sábado, 16 de dezembro de 2017

Veto à Maria da Penha nas escolas: “Doria não vê a violência contra a mulher como um grande problema”


Veto à Maria da Penha nas escolas: “Doria não vê a violência contra a mulher como um grande problema”

por Gabriel Brito - 04 12 2017

http://www.correiocidadania.com.br/34-artigos/manchete/12975-veto-a-maria-da-penha-nas-escolas-doria-nao-ve-a-violencia-contra-a-mulher-como-um-grande-problema

Veto à Maria da Penha nas escolas: “Doria não vê a violência contra a mulher como um grande problema”
Gabriel Brito, da Redação
Em meio à queda de po­pu­la­ri­dade e in­trigas do pró­prio par­tido, passou des­per­ce­bido do grande pú­blico o veto do pre­feito de São Paulo, João Doria
, à im­ple­men­tação da lei da Maria da Penha nas es­colas pú­blicas, pro­jeto apro­vado por una­ni­mi­dade na Câ­mara dos Ve­re­a­dores. A este res­peito,
e ou­tros temas po­lê­micos de seu pri­meiro de man­dato, con­ver­samos com a pro­po­nente do pro­jeto de lei que visa di­mi­nuir a vi­o­lência de gê­nero
nas es­colas, a ve­re­a­dora Sâmia Bomfim (PSOL).
“Doria está abrindo mão do papel do poder pú­blico em con­tri­buir com uma so­ci­e­dade menos vi­o­lenta para as mu­lheres. E, in­fe­liz­mente, não nos
sur­pre­ende.
A gestão Dória fe­chou a Se­cre­taria de Mu­lheres assim que as­sumiu. Só há duas mu­lheres nas se­cre­ta­rias de go­verno. Em ne­nhuma de suas po­si­ções
pú­blicas ele mostra estar mi­ni­ma­mente pre­o­cu­pado com a vi­o­lência de gê­nero. Vetar o pro­jeto si­na­liza que o pre­feito não vê o pro­blema da
vi­o­lência contra a mu­lher como um dos prin­ci­pais a serem com­ba­tidos na ci­dade”, cri­ticou.
Além de ana­lisar a atu­ação da pre­fei­tura no âm­bito edu­ca­ci­onal, onde “quase todo o no­ti­ciário no ano foi de­sas­troso”, como diz a edu­ca­dora de
for­mação e fun­ci­o­nária da USP antes de eleita, Sâmia faz uma aná­lise geral de sua gestão, pa­lavra quase tor­nada culto em seus dis­cursos. Em
li­nhas ge­rais, aponta que o pre­feito trata a coisa pú­blica como em­presa com fim lu­cra­tivo e, no fim das contas, visa mer­can­ti­lizar a ci­dade em
todas as frentes, a exemplo do que ocorreu no Rio de Ja­neiro no úl­timo pe­ríodo.
“O papel de um go­ver­nante é ad­mi­nis­trar para muitas pes­soas, para in­te­resses di­versos, para a plu­ra­li­dade. A po­lí­tica é cons­truir con­sensos.
O de­bate é um exer­cício de­mo­crá­tico que Dória dis­pensa (...) Em São Paulo, os ve­re­a­dores estão prestes a dar um cheque em branco para que o
pre­feito venda ou con­ceda um nú­mero gi­gan­tesco de pré­dios, par­ques e re­cursos. Será ir­re­ver­sível. Per­de­remos o acesso a di­versos ser­viços”,
sin­te­tizou.

A en­tre­vista com­pleta com Sâmia Bomfim pode ser lida a se­guir.
Cor­reio da Ci­da­dania: Como você viu o veto do pre­feito João Doria sobre o en­si­na­mento da lei Maria da Penha nas es­colas da ca­pital pau­lista? Quais
te­riam sido suas mo­ti­va­ções?
Sâmia Bomfim: Vimos atô­nitos a pu­bli­cação em Diário Ofi­cial da de­cisão da­tada do dia 7 de no­vembro. Um dos prin­ci­pais mo­tivos da per­pe­tu­ação da
vi­o­lência contra as mu­lheres é o fato de que nossas ins­ti­tui­ções não a com­batem e muitas vezes acabam es­ti­mu­lando-a. As es­colas são parte
fun­da­mental disso. Boa parte dos pro­fes­sores não re­cebe atenção e for­mação do Es­tado e do poder pú­blico para lidar com os casos de vi­o­lência, que
em sua mai­oria apa­recem nas salas de aula.
Os úl­timos ín­dices di­vul­gados mos­traram que São Paulo é re­cor­dista tanto nos es­tu­pros quanto em fe­mi­ni­cí­dios. Doria está abrindo mão do papel
do poder pú­blico em con­tri­buir com uma so­ci­e­dade menos vi­o­lenta para as mu­lheres. E, in­fe­liz­mente, não nos sur­pre­ende.
A gestão Dória fe­chou a Se­cre­taria de Mu­lheres assim que as­sumiu. Só há duas mu­lheres nas se­cre­ta­rias de go­verno. Em ne­nhuma de suas po­si­ções
pú­blicas ele mostra estar mi­ni­ma­mente pre­o­cu­pado com a vi­o­lência de gê­nero. Vetar o pro­jeto si­na­liza que o pre­feito não vê o pro­blema da
vi­o­lência contra a mu­lher como um dos prin­ci­pais a serem com­ba­tidos na ci­dade.
Cor­reio da Ci­da­dania: Como foi o tra­balho em torno da apre­sen­tação do pro­jeto e sua tra­mi­tação na câ­mara?
Sâmia Bomfim: O pro­jeto de lei foi apro­vado pela Câ­mara mu­ni­cipal em se­gunda vo­tação no dia 4 de ou­tubro sem ne­nhum voto con­trário. Faz parte de
um pa­cote de pro­jetos do meu man­dato no sen­tido de com­bater a vi­o­lência contra a mu­lher. Entre eles, há um já san­ci­o­nado que tornou obri­ga­tório
que es­ta­be­le­ci­mentos co­mer­ciais man­te­nham placa in­for­ma­tiva do disque 180.
Cor­reio da Ci­da­dania: Por que é im­por­tante levar o tema da vi­o­lência contra as mu­lheres às es­colas de São Paulo?
Sâmia Bomfim: Porque o ma­chismo é cul­tural e é através da edu­cação que vamos con­se­guir su­perá-lo. Avan­çamos na pe­na­li­zação dos casos de
vi­o­lência contra a mu­lher. São passos im­por­tantes, mas se não en­si­narmos aos me­ninos e me­ninas uma nova cul­tura de res­peito, as pe­ni­ten­ciá­ria
s con­ti­nu­arão lo­tadas. Além disso, a gente sabe que os alunos acabam co­men­tando com as pes­soas no am­bi­ente es­colar sobre as vi­o­lên­cias que
as­sistem em casa e, na mai­oria das vezes, os tra­ba­lha­dores das es­colas não sabem como podem ajudar.
Cor­reio da Ci­da­dania: Há bas­tante re­latos de vi­o­lência contra mu­lheres – sejam alunas, pro­fes­soras ou fun­ci­o­ná­rias - nas es­colas?
Sâmia Bomfim: In­for­mal­mente, sim. Basta con­versar com qual­quer pro­fessor ou di­retor. Eles acabam en­vol­vidos nas his­tó­rias dos con­textos
fa­mi­li­ares das cri­anças. Sabem quem são os que estão em maior vul­ne­ra­bi­li­dade e muitas vezes es­cutam re­latos de vi­o­lência do­més­tica.
Cor­reio da Ci­da­dania: Outro tema po­lê­mico re­la­ci­o­nado ao pre­feito foi a ideia de fazer par­ce­rias para apro­veitar co­mida perto do ven­ci­mento
e também dis­po­ni­bi­lizar um pro­duto con­cen­trado de pro­teínas, cha­mado fa­ri­nata, que ficou co­nhe­cido pelo pú­blico como ração hu­mana. O que
você pensa desse epi­sódio? Não ha­veria um lado po­si­tivo na ideia de apro­veitar co­mida antes que vença e vá para o lixo, como acon­tece em di­versos
ou­tros âm­bitos e lo­cais do mundo?
Sâmia Bomfim: Foi mais um epi­sódio que de­monstra a falta de in­te­resse do go­verno Doria de di­vidir o bem estar so­cial na ci­dade. Ele pensa São Paulo
como uma em­presa em que o in­te­resse final é um nú­mero na conta ban­cária. Pensa sob a ótica do lucro em ci­frão. As ci­dades não são em­presas e o
único lucro do Es­tado é ga­rantir que as pes­soas fi­quem bem. Por­tanto, a me­dida do su­cesso de uma gestão pú­blica é outra.
No caso da fa­ri­nata: a me­dida vai contra tudo o que pes­qui­sa­dores, mé­dicos e nu­tri­ci­o­nistas re­co­mendam, que é a ali­men­tação va­riada com
co­mida de ver­dade, in na­tura. Nada de ul­tra­pro­ces­sados e fa­ri­nhas. Além disso, nem Doria sabia jus­ti­ficar o mo­tivo da fa­bri­cação,
des­co­nhece os nú­meros da fome em São Paulo.
A ci­dade já possui le­gis­lação que prega ali­men­tação or­gâ­nica nas es­colas*, ele também não sabia dizer quantas pes­soas em si­tu­ação de rua
re­ce­be­riam o ali­mento, como seria a dis­tri­buição. Pa­receu mais uma ação para criar uma em­presa do que uma ação para com­bater a fome.
Sobre des­per­dício, em ne­nhum mo­mento a cri­ação de uma em­presa que ofe­rece isenção fiscal a em­presas que do­arem restos com­bate o des­per­dício.
Muito pelo con­trário: no nosso ponto de vista, as em­presas se­riam be­ne­fi­ci­adas por pro­duzir em ex­cesso.
O Plano Mu­ni­cipal de Se­gu­rança Ali­mentar já prevê ações da pre­fei­tura para o re­a­pro­vei­ta­mento de ali­mentos que são os Bancos de Ali­mentos,
onde as pes­soas em si­tu­ação de vul­ne­ra­bi­li­dade po­de­riam re­tirar ali­mentos fora do pa­drão de venda. Basta a pre­fei­tura im­ple­mentar. Eu apoio
.
Nota da Re­dação: após a en­tre­vista ser feita, Doria anun­ciou o plano de en­trega de ali­mentos or­gâ­nicos nas es­colas pú­blicas, ini­ci­a­tiva
apre­sen­tada como iné­dita, mas que já havia sido posta em prá­tica pela pre­fei­tura an­te­rior.
Cor­reio da Ci­da­dania: Ainda no campo da edu­cação, como en­xerga a atu­ação do pre­feito neste seu pri­meiro ano de man­dato?
Sâmia Bomfim: A edu­cação nesse pri­meiro ano da gestão Doria ocupou as pá­ginas de jor­nais so­mente com no­tí­cias de­sas­trosas. Mi­lhares de
con­cur­sados es­peram para as­sumir suas vagas en­quanto in­con­tá­veis aulas deixam de ser dadas por falta de pro­fis­si­o­nais. Houve o epi­sódio da
me­renda (quem não se lembra da marca na mão do aluno para não re­petir o prato?) e os re­passes para as As­so­ci­a­ções de Pais e Mes­tres fi­caram abaixo
do pro­me­tido.
O en­sino médio está com­ple­ta­mente ame­a­çado de fe­cha­mento e o ma­gis­tério talvez não chegue em 2018. Vi­si­tamos al­gumas es­colas esse ano e
cons­ta­tamos a ne­ces­si­dade de re­formas e apoio fi­nan­ceiro a vá­rios ex­ce­lentes pro­jetos pen­sados pelos pro­fes­sores. In­fe­liz­mente, o
or­ça­mento da edu­cação que a pre­fei­tura en­viou à Câ­mara não prevê ne­nhuma no­vi­dade.
Cor­reio da Ci­da­dania: Saindo desta seara, como ana­lisa sua gestão, pa­lavra quase tor­nada culto nos úl­timos tempos de mar­ke­ting po­lí­tico?
Sâmia Bomfim: Doria não faz a mí­nima ideia do que é a gestão pú­blica. Ele con­funde com a gestão de uma em­presa pri­vada de sua pro­pri­e­dade. Não é a
mesma coisa nem de longe. O papel de um go­ver­nante é ad­mi­nis­trar para muitas pes­soas, para in­te­resses di­versos, para a plu­ra­li­dade. A po­lí­tica
é cons­truir con­sensos. O de­bate é um exer­cício de­mo­crá­tico que Dória dis­pensa. Não aceita crí­ticas e di­ver­gên­cias. De­mite quem aponta fa­lhas,
não ouve quem faz opo­sição. Corta, corta, corta a fim de eco­no­mizar como se o nú­mero na “conta ban­cária do Es­tado” fi­zesse di­fe­rença na vida do
ci­dadão.
Sua po­pu­la­ri­dade (em queda, vale dizer) se dá a partir do opor­tu­nismo na nar­ra­tiva de aus­te­ri­dade e au­to­ri­dade que, in­fe­liz­mente, têm
agra­dado uma par­cela dos bra­si­leiros, men­ta­li­dade cons­truída a partir de muito ter­ro­rismo elei­toral. Dória, MBL e ou­tros nomes da
ex­trema-di­reita criam ce­ná­rios ca­tas­tró­ficos no ima­gi­nário das pes­soas para po­derem também criar suas his­tó­rias de he­róis.
Cor­reio da Ci­da­dania: Doria, ide­o­lo­gi­ca­mente, é mais um que vive a pro­fessar sua fé nas forças do livre mer­cado, isto é, na li­ber­dade total do
poder econô­mico sobre as de­mais es­feras so­ciais. Como en­xerga esse li­be­ra­lismo quando com­pa­ramos a pautas que não têm re­lação di­reta com a
eco­nomia? Po­demos mesmo chamar assim essa nova ge­ração que se au­to­pro­clama li­beral?
Sâmia Bomfim: Pas­samos de um ciclo na­ci­onal-de­sen­vol­vi­men­tista a um ciclo ul­tra­li­beral na po­lí­tica na­ci­onal. Doria está in­se­rido nesse
bojo. Afirmam que quanto menos ti­vermos, menos se rouba e vendem a ilusão da li­ber­dade ba­seada no con­sumo. Cola agora por conta da emoção e ino­cência
das pes­soas, mas na ver­dade o que as­sis­timos é o des­monte do Es­tado em nome de um jogo po­lí­tico-ide­o­ló­gico vin­cu­lado a grandes em­presas.
His­to­ri­ca­mente, o li­be­ra­lismo apa­rece li­gado à as­censão da bur­guesia, quando esta, tendo cres­cido eco­no­mi­ca­mente, quis também con­quistar
o poder po­lí­tico, o que efe­ti­va­mente con­se­guiu.
Porém, em menos de meio sé­culo, tudo o que o li­be­ra­lismo havia pro­me­tido ao povo re­dundou em con­quistas e pri­vi­lé­gios apenas das classes
eco­no­mi­ca­mente do­mi­nantes e em in­jus­tiça so­cial: as pes­soas sem lar, sem co­mida e sem fé, co­me­çaram a re­agir vi­o­len­ta­mente. Vimos
di­versos eventos his­tó­ricos nos úl­timos tempos que le­varam os Es­tados li­be­rais ao di­lema de re­formar-se ou pe­recer.
Em sín­tese: o mo­delo li­beral não diz res­peito apenas às ques­tões econô­micas. Está di­re­ta­mente li­gado a todas as nossas re­la­ções so­ciais, está
li­gado à di­visão de renda, usu­fruto das ci­dades e es­paços co­muns e ao bem estar do ci­dadão que, sem a re­gu­lação do Es­tado, acaba fi­cando à
mercê das grandes cor­po­ra­ções. E não pre­ciso dizer que para o em­pre­sário o que im­porta é o lucro e não a vida em so­ci­e­dade.
Cor­reio da Ci­da­dania: Em li­nhas ge­rais, es­ta­ríamos di­ante de um po­lí­tico que tem a ofe­recer a São Paulo o mesmo pro­cesso de mer­can­ti­li­zação
da ci­dade re­cen­te­mente visto no Rio de Ja­neiro de Edu­ardo Paes?
Sâmia Bomfim: Sem dú­vidas. Talvez pior. No Rio, o caso do Porto Ma­ra­vilha, como ficou co­nhe­cido, é a maior par­ceria pú­blico-pri­vada da his­tória
do Brasil, e na prá­tica o que se viu foi um pro­jeto de in­te­resse pú­blico so­frendo pres­sões do mer­cado imo­bi­liário e dos in­ves­ti­dores. Em São
Paulo, os ve­re­a­dores estão prestes a dar um cheque em branco para que o pre­feito venda ou con­ceda um nú­mero gi­gan­tesco de pré­dios, par­ques e
re­cursos. Será ir­re­ver­sível. Per­de­remos o acesso a di­versos ser­viços.
Ga­briel Brito é jor­na­lista e editor do Cor­reio da Ci­da­dania.

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