, o grupo de modernistas tinha uma preocupação similar, contudo sem repudiar a influência estrangeira européia, nem a influência negra, nem a indígena, como é possível notarmos na antropofagia oswaldiana, tão bem articulada em Macunaíma, de Mário de Andrade, e tão bem sintetizada na obra de Tarsila do Amaral.
A diferença entre Lobato e os modernistas é de questão formal, como assevera Antônio Cândido (1985:120):
"No campo da pesquisa formal os modernistas vão inspirar-se em parte, de maneira algo desordenada, nas correntes de vanguarda na França e na Itália" (...) aprenderam a psicanálise e plasmaram um tipo ao mesmo tempo local e universal de expressão, reencontrando a influência européia por um mergulho no detalhe brasileiro."
Eis o ponto de divergência entre a modernidade de Lobato e a dos modernistas: a forma de expressão. Se a preocupação desses dois pólos era eminentemente o Brasil, sua identidade, sua nacionalidade, seu povo e sua língua, eles seguiam por caminhos distintos. Lobato era a favor de uma forma, no que tange à pintura, tradicionalista. As novas formas de expressão vindas dos emergentes artistas europeus agradavam àqueles que queriam, por meio de uma nova linguagem nas artes visuais e na literatura, fazer repensar o Brasil de um novo século, inserindo-o num mundo que valorizava cada vez mais a velocidade e a "Lalive", pastel e óleo sobre tela mecanização crescente. Ao contrário disso, a opção e a opinião de Lobato ficaram claras em seu artigo. E assim estava instaurada a polêmica que teve como ponto nevrálgico a obra da jovem e sensível Anita.(...)
LEIA NA ÍNTEGRA EM : http://www.urutagua.uem.br/007/07vale.htm
Nenhum comentário:
Postar um comentário