Aborto Anencefálico
Carlos A. Lungarzo
Professor Titular (r) da UNICAMP
O problema do aborto ganhou novamente
atualidade no Brasil por causa da proposta de reforma do Código Penal, que está
considerando a possibilidade de aumentar os casos de descriminalização do
mesmo. Mas, no começo de abril, também influiu o julgamento pelo STF de uma
ação sobre o direito a abortar fetos sem cérebro, que se mantinha obstruída
desde 2004.
A decisão do STF foi por 8 votos a 2.
Entre os opositores, estavam o ministro Lewandowski, quem, na biografia de
alguns portais jurídicos aparece como oficial retirado das forças armadas e ex
juiz militar, e o ministro Peluso, radical católico que já tinha se oposto em
2004 a uma liminar que permitia o aborto de veto anencéfalo concedido pelo
ministro Marco Aurélio de Mello.
Aborto de “Sem Cérebro”
Em 12 de abril de 2012, o Brasil
tornou-se o 4º país da América Latina que descriminalizou o aborto no caso de
feto anencéfalo.
O primeiro país a adotar o aborto foi
Cuba, em 1965, pensando talvez nos
princípios marxistas de igualdade da mulher e o direito de escolha. Entretanto,
esta proposta deixou de ser libertadora e foi deturpada quando o governo cubano
começou a difundir o aborto como se fosse um método normal de contracepção. O
aborto foi utilizado com a finalidade de reduzir os problemas econômicos do
Estado, sem ter em conta o trauma psicológico que pode afetar uma mãe incentivada
a interromper uma gravidez (Vide).
O segundo foi o da Colômbia, que
aumentou o número de situações em que o aborto era permitido, incluindo, em
2006, o caso de fetos com deformações. O motivo desta medida numa sociedade
ultraconservadora foi um fato de grande repercussão: Marta Solay González
(1971–2007) descobriu que tinha um câncer de útero no 2º mês de gravidez, mas a
justiça lhe negou o direito à terapia, argumentando que o tratamento mataria o
feto. No momento de dar a luz, já o tumor era incurável. A crueldade desta condena
a morte pelos juízes produziu uma enorme indignação na opinião pública, a
despeito da intimidação que a Igreja católica exerce sobre as classes pobres do
país.
A Corte Suprema, preocupada pelo
clamor nacional, sentiu-se obrigada a estender as condições de legalidade do
aborto. Uma das condições adicionadas foi a de fetos com graves danos
cerebrais. (V)
O 3º caso de despenalização se
aprovou parcialmente em 2010 no Uruguai, quando o senado legalizou a
interrupção da gravidez (V). O Uruguai tem certa tradição de secularidade e,
apesar de ter sofrido uma ditadura (1973-1984), foi durante décadas uma
sociedade democrática.
No resto da América Latina, incluindo
países desmilitarizados como a Costa Rica, a influência da Igreja Católica fez
proibir o aborto em quase todos os
casos. Em países desenvolvidos (em geral, nos que têm um maior grau de
civilidade, mas também nos EEUU), o aborto no primeiro trimestre de gestação é
permitido com a simples demanda da mãe. Na Europa, isto acontece em quase todos
os países, mas nos mais teocráticos (que formam uma minoria ínfima) existem
proibições até para o caso de defeito fetal. Eles são: as duas Irlandas, San
Marino, a Andorra e o Vaticano. Este proíbe o aborto em todos os casos, incluindo o risco de morte da mãe.
No Brasil, o acordão que permite a
descriminalização do aborto de fetos anencéfalos aprovado no dia 12 de abril,
já tinha um antecedente importante numa intensa disputa que aconteceu em 2004.
Algo antes, o ministro Marco Aurélio de Mello do STF, tinha concedido liminar
para uma mulher grávida de um feto anencéfalo executar aborto legal. Mas o voto
de Mello foi acompanhado só por Ayres Brito, Celso de Mello e Sepúlveda
Pertence. Todos os outros (7 ministros) votaram contra a liminar. A mulher,
porém, foi salva por um “antimilagre”: ela não faleceu nem deu a luz. Teve um
aborto natural, contra o qual os 7 juízes não podiam aplicar nenhuma punição.
Com base nesse fato, a Confederação
Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), representada por Luís Roberto
Barroso (vide), jurista célebre por sua militância
em causas humanitárias e progressistas, promoveu uma ação que só foi julgada no
dia 12 de abril de 2012, e aprovada por 8 votos a 2. Entre os apoiadores,
estavam dois juízes que em 2004 tinham votado contra a liminar, mas que
perceberam a nova composição do STF e a pressão social, e “mudaram” suas
idéias.
Dos argumentos a favor da
despenalização do aborto, o mais importante foi o de Marco Aurélio de Mello.
Ele demonstrou com raciocínios impecáveis que a alusão à religião no Preâmbulo
da Constituição Brasileira não pode considerar-se normativa, pois isso
implicaria violar o princípio de liberdade de consciência, amparando apenas as
pessoas crentes e, ainda, as monoteístas. (Vide, passim,
mas especialmente, p. 12 ss).
A observação de Mello vai muito além
do problema em pauta e entra na legitimidade do aborto em geral: a decisão de
uma mulher sobre seu corpo não pode estar sob o jugo de ninguém, nem mesmo dos
teólogos.
O ministro Lewandowski, que votou
contra, parece ter percebido que a legalização no caso de anencéfalos
conduziria naturalmente a autorizar o aborto de qualquer feto que padecesse de
deformações.
Em seu voto (V, p. 5), coloca uma citação grifada em que se menciona
a ilegitimidade do aborto eugenésico (sic).
É impossível conhecer as idéias que envolve a complexa retórica jurídica, mas
esta citação parece aproveitar a má fama da palavra “eugenésico”, que foi muito
utilizada pelo nazismo. Mas deve ter-se em conta que os mais brutais programas
de eugenesia nazista (como o Aktion T4, de
1/9/1939) eliminavam crianças que tinham vida autônoma e não fetos que
só poderiam tornar-se autônomos eventualmente (V).
Admitir
a “humanidade potencial” do feto não viável, seguindo as especulações de Santo
Tomás de Aquino, permite concluir que qualquer medida contraceptiva é
criminosa, pois evita que o óvulo (que sempre
é uma entidade viva) possa ser fecundado.
É verdade que o que se chama anencefalia é geralmente uma atrofia do
cérebro e nem sempre a total ausência dos hemisférios, mas esse defeito é
suficiente para tornar a vida impossível após o parto. Os meninos que vivem com
anomalias cerebrais até idades mais avançadas não são anencefálicos, mas
portadores de defeitos cerebrais graves. Isto causou confusão em alguns juízes,
que finalmente votaram também a favor de ação, porque ativistas antiaborto
apresentaram crianças de mais de 2 anos com sérias disfunções cerebrais que
foram mostradas, falsamente, como anencéfalas.
Aliás, o critério clínico (aceito até
pelos mais fechados fundamentalistas) de morte de um ser humano é o fim das
funções cerebrais e não, como antigamente se acreditava, a parada respiratória
ou cardiológica. Portanto, uma pessoa sem cérebro é uma pessoa morta,
e carece
de sentido dizer que abortar um morto é um crime.
É claro que o aborto produz certo
constrangimento, que se acentuou nos últimos anos quando as pessoas conseguiram
ver os movimentos dos fetos nos diagnósticos de imagem. Mas, isso não implica
que qualquer grupo supostamente iluminado possa substituir a decisão da
portadora, a quem cabe a propriedade de seu próprio corpo.
Entretanto, o que se obteve com esta
decisão do tribunal aqui apenas uma esmola, não pequena, mas esmola e não
direito. Esmolas são importantes: para muitos, elas são a diferença entre vida
e morte. Mas, a dádiva do STJ não permite abortar
outros fetos, mesmo gravemente afetados, que não sejam anencefálicos. A
situação melhorou para alguns milhares de mulheres, mas ficou igual para alguns
milhões.
O Caso do Estupro
O Código Penal Brasileiro, em vigor
desde 1940, autoriza apenas dois casos para autorização de aborto: (1) o que põe
em risco a vida da mãe e (2) o de
gravidez gerada por estupro.
O primeiro caso é claro. Se os que
negam o direito ao aborto se autoqualificam de “defensores da vida”, será
contraditório deixar que as mães morram por causa da salvação do feto. No
entanto, o direito canónico da Igreja católica proíbe o aborto em TODOS os
casos, obrigando, se for necessário, a sacrificar a vida da mãe. Esta é a lei
que rege no Estado do Vaticano, por exemplo.
Como se explica que os “defensores da
vida” proponham o assassinato da mãe? A razão real é que a Igreja sempre desprezou a mulher, e um filho
ainda não nascido poderia ser homem, pois na época não se conheciam os
critérios para determinar sexo. Por outro lado, mesmo se fosse mulher, uma vida
jovem seria mais útil que uma vida mais velha. Uma menina recém nascida teria
mais anos pela la frente que sua mãe para propagar a fé, e tornar-se
reprodutora dos seres que os exércitos e as igrejas precisavam para doutrinar e
usar em seu benefício.
Apesar disso, muitos países com
maioria católica permitem o aborto, quando a vida da mulher está em risco. De
fato, mesmo no Brasil de 1940, dominado por um semifascismo, parecia
exageradamente sádico proibir o aborto em todos
os casos, e condenar as gestantes a morte para satisfazer
a sede de revanche de teólogos sexófobos. Aliás, apesar do caráter factualmente
teocrático (embora simbolicamente democrático) dos países da América Latina, os
elementos liberais dentro da classe política, mesmo minoritários, exercem
alguma influência.
O segundo caso é o do feto que é fruto
do estupro. Aqui, as coisas se entendem menos. O CPB de 1940 não
autorizava abortar um feto sem cérebro, mas autorizava abortar um feto totalmente saudável, por ter sido fruto
de estupro.
É claro que uma mãe tem direito de
abortar um feto cujo pai é o homem que a estuprou. Aliás, a mãe tem direito
natural de abortar em qualquer circunstância que esteja no intervalo de
não viabilidade. (Usualmente, se convenciona em fixar este intervalo em 12
semanas).
Mas o filho de um estuprador será tão
normal como qualquer outro, e a mulher muitas vezes opta por criá-lo sozinha ou
com outro parceiro. Estes casos são
comuns e a incidência de transtornos na criança não são maiores de outros casos
em que o filho desconhece o pai biológico.
Então, por que os legisladores
reacionários e religiosos sustentam que: (1) O aborto de um feto saudável, no caso de estupro, é legítimo, e que (2) o aborto de um feito sem
cérebro é um crime?
Há vários motivos:
1. Um deles se deduz muito bem de um
comentário do ministro Peluso em 2001: o sofrimento (neste caso, da mãe) é um
fator de purificação. Claro que o ministro se refere ao sofrimento dos outros.
2. Doutrinas obscurantistas acreditam no
pecado original. Todo mundo é culpado pelo delito de Adão e Eva, e isso se
herda durante milênios. Portanto, filhos de pessoas que cometem delitos (e o
estupro é um delito) são, mesmo em forma de feto, criminosos potenciais. Então, permitir que sejam abortados (embora
seja um pecado) é um pecado menor que
abortar o filho de um home de “bem”. Algumas religiões orientais até obrigam a abortar o feto produto de estupro.
Como vemos, há culturas ainda mais brutais que as nossas.
3. Se a mulher for casada,
compromissada, o namorada de alguém, ter um filho de estupro seria interpretado
pela cultura machista, como afronta para o parceiro.
O contraste é bizarro:
(1) Uma mulher está obrigada a dar a luz
um filho morto, com o risco dela também morrer. “Abortar” esse morto é crime.
(2) Todavia, não será crime se o pai fosse um estuprador.
Para os
moralistas místicos, é mais grave ter um pai que cometeu um delito que não ter cérebro. Dá para entender: teólogos,
puritanos e afins nunca precisaram de cérebro. Então, não entendem por que outros
dão tanta importância a algo que eles não usam.
Paradoxos e Contradições
Para a Igreja católica e outras
seitas, os filhos pertencem a Deus, como toda a Humanidade, mas são “alugados” aos
pais, que têm sobre eles todos os direitos. Abraham, por exemplo, estava
disposto a matar o filho, porque Deus mandou fazer isso.
Ainda hoje, filhos de famílias
monoteístas muito religiosas são tratados como pequenos robôs. Eles devem fazer
tudo o que seus país mandem, e estes, por sua vez, recebem suas diretrizes do
padre, dos moralistas oficiais, dos professores conservadores, da mídia, dos políticos,
dos militares.
Observemos esta contradição:
Segundo as igrejas, um menino e, mais
ainda, uma garota, de 13, 15 e, às
vezes, até de 20 anos, deve estar submetido a seus pais, em assuntos morais,
trabalhistas, de conduta e de estudo. Eles são tratados, como se fossem partes do corpo de seus pais,
sem vontade nem sentimentos próprios. Claro que atualmente essa tirania
familiar enfrenta cada vez maiores rebeliões, mas, nas famílias tradicionais,
ricas ou pobres, da América Latina, isso ainda existe em grande proporção.
Ora, inversamente: um feto não viável
(digamos, de 2 meses), que é um ente biológico embutido no corpo de mãe, é
considerado por carolas e obscurantistas um
ser independente, sobre a qual a mãe não possui nenhum direito.
A contradição é crua:
(1) Os filhos, que são seres biológicos independentes, devem ser escravos de seus pais.
(2) Óvulos fecundados da mãe, que fazem parte de seu organismo, devem ser tratados como
pessoas com todos os direitos.
Para a filosofia familiar católica,
por exemplo, uma criança de 10 anos pode ser chicoteada por seus pais “para
coloca-los no reto caminho de Deus”, mas um feto de 2 meses deve ser tratado
como um ser independente e com vontade própria.
Como se entende isto?
A parte (1) é fácil de entender. Os obscurantistas
que queimavam na fogueira os cientistas, os inteligentes e os amantes da
liberdade, precisam que suas doutrinas (cada vez menos respeitadas) sejam
transmitidas pelo meio familiar. Um menino de 14 anos nunca acreditaria por si
próprio que pode ir ao inferno por “brincar” prazerosamente e com segurança com
uma menina de 13. Mas, se ele for criado num clima doentio, onde se fala de
pecado, castigo e sofrimento, pode acabar acreditando.
A parte (2) tem a ver com a
necessidade histórica dos religiosos de impor sofrimentos a seus fieis. A
Igreja não combate apenas o aborto, mas também a eutanásia. Um filho que não
pode ser sustentado nem educado chegará ao mundo para sofrer. Um paciente
terminal de uma moléstia dolorosa passará por sofrimentos inúteis, se não receber
eutanásia.
Esta apologia da dor é típica das
igrejas e dos corpos militares, pois o sofrimento torna as pessoas fracas, indefensas
e manipuláveis, e as transforma em máquinas humanas.
Conclusões
O aborto é um problema de saúde pública, mas não apenas isso.
Se não houvesse razões sanitárias
para abortar, dentro do prazo em que feto não tem vida independente, a simples
decisão da portadora, sobre quem recai a responsabilidade de que a criança seja
desejada e feliz, deveria ser suficiente.
O único que pode ser pedido da
gestante é que aceite se submeter a uma conversa com psicólogos, sociólogos e
outros professionais, para conferir se sua decisão é firme, se realmente possui
convicção de que deseja interromper a gravidez. De fato, em muitos níveis da
vida, às vezes não sabemos exatamente o que queremos, e devemos ter uma
oportunidade de que alguém nos ajude a pensar.
Obviamente, não deve fazer-se uma aplicação
massiva do aborto, nem, muito menos, estimulá-lo, como se faz na China e em
Cuba, onde o aborto é utilizado para evitar problemas ao estado, sem respeito
pelos sentimentos da mãe.
A entrevista da gestante com
especialistas teria como objetivo comprovar
a decisão da mulher, e observar se ela teria interesse em se arrepender.
Mas, o grupo examinador não tem em absoluto o direito influir para
que e a mulher adote uma decisão pré-determinada. O objetivo é
ajudar emocionalmente a gestante, descobrir qual é sua vontade real e
respeitá-la. Não é
convencê-la.
A atual modificação do Código Penal
Brasileiro que está sendo sugerida em 2012 por um grupo de juristas, é ainda
confusa, porém é claro que permite às
comissões de psicólogos e médicos, a intromissão de decidir se a mulher merece
ou não abortar. Isto é uma farsa
e os movimentos de DH deve se apressar a confrontar-se contra ela.
O aborto é, geralmente, um processo
traumático, e deve ser tratado como recuso final. Nesse sentido, é análogo a um
processo médico, ao qual uma pessoa se submete mesmo que produza dor. Portanto,
usá-lo como meio alternativo à contracepção é irracional e angustiante. Ele só
deveria ser aplicado quando a mãe tem clara consciência de que a continuidade
da gestação implica em transtornos para a própria criança, a mãe e seu entorno.
Por outro lado, nos últimos anos se
experimenta uma reversão nas preferências pelo aborto. Desde 1995, nos países
desenvolvidos, a tendência a rejeitar o aborto foi sempre menor que a tendência
a aceita-lo. Mas, nos EEUU, a relação inverteu-se. Atualmente, 51% dos adultos
americanos se consideram anti aborcionistas e 42% pró-aborcionistas. Isto pode
dever-se à crescente pressão de pentecostais e católicos, que estão aliados
para este propósito. Mas, também pode influir, como disse no começo deste
artigo, a percepção de fetos nos exames de imagem.
O aborto pode provocar reações
melancólicas, sensação de desejo de maternidade frustrado, e a impressão de ter
interrompido um processo. Também está a culpa,
mas esse é um sentimento espúrio que deve ser elaborado pela pessoa que aborta.
Entretanto, a sensação de perda é bastante comum. Algumas mulheres pensam: “gostaria
de ter condições para aceitar esse bebê”. Mas, devemos lembrar que é mais grave
ainda a responsabilidade de dar a luz um bebê que, por razões psicológicas,
sociais ou médicas, não poderá ser feliz.
Ora, quem deve decidir se está
disposta ou não a eliminar o feto de seu corpo no período em que ele é inviável,
é exclusivamente a pessoa a cujo corpo pertence o ser abortado.
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