A Comissão de Memória e
o Ex-Ditador Videla
Carlos Alberto
Lungarzo
Prof. Tit. (r) Univ. Est. Campinas, SP, Br.
13 de maio
de 2012
“Deus sabe o
que faz, porque o faz e para quê. Aceito a vontade de Deus e acredito que Deus
nunca soltou a minha mão”.
Jorge Rafael Videla, ex-ditador argentino, a um jornalista.
Recentemente, apareceram nos jornais
brasileiros duas notícias relacionadas com o terrorismo de Estado.
Uma é que o governo do Brasil
divulgou os nomes da Comissão de Memória criada para estudar os crimes da
ditadura.
A outra contém informação sobre a
publicação, na Argentina, de um livro do jornalista Ceferino Reato intitulado
Disposição Final, em que divulga
várias horas de conversa com o ex-líder do pior genocídio do continente: Jorge
Rafael Videla (1925-????). Vide. Esse livro foi lançado em Buenos
Aires em 27 de abril.
A Confissão do Genocida
O jornalista que entrevistou Videla
ficou apavorado pela crueldade e frieza do aposentado carrasco, mas, no fundo, essa
atitude era previsível. Se orgulhar de seus crimes era o que sempre se esperou
dele e de seus “colegas” e similares em qualquer lugar do mundo (Vide).
Num julgamento anterior, outro idoso exterminador,
autor do aniquilamento de mais de 2.000 pessoas em Tucumán (Noroeste do país,
perto da fronteira com Bolívia), ouvindo sua sentença em cadeira de rodas,
bradou a seus juízes que se arrependia de não ter matado mais inimigos.
Desde a formação da Comissão de
Verdade na Argentina (chamada CONADEP) em 15/12/1983, todos sabem que nunca se encontrou um único quadro alto
ou médio, seja dos militares, da polícia, ou dos cúmplices civis e
religiosos, que tenha mostrado o mínimo arrependimento, compaixão ou pena por
suas vítimas. A tortura e mutilação por semanas ou meses (até morrer por
sangramento) de mulheres grávidas, crianças, nenéns e outras pessoas, foi para
eles uma mistura de dever divino, diversão e catarse.
Uma visão humanitária do direito não
pode descartar que um criminoso, por brutal que seja, tenha possibilidade de
recuperação. O problema é que, entre os terroristas de estado, os exemplos de
arrependidos são pouquíssimos e, quase sempre, chegaram ao remorso no meio a fortes
surtos de psicose.
Usando os dados informais dos países
pesquisados desde 1945 até 2001, incluindo os da África, onde houve o maior
número de arrependidos, a proporção de genocidas que lamentaram seu passado, foi
de menos de 7 casos em 10.000. Isso faz que a probabilidade de encontrar algum
destes “autocríticos”, seja menor que 0,0007, ou seja: “quase” zero.
Nos julgamento de Nuremberg, onde o
impacto emocional da ameaça de enforcamento deve ter sido intenso, houve apenas
quatro arrependidos:
N Baldur von Schirach (1917-1974), chefe
da juventude hitlerista, poupado da forca.
N Hans Frank (1900-1946), chefe de
ocupação da Polônia.
N Arthur Seyss-Inquart (1892-1946),
chefe de ocupação da Holanda.
N Albert Speer (1905 – 1981), ministro
de armamentos desde 1942, condenado a 20 anos de prisão.
Tiranos, torturadores, genocidas,
etc., não são criminosos políticos, como inventou o STF brasileiro para
encobri-los com a anistia de 1978, mas tampouco são criminosos comuns.
Desde 1947, durante os julgamentos de Nuremberg, cunhou-se uma nova categoria
de crime: crime contra a humanidade. É uma pena que alguns
magistrados não tenham tido tempo ainda para aprender este conceito.
Nos 10 países (ou menos) onde existem
regimes penitenciários mais ou menos
humanitários (Noruega, Suécia, Costa Rica e alguns outros), a proporção
de criminosos comuns recuperados é muito alta, porque, afinal, ninguém quer
cometer delitos por vocação. Quem é empurrado ao delito é, em quase todos os
casos, o sujeito que sofreu discriminação, abusos e miséria. Isto, aliás, foi
feito explícito por Karl Marx,
que o utilizou como argumento essencial em seu artigo sobre o roubo de lenha de
1842 (Rheinische Zeitung, num 298 supp. Vide).
Inversamente, o criminoso contra a
humanidade sente que sua crueldade é justa
e, portanto, deve orgulhar-se, jamais se arrepender. Aliás, o establishment o trata como herói, e seus
crimes são vistos como proezas, são atos qualificados com nomes cafonas e
ridículos como “cumprimento do dever”, “amor à pátria” e outras pieguices. Eles
recebem promoções de seus superiores (e às vezes propinas de seus
patrocinadores) pelo número de pessoas mortas, povoados devastados e assim em
diante.
Quem é recompensado oficialmente por matar e
torturar está obrigado a continuar sua carreira de morte e sangue até se
aposentar. A destruição gradativa de sua sensibilidade e inteligência, caso
tivesse, deixará nele, na maturidade da vida, apenas rancor e uma confusa
esperança de que será reivindicado por Deus e pela História. Aliás, achará que,
desde algum local do universo, poderá ver sua “glorificação”.
Quem entrou numa corporação violenta
por causa do desemprego ou do acaso, mas sem vocação linchadora, pode às vezes
manter-se à margem dos crimes de seus chefes até que seja expulso ou aposentado.
Nestes casos, se o sujeito deveu se enlamear com alguns atos criminosos, é
possível que o arrependimento realmente pese, mas, mesmo assim, as verificações
encontradas são escassas.
Homens como Videla não são muito comuns, pois algozes
e destrutores vocacionais formam
minoria no mundo. Pensemos que os seis países mais militarizados do planeta (em
proporção de soldados e não de orçamento) são uma parte ínfima de população:
País
|
Porcentagem de
militares (profissionais e recrutados)
|
Coréia do Norte
|
41,89%
|
Coréia do Sul
|
17,36%
|
Rússia
|
15,34%
|
Singapura
|
11,22
|
Cuba
|
10,78%
|
Israel
|
10,34%
|
Fora destes, em apenas 11 países os soldados
ultrapassam o 5% da população. Aliás, dentro destes grupos, os militares
vocacionais são minoria e, em alguns exércitos, mesmo as altas lideranças são
contrárias à tortura e o genocídio. Ou seja, a proporção de pessoas como o
general Videla na população mundial deve ser menor de 1%.
Mas tampouco deve pensar-se que homens como ele são
raridades absolutas que só aparecem de vez em quanto. Mesmo 0,1% da humanidade
seria uma quantidade enorme, a suficiente para tornar muitos países um
verdadeiro inferno. É um fetichismo maniqueísta acreditar que pessoas como
Videla, Pinochet, Hitler, Stalin, Sadam Hussein, al Assad, Gadaffi, George
Bush, e muitos outros, são criações do diabo, e que as instituições a que eles
pertencem são “inocentes” desses elementos “indignos”.
Muito
pelo contrário: Videla foi apoiado pela maioria dos quadros altos, médios e até
baixos das FFAA, foi financiado por empresários, banqueiros e elites abastadas,
e aplaudido por toda a mídia, pelos magistrados, pela polícia e por todos menos
3 dos 124 bispos católicos. Além disso, salvo num caso, teve apoio dos partidos
tradicionais, inclusive o que reunia os resíduos do stalinismo. Médicos e
outros profissionais colaboraram nas torturas.
Se pessoas como Videla parecem
esquisitas é apenas porque teve a “sorte” de chegar a cume do poder. Entre
tropas operativas, cúmplices civis, propagandistas e delatores, o genocídio argentino
teve cerca de 150 mil autores; isto significava 0,5% da população do país na
década de 70.
Na reportagem do jornalista argentino
Ceferino Reato, Videla se considera responsável direito da morte de 8.000 pessoas.
Ele parece aludir aos que foram assassinados após sua autorização expressa. Com
efeito, as vítimas feitas pelas forças repressivas durante sua ditadura são
muito mais de 8.000.
Já durante o 2º ano da gestão da
Videla, um cidadão chileno, Enrique Arancibia Clavel (1944-2011), aparentemente
agente da DINA, foi encontrado com documentos sigilosos que estava enviando à
ditadura chilena, onde estimava em mais de 22.000 os desaparecidos argentinos.
Videla esteve mais outros 3 anos no comando, e só no final do mesmo as
desaparições começaram a diminuir. Então, mesmo admitindo um decréscimo nos 3
anos seguintes, é provável que tenha havido entre 10 e 20.000 novos
desaparecidos. O número de 30.000 desaparecidos, que se tornou popular em 1978,
talvez subestime o tamanho do massacre. Algo entre 35.000 e 45.000 parece bem
mais provável (Vide aqui a matéria sobre os memos da
Operação Condor).
A Geração da Mentalidade Terrorista
Como Videla não é um cidadão comum,
mas tampouco muito diferente de outros guerreiros, ele pode ser usado como
exemplo para entender como se gera a mentalidade genocida. A pesquisa sobre
esta mentalidade fez progressos após 1930, graças à Escola de Frankfurt, a
Hanna Arendt e aos marxistas não leninistas. Mas, as doutrinas elaboradas por
esses pesquisadores, apesar de sua indubitável validez, não parecem suficientes
para uma descrição completa dos criminosos de lesa humanidade.
A bióloga italiana Rita Levi-Montalcini, ganhadora
do Nobel de fisiologia de 1986, tem tentado explicar a afetividade positiva das
pessoas (como a solidariedade e o altruísmo) com base nas funções do cérebro. Pode
acontecer, então, que as emoções negativas e sádicas como a dos líderes
castrenses devam explicar-se também dessa maneira (veja aqui), como defasagem entre a evolução
intelectual humana e sua parcial estagnação emocional, o que teria criado “falhas”
que são incompatíveis com os instintos naturais de outros animais.
Estas observações de Montalcini sugerem,
acredito, que boa parte da espécie humana está carregada de sentimentos
destrutivos desconhecidos em outras espécies, mas que podem ser mantidos sob
controle, sendo que são deflagrados apenas por “catástrofes” cognitivas, como
superstições, delírios e crenças em valores abstratos e sem sentido. Isto não
significa necessariamente que a crueldade seja sempre uma doença, mas, pelo
menos, seria uma derrota dos componentes generosos e racionais.
O caso de Videla ilustra bem o
surgimento da mentalidade sádica de um genocida sistemático, de um líder
destacado de um grande massacre (Veja um excelente ensaio na revista uruguaia Brecha).
Sua família é um caso típico de
“aristocracia” de origem colonial, profundamente católica e cheia de militares.
Ele é lembrado por seus biógrafos como soturno e medroso, obediente e
cerimonioso, cioso das hierarquias, arrogante e déspota, fiel devoto, homem sem
amizades nem namoradas, sem inteligência nem simpatia, frio e sem espírito
solidário.
Talvez por isso, há alguns dias,
quando o jornalista Reato publicou seu depoimento em forma de livro, muitas
pessoas se surpreenderam de que o ditador em pessoa tenha ordenado as torturas,
mutilações e desaparições. Por que tanta surpresa? Vários intelectuais que
estudaram bem o caso de Videla afirmam:
“Ele é uma pessoa medíocre, sem
inteligência, incapaz de juntar duas idéias. Ninguém pensava que teria
habilidade nem mesmo para matar. É parecido com o ditador espanhol Francisco Franco”
(Vide)
Há um fato na vida de Videla que
mostra interessante semelhança de conduta com ditadores de diferentes países,
especialmente nazistas. Casado com uma mulher da “nobreza” argentina, o futuro
ditador teve com ela todos os filhos que
Deus mandou (neste caso, sete). Entre eles, havia um menino com deficiência
mental, que qualquer família normal teria ajudado a viver com carinho. No
entanto, fiel às suas idéias, o casal o internou num asilo, uma espécie de
depósito de seres humanos, onde morreu em 1971, aos 19 anos. (Vide uma notícia fiável sobre o caso aqui)
Até serem desmascarados pela mídia em
2000, os esposos negaram a existência desse filho. Após as denúncias dos
jornais, admitiram ter tido uma criança doente, mas não reconheceram tê-la
abandonado, apesar dos numerosos testemunhos opostos.
A história não acaba por aqui. Os
asilos argentinos eram usualmente administrados por religiosos, às vezes
estrangeiros. O filho de Videla foi cuidado por duas freiras francesas, que
prestaram voluntariado naquele depósito humano. Durante o pico da repressão, em
1978, um tenente da Marinha (o primeiro que se rendeu aos ingleses durante a
guerra das Malvinas, Alfredo Astiz), sequestrou as duas freiras, por pedido de
bispos de Buenos Aires, que as acusaram a ajudar familiares das vítimas da
ditadura.
Ambas foram mantidas durante algum
tempo no pior centro de tortura do país (ESMA), com o conhecimento de Videla,
mas ele e sua mulher se recusaram a providenciar sua liberdade, apesar de elas
terem sido o principal apoio da criança epiléptica naquele asilo. As duas
religiosas foram torturadas até agonizar. Anos depois, o sequestrador Astiz
(hoje cumprindo prisão perpétua) admitiu ter lançado seus corpos ainda vivos no
mar. (Vide um fragmento do livro da escritora
Maria Seoane, intitulado O Ditador)
Um sobrinho de Videla teve sorte
ainda pior. Capturado por suspeitas, foi enviado a um campo de extermínio, do
qual nunca saiu. Quando a irmã do ditador lhe pediu pela vida de seu filho, ele
recusou. Afinal, toda a família era muito católica: tinha sido a vontade de
Deus!
Misticismo e Delírio
Por que os criminosos de lesa humanidade não se
arrependem? Vários autores de assaltos e latrocínios e membros de gangues
organizadas têm sido recuperados até em sociedades pouco avançadas. Muitos
querem terminar “esse tipo de vida” e que a sociedade lhes ofereça uma
oportunidade de viver normalmente. Já nos países mais civilizados, como os do
Norte da Europa, a reabilitação de infratores é expressiva, e os casos de
criminosos irreconciliáveis são raros.
Por que isso não acontece com os
genocidas? Por que eles não sentem remorso, por que não se autocriticam, por
que não mudam de vida? Há várias razões.
Por um lado, o genocida está animado
de forte misticismo. O epígrafe a este artigo é uma declaração de fé do
ditador Videla. Aliás, todos os membros das juntas militares argentinas, ao
longo das seis ditaduras, foram ferventes católicos e, às vezes, proferiram seus
discursos de joelhos como homenagem à padroeira do país, o que foi motivo de
chacota na comunidade internacional (Vide uma foto do ditador Onganía, que governou
entre 1966 e 1970).
Além disso, a capacidade para ordenar
ou praticar torturas de maneira contínua, assassinar crianças, mulheres e
outros indefensos, exige contrariar fortemente os sentimentos dominantes da
espécie humana, como o carinho e o apego por outros membros. Para projetar um
banho de sangue, é necessária a crença em algo que transcenda o natural, algo
que permita ao carrasco justificar-se fingindo (ou crendo realmente), que a
divindade o recompensará pelos crimes.
A idéia mística de que a condição
humana ou animal nada vale e é puro produto da vontade divina, e que a
crueldade purificará os pecados, é essencial para forçar milhares de pessoas a
participar em guerras, chacinas e outros atos de barbárie.
Aliás, algumas mitologias enaltecem
os sofrimentos e torturas eternos num lugar chamado “inferno”, centro de dor e
angústia inventado por mentes doentias e por ascetas hebefrênicos. Se a
divindade que, segundo estes credos, é puro
amor, criou um centro eterno de torturas, porque os simples mortais não
podem aplicar alguns suplícios por uns poucos meses até arrebentar sua vítima?
Finalmente, um fator essencial do
sadismo místico é a necessidade do sofrimento sacrificial. Este sentimento uniu
desde o século 4º militares e religiosos, sob as diretrizes filosóficas de
Santo Agostinho e outros grandes teólogos. A história da Inquisição, hoje
melhor conhecida e mais dificilmente ocultada, mostra a necessidade dos algozes
(geralmente homens insanos afetados por diversos tabus e limitações sexuais) de
fazer sofrer suas vítimas e, sobre tudo, derramar sangue e arrancar órgãos. A
emoção de mutilar órgãos sexuais, especialmente femininos, dava a estes
farrapos humanos uma oportunidade patológica de orgasmo.
Na ditadura argentina, também o
prazer sacrificial sob a forma de “castigo sagrado”, também teve numerosos
representantes, especialmente entre bispos e padres, mas também entre freiras e
laicos “piedosos” a eles submetidos. Mas, nenhum foi tão famoso como Christian von Wernich, capelão da
polícia condenado a prisão perpétua por vários assassinatos e dúzias de torturas
que ele estimulou ou aplicou com sua própria mão.
Sobreviventes do campo de extermínio
onde ele “trabalhava” contam que o dedicado sacerdote adorava aplicar choque
elétrico em zonas especiais do corpo, para sentir o cheiro dos pelos queimados.
Alguns deles afirmam que, apesar de ter passado anos em campos de tortura,
nenhuma figura lhes produzia mais pavor que a daquele padre. Uma matéria
emocionante e inteligente sobre este arauto de Deus pode ser lida aqui.
A crueldade desmedida e contínua, elevada
a princípio de ação e crença fundamental, só pode ser exercida sob algumas
formas de delírio, como aconteceu com Hitler, Ante Pavelic, Franco,
Pinochet e muitos outros, entre eles, nosso personagem, o general Videla.
Alguns autores argumentam que esse
delírio não precisa ser místico, e dão como exemplo o caso de Stalin e Mao,
líderes de movimentos considerados ateus. Mas, o misticismo, embora
representado de maneira completa nos cultos monoteístas, também está
parcialmente representado por formas de irracionalismo não teológico. Esse
misticismo precisa apenas de transcendência, e pode às vezes prescindir das
divindades. A transcendência se manifesta na devoção fanática por objetos
irreais, impossíveis de entender, que viram imagens de adoração e se
transformam, graças ao fanatismo, em objetos sagrados. Esse é o caso de entes
como a Nação, o Raça, a Terra, o Sangue, e os símbolos que as representam.
Entidades concretas, definidas
cientificamente por Marx e Engels a partir de seus componentes humanos, foram
transformadas pelo stalinismo e por outras degenerações do comunismo, em
entidades místicas e sagradas: uma suposta revolução que nunca se realiza, um socialismo
que não existe, um povo heterogêneo, cuja divisão em classe e ideologia os
ditadores ignoram, colocando todos no mesmo rebanho a ser dirigido.
Portanto, o militarismo stalinista e
todas suas crueldades, é também produto de uma mística, embora não representada
pelas religiões tradicionais. Lembre-se que, recentemente, quando faleceu o
brutal tirano de Coréia do Norte, o povo venerou seu cadáver como o de um santo
de qualquer religião, e os órgãos de governo lhe atribuíram milagres. A agência
oficial dizia que, ao morrer Kim Jong Il, os rios e lagos se secaram, e as
plantas e os animais choravam. Que é isto se não uma imagem religiosa, produto
de uma mitologia simplista e ridícula?
A Importância da Memória
A comparação entre o Brasil e a
Argentina mostra a importância das comissões de memória. No
Brasil, apenas uma pequena minoria conhece os detalhes da época da ditadura
militar. Fora dos ambientes mais socializados e com maior compromisso, mesmo
pessoas pacíficas e democráticas têm apenas uma vaga idéia do “governo militar”
ou da “revolução de 1964” e poucos usam a palavra “ditadura”.
Em geral, a imagem histórica desse
processo é difusa, como se tivesse acontecido numa época totalmente desligada
da atual, e como se os militares que nela interviram não tivessem nenhum
projeto em comum com os atuais.
Na Argentina, como na Alemanha
nazista, a manutenção permanente da memória tem aumentado pelo menos a
consciência antimilitarista de grande parte da população. Deve observar-se que,
numa sociedade como Brasil, onde a maioria popular é miscigenada, pacífica e
alheia ao fascismo, seria razoável que o passado repressivo fosse lembrado com
preocupação. Mas a falta de memória
torna isso difícil.
Na Argentina, apesar do tradicional
militarismo da maioria do país, formado pela classe média e alta e os setores
mais favorecidos das classes populares, a imagem dos militares é
aterrorizadora, e até pessoas apolíticas ou de centro direita olham com pavor a
possibilidade da volta de uma ditadura. Isto pode chamar a atenção, tendo em
conta que uma enorme maioria dos argentinos apoia reivindicações fascistas de integridade
territorial, mas, apesar disso, a preocupação com as casernas é algo contínuo.
A entrevista do ditador Videla
estimulou a publicação em jornais brasileiros de algumas notícias pitorescas,
como a seguinte:
O sobrenome “Videla” é relativamente
frequente. Não é equivalente a um “Silva” brasileiro, mas talvez a um
“Mendonça”. Aliás, não é raro que uma família espanhola (que nada entendia de
política) colocasse nomes como “Jorge” e
“Rafael”. Foi assim que uma criança nascida nos anos 70 passou a ser xará do
ditador.
O rapaz, agora com mais de 30 anos, conseguiu
trocar seus nomes, após ter passado uma vida de vexames. Quando procurava um
emprego, em seguida era rejeitado. Quando dizia seu nome, lhe perguntavam se
era parente do ditador. Todos acreditavam que seu pai o tinha batizado assim
porque admirava o criminoso.
No Brasil, entretanto, ninguém se
preocupa de que tiranos e torturadores sejam homenageados com nomes de escolas,
viadutos, bairros, ruas e até uma asa do Senado. Isso não significa que as
pessoas aprovem essas figuras. A enorme maioria simplesmente não sabe quem foram esses caras.
O enorme poder da memória se evidencia comparando as mudanças que
produziu numa sociedade tão conservadora como a Argentina.
A Argentina é um país com 92% de
católicos, com um longo passado nacionalista, com culto aos militares e aos
“heróis”, uma notória ênfase na monoetnicidade, e uma forte tradição
nazifascista. A ditadura de Videla foi resultado do golpe de 1976, que foi o 6º
do século 20, sendo alguns deles explicitamente
nazistas (1930/43) e integralistas (1955/62/66).
Todos os golpes, incluso o último,
foram apoiados por enormes maiorias. No entanto, após a derrota da 6ª ditadura
na guerra do Atlântico Sul, as massas se voltaram contra ela.
Em 1984, o povo votou um referendum
em favor da paz com Chile, com uma maioria de mais de 80%, um fato difícil de
acreditar. A surpresa mostrou que os horrores da recente chacina, com 0,2 % de
desaparecidos, 7% de exilados e 15% de presos, tinham mudado em algo a
mentalidade das massas, e que era necessário manter a memória ativa.
Hoje, apesar da reaparição da neurose
xenófoba, apenas um 5% apoiaria uma guerra com o Reino Unido (Em 1982, mais de
90% da população apoiou a invasão). Além disso, o fato de que o governo
argentino tenha diminuído as provocações, já é um indicador de que um novo
confronto carece de respaldo.
Além de outras variáveis, grande
parte da rejeição a uma nova ditadura na Argentina deve ser produto da memoria, da lembrança nefasta da
pior massacre de Ocidente após 1945.
Nada disso se teria conseguido sem um
longo processo de luta dos parentes das vítimas da ditadura e pelos ativistas
de direitos humanos, a despeito de todos os governos. O
julgamento e prisão de uma centena de militares e policiais, apesar de
significar apenas algo como 1% do total de responsáveis do genocídio, é pelo
menos, um alerta.
Claro que mesmo a memória não é
suficiente para garantir um futuro de paz e justiça. É indispensável a
transformação dos países (tenham tido ou não ditaduras) em autênticas sociedades
civis.
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