A Declaração universal de direitos das pessoas humanas não se universalizou (por Jacques Távora Alfonsin)
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Jacques Távora Alfonsin
Dia 10 deste dezembro, a Declaração Universal de Direitos das Pessoas Humanas completou 69 anos. De boas intenções ela estava cheia, e ainda está, pois continua em vigor. Ela visava convencer o mundo de que o armistício capaz de livrá-lo da guerra, seria capaz também de garantir-lhe a paz, o bem-estar de todo o ser humano contra a injustiça, o desrespeito à dignidade humana, contra todo o mal. Aprendera com a tragédia de se resolver problemas com o uso das armas. Sentimentos fraternos de reparação recíproca por um mal sofrido, por reconciliação quando alguém arrependido de um mal praticado procura quem ofendeu, não havia, como não há ainda hoje, razão alguma para isso merecer censura. Países, anteriormente inimigos, selavam pela Declaração, o pacto de não comprometer a paz.
Não foi o que aconteceu depois. Durante essas quase sete décadas, nações com maior poder militar, signatárias daquele importante documento, de validade pretensamente universal, criaram a suspeita, por suas próprias iniciativas, sobre se houve sinceridade na assinatura dele. Guerras se sucederam, ditaduras foram impostas, abusos de poder refletidos em tortura, perseguições racistas, ideológicas, religiosas, preconceitos arraigados entre classes sociais estabelecidas segundo sua renda ou posição, criando privilégios, diferenças geradoras de desigualdades, liberdades cerceadas, garantias prometidas a direitos sociais e não cumpridas, provaram a ineficácia de grande parte da Declaração. Uma indiferença quase generalizada com a fome, a doença, o desemprego, o desabrigo de milhões de pessoas em todo o mundo, deixam hoje o bolo da aniversariante sem a luz e o calor das 69 velas, sem a cantoria alegre dos parabéns.
A ONU percebeu logo a insuficiência da Declaração para a grandeza dos objetivos que a pretensão de universalizar direitos comporta, e a sua incapacidade de obrigar Estados a vencer as distâncias que separam as previsões legais dos seus esperados efeitos. Vem tentando suprir, embora com ralo sucesso, o poder que ela não teve e ainda está longe de ter. Assim, chama com frequência os países de todo o mundo para debater problemas velhos e novos, inerentes ao sofrimento provocado pelo desprezo do ser humano, pela injustiça, pela violência, pela corrupção das autoridades, por um sistema econômico globalizado e financeirizado, com poder superior ao dos Estados. É o chamado “sistema” ao qual o Papa Francisco chamou certeiramente, de fio invisível, uma forma disfarçada de opressão e repressão imunes a qualquer responsabilização.
O atual (des)governo do Brasil é cúmplice desse sistema, por todas as medidas que tem imposto sob a fachada de “reformas”. De públicos os nossos atuais Poderes institucionais têm muito pouco porque eles fingem não saber que “o nada de uma privação”, especialmente se essa for de direitos, os mais diretamente vinculados à existência das pessoas, como a alimentação e a moradia, por exemplo, “tem uma potência superior a cada vontade individual”, no preciso diagnóstico de Paul Ricouer em “O mal”, um livro traduzido e publicado aqui no Brasil em 1988, justamente quando a nossa Constituição entrou em vigor.
Serve para esse (des)governo a advertência do autor sobre o volume de sofrimento imposto ao povo pelo que ele suporta do quanto está sendo privado, do quanto a vontade individual de cada um/a das/os suas/seus integrantes está sendo reduzida à mais completa impotência: “quanto mais o sistema prospera, mais as vítimas são marginalizadas. O êxito do sistema faz o seu fracasso. O sofrimento, através da voz da lamentação, é o que se exclui do sistema.”
A voz da lamentação, porém, já começou a mudar seu tom. É a desproporção agora constatada entre o previsto na Declaração dos Direitos das Pessoas Humanas, o que foi repetido pela nossa Constituição, e o realizado, que está incomodando crescentemente a sociedade. Se a Declaração serviu para inspirar em grande parte, durante o regime militar, as organizações nacionais e internacionais de defesa dos direitos humanos, agora isso começa a tomar corpo no meio do povo novamente.
A Frente Brasil Popular e a Frente Povo Sem Medo, entre outras organizações, estão recebendo apoio massivo e, do ponto de vista estritamente jurídico, o apoio técnico de frentes de juristas se organizando contra o golpe e em defesa do Estado democrático de direito.
Os direitos humanos fundamentais sociais, como a sua própria denominação revela, dependem de um tempo e um lugar de encontro das pessoas entre si e dos Poderes Públicos com todas elas. Essa obviedade está sendo deturpada em todo o mundo, no Brasil inclusive, com uma força poderosa de propaganda daquele sistema, daquele fio invisível, como a chave mestra da nossa salvação, a fórmula mágica de superação definitiva das nossas frequentes crises econômico-políticas. Pelo que se começa a observar, porém, já está faltando o ar para essa ficção continuar se impondo.
A gente já sabe que vive num mundo de abundância muitíssimo superior as necessidades essenciais de todo o mundo. O que sobra para a minoria representativa desse sistema, no entanto, ao ponto de ele nem mais saber o que fazer com ela, é o que está faltando ao restante da humanidade, pelo domínio que ele exerce sobre a terra, a água, o ar indispensáveis à vida dos povos por ele excluídos. O aniversário da Declaração Universal de Direitos das Pessoas Humanas, assim, em vez de ser celebrado como festa, deve ser denunciado como farsa enquanto ela não vencer, de fato e de direito, essa exclusão.
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