Cotas: Derrota para o
Racismo
Carlos A. Lungarzo
Prof.
Tit. (r) UNICAMP
30-abril-2012
Há três dias, o STF rejeitou uma ação
da direita contra a política de cotas da Universidade de Brasília (UnB) por 10
votos contra 0, com a ausência do ministro Toffoli. O caráter legítimo da Ação
Afirmativa é óbvio, mas, apesar disso, chegou a Brasil quase meio século depois
que aos EEUU, e ainda não foi formalizada em lei federal. Apesar destas
deficiências, esta decisão é uma derrota parcial do racismo e a escravocracia.
O fato de que tenha sido possível
sabotar por muito tempo a aplicação de cotas raciais e sociais, e que ainda
seja repudiada nas universidades mais reacionárias e elitistas, explica-se pela
falta de informação e de recursos defensivos dos setores marginalizados.
A isso deve somar-se o lobbismo dos
vendedores de diplomas universitários, dos cursinhos, de grande parte dos
juízes monocráticos, dos intelectuais que bajulam as elites e, com grande
incidência, os próprios acadêmicos e pesquisadores.
Um fato ilustrativo da repulsa à
igualdade e o patrimonialismo dos setores acadêmicos é a negativa das
universidades paulistas a aceitar a ação afirmativa. Nos momentos em que a
pressão vira muito grande, estes “templos do saber” fabricam falsas fórmulas de
inclusão.
No caso de SP, além dos motivos
gerais, tem grande peso a tradição conservadora, etnofóbica e confessional das
elites paulistas, o histórico semifascista, remanescente do Integralismo, e o
vigor das novas ondas plusquam fascistas como
a do Opus Dei.
Por exemplo, se a grande massa de
professores e pesquisadores da USP fosse social e humanamente esclarecida, não
teria escolhido como líder um representante das piores tradições da direita
brasileira. É demagogia ou pouco conhecimento do ambiente universitário, pensar que o atual reitor da USP foi
escolhido a contragosto da massa docente, mesmo que não tenha sido eleito
no primeiro lugar. Ele teve, sem dúvida alguma oposição, mas a falta de
mobilização docente contra o esquema de barbárie instalado no campus mostra, obviamente, que essa
oposição não é expressiva.
Outros fatores que tornaram mais
resistida a AAf no estado de SP que em outros lugares, é o poder dos mercadores
da “educação”, da política estadual de sangramento do ensino público (que
conduziu o estado a último lugar do país no ENEM), e a ideologia darwinista e
gobineana da boa parte dos docentes e pesquisadores. Vejamos apenas um exemplo,
porque são milhares:
Há alguns anos, um professor do
Departamento de Estatística da USP declarou a imprensa que o ingresso de alunos
pobres na Universidade fazia cair o que ele chamava o “nível” do ensino. Esta é
uma manifestação descarnada de algo que os populares nem sequer suspeitam: a
universidade não é vista como parte do sistema educativo, mas como um círculo
de docentes, pesquisadores e orientandos que trocam regalias, subsídios,
bolsas, mordomias, mantendo as dificuldades de aprendizagem num nível
incompatível com a escola pública, para que o círculo fique fechado. É óbvio
que este “nível” é artificial e nada tem a ver com autêntica dificuldade
cognitiva.
A universidade é pensada pelas elites
de tecnocratas como uma fábrica de pesquisas que dependem de diversos fatores:
retribuição do mercado, acomodamento político, formação de clãs herméticos, troca
de estágios e premiações, em fim, variáveis de duvidosa relevância para a
demanda social. Existem, sim, as exceções, mas é anticientífico (com todo
respeito) tomar a exceção como representante da regra.
Uma vez, um líder religioso disse que
o Brasil nunca recebeu um premio Nobel, porque é o maior país católico do
planeta, e os suecos são protestantes e adoram a luxúria. Ele não esclareceu
por que a Argentina, com 96% de católicos, um 20% da população brasileira, e
uma mentalidade muito mais puritana, recebeu cinco Nobel (embora um deles fosse
injusto).
Embora em alguns centros brasileiros
se faça pesquisa útil de alta qualidade, os resultados não se distribuem de
maneira inversamente proporcional à densidade de melanina, como acreditam os racistas.
Após 10 anos de uma ainda fraca AAf no Brasil, percebe-se, como fizeram notar
vários magistrados, que as instituições que aplicam o sistema de quotas não
presentam desempenho pior que aquelas que as repudiam e combatem. Mas, o que é
verdade, é que a democratização racial da universidade pode criar novas
exigências num setor popular que vive à margem da cidadania. Ao mesmo tempo, o diálogo
entre os cérebros disporá de menos tempo, porque será necessário fazer algo
inusitado para algumas universidades: ensinar.
Se pobres, negros, índios e outros
proscritos entram na universidade, esta deverá se dispor a investir tempo em
ensino e não apenas em administrar bolsas e reclutar orientandos para que
auxiliem as pesquisas dos professores, ou em trocar aprovações de dissertações
pelo direito a assinar sua publicação em conjunto com o formando.
Os racistas anticotas têm levado seu
cinismo a extremos bizarros. Em 2002, na UERJ, políticos, comunicadores e
magistrados recrutaram alguns jovens negros que se manifestaram ofendidos de ser tratados como
inferiores, porque eles não precisavam “esmolas”. Esses meninos (um deles foi
meu aluno) e meninas pertenciam a uma pequena minoria de afrodescendentes
adotados por famílias brancas, que lhes tinham dado uma educação de elite.
Curiosamente, esses jovens
manipulados demonstravam algo muito importante: que eles se diferenciavam dos outros afrodescendentes pelo fato de ter
tido oportunidades que a enorme maioria não teve. A outorga de oportunidade
a essa massa excluída fará, se a política de AAF for estendida e incentivada, com
que os setores proscritos da sociedade atinjam níveis decentes de instrução.
Um argumento mais sério é que as
cotas raciais deveriam ser substituídas pelas sociais, já que não se pretende
premiar uma pessoa por ser negro ou índio, mas resgatar da miséria e da falta
de direitos todas as pessoas que nunca tiveram uma educação decente por falta
de dinheiro.
Reconheço que esse argumento é mais
sério e, em muitos casos, é bem intencionado. (Em outros casos, foi usado para
desviar a atenção das cotas raciais, dando assim “um tempo” para que a ofensiva
racista se pudesse reorganizar). Entretanto, há um fato que não é levado em
conta.
É verdade que encontrar identificação
social com outras pessoas por causa de raça ou nacionalidade é algo irracional,
e gera ideologias perversas como racismo e nacionalismo. Mas é diferente se identificar voluntariamente e
ser obrigado a se identificar como
método de defesa face a perseguição racial ou nacional.
Não é a vítima do racismo a que
escolhe se juntar com outras vítimas de sua mesma raça: é o racista que o obriga a se
unir com outros para defender-se.
É por este motivo bem conhecido que negros
americanos de mentalidade e ideologia diversas se unificaram em comunidades:
era sua única maneira de salvar-se do racismo, salvo se tornando subservientes
e colaboradores, como vários ideólogos americanos do neoliberalismo que são
afrodescendentes. Mas, estes Uncles Toms (não
fundo, o Pai Tomas não era tão subserviente como é pintado pela tradição) são
minoria.
Portanto, é importante que a comunidade negra, índia e de outras etnias tenha
seus próprios profissionais e intelectuais, pelo menos até o dia em que os
brancos brasileiros aceitem a igualdade racial, uma quase utopia que deve,
contudo, ser tentada.
A introdução de cotas sociais é imprescindível.
É banal precisar dizer isso. Mas, não pode ser usado como pretexto para ignorar
as cotas raciais. Forçar a entrada de outras etnias nas universidades é uma
maneira direta de educar as tropas “braso-boers” a aprender a conviver com a
diversidade.
Alguns racistas desesperados,
especialmente na classe acadêmica e no jornalismo, têm apresentado o fantasma do
conflito por causa de que alunos brancos deverão conviver com os descendentes
dos escravos de seus ancestrais. (Eles não dizem assim, é claro. Falam do “menor
nível” dos negros.) Pessoas de boa vontade sinalizam que nas universidades onde
se pratica o sistema de cotas não houve nenhum conflito racial nestes
anos.
Mas, a questão não é casuística; é um
assunto de princípios, ético, social e não apenas factual.
Se alunos “puros” não querem sentir
de perto o suor dos favelados, o que devem fazer é autoeducar-se. Se não
conseguirem e partem para o vandalismo (comum, por exemplo, nos trotes de
calouros, inclusive com “bichos” brancos e ricos), o que deve fazer uma justiça
minimamente séria é processá-los por racismo. Por sinal, será uma maneira de
usar alguma vez esta lei, que é letra absolutamente morta no Brasil, porque,
como disse uma vez um promotor, os MPs não querem denunciar os que fazem coisas
que eles próprios fariam.
O STF não fez mais que cumprir com
uma questão elementar de justiça. Mas, de qualquer maneira, esta votação foi a
mais importante que eu lembre. Não é por acaso que a notícia ocupa um local
nanoscópico na imprensa.
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