Comissão de Verdade: Um Acordo
Simbólico Para Crimes Reais
Carlos A. Lungarzo
As Comissões de Memória e Verdade
instaladas nos países que sofreram ditaduras não são tribunais, onde os
eventuais culpados dos crimes em apreço serão julgados, mas organismos de
pesquisa, onde as responsabilidades
dos possíveis algozes serão esclarecidas.
Que exista ou não um posterior
julgamento considerando os algozes como réus depende do poder judicial nacional
ou, como aconteceu em outros países (Ruanda, ex-Iugoslavia, Congo, parcialmente
Argentina) por cortes internacionais de Direitos Humanos.
Os objetivos das Comissões de Verdade
e Memória são:
1. Identificar os autores, instigadores
e planejadores dos crimes de lesa humanidade cometidos pela ditadura.
2. Estabelecer com a maior precisão
possível quais são esses crimes, e quais seriam as penas cabíveis se o caso
fosse enviado a um tribunal.
3. Guardar memória dos criminosos, e incorporar seus nomes a história oficial, que hoje
homenageia tiranos, torturadores, fascistas, golpistas e outros representantes
das capas opressoras da sociedade.
As Comissões de Memória e Verdade
(CMV) não estabelecem, por si mesmas, punições para os criminosos. Aliás, se
estes fossem julgados depois, os tribunais deverão analisar todas as provas
encontradas. Portanto, carece de sentido pedir às CMV a mesma neutralidade que se
pede a um organismo que deve emitir veredicto.
O papel que cabe às CMV’s é reunir
todos os testemunhos possíveis dos possíveis crimes dos militares e seus
aliados, e avaliar a veracidade, o
impacto e as responsabilidades iniciais (que deverão ser analisadas depois pela
justiça) de seus autores.
Como em toda investigação sobre fatos criminosos, é necessária a presença
de: (1) Os analistas e investigadores; (2) As testemunhas e (3) AS VÍTIMAS.
A justiça não se fez para satisfazer
as VÍTIMAS, porque a justiça moderna
não procura (pelo menos, teoricamente) a vingança, mas a autêntica restituição.
Trata-se de satisfazer a necessidade de segurança, justiça e futuro das
sociedades. Mas, para comprovar a ocorrência de crimes anteriores, a presença das vítimas desses crimes é
fundamental.
Essa é a razão pela qual as comissões
de verdade devem incorporar entre seus
membros representantes das vítimas da repressão, ou então as próprias
vítimas.
A Comissão de Verdade que se está
montando no Brasil, segundo versões dos meios especializados, poderia
considerar alguns representantes das vítimas, como a esposa do assassinado
Vladimir Herzog, ou a filha de Rubens Paiva,
Entretanto, julgando pelos dados
disponíveis por enquanto, parece que Comissão estaria deixando fora outro tipo
de opositores à ditadura, que constituem o setor mais numeroso de vítimas: aqueles dos que agiram na luta armada.
Com efeito, diferentemente do que
aconteceu no Chile, na Grécia, na Argentina e na América Central, os membros de
formações armadas antiditadura e militantes de luta assimétrica constituem a
maior proporção de presos, torturados e assassinados. Em todos os outros
países, a guerrilha representa apenas uma parte, nem sempre grande, de vítimas.
Na Argentina, por exemplo, o governo fascista-populista de Isabel Perón (porém,
“democrático”) tinha exterminado mais de 2000 membros da guerrilha antes que os assassinos fardados
assumissem o poder. É verdade que a guerrilha tinha muito mais de 2000 membros,
mas a maioria deles tinha conseguido refugiar-se em diversos países das
Américas, da Europa e até da África.
Os militares argentinos deram o golpe
de 1976 não para combater a guerrilha quase extinta (esse foi apenas um
pretexto), mas porque tinham um plano de extermínio que incluía a aniquilação
de todos os membros da esquerda, especialmente sindicalistas, jornalistas,
intelectuais, operários, etc. Embora o número dessas vítimas seja discutível,
ele excede, com certeza, o número de 30.000, que fora adotado como quantidade
padrão em 1978, quando a ditadura ainda tinha 5 anos pela frente.
No Brasil foi diferente, pois a
ditadura brasileira focalizou seu ataque mais feroz majoritariamente nos grupos
de luta assimétrica. Então, o justo seria a inclusão de um número de membros da
comissão proporcional à quantidade de membros de guerrilha que foram vítimas da
repressão.
Entretanto, os organismos oficiais de
direitos humanos não parecem tomar em conta este dado. O fato de que a chefe de
Estado pertença a esse grupo não deve usar-se para descartar a inclusão de
outros antigos membros da guerrilha, já que ela representa neste momento o
poder público, e não a parte das vítimas.
O argumento segundo o qual não podem ser colocados na Comissão
ex-membros da guerrilha, porque isso exigiria colocar também representantes
dos algozes é uma perversão conceitual que atende ao modelo dos DOIS DEMÔNIOS. Este modelo, como outras
barbaridades, foi criado também pela direita Argentina.
Em 1984, ao preparar o processo
contra as juntas militares, o então presidente Alfonsín comparou o massacre de
milhares de pessoas a uma luta entre dois demônios, o “demônio” da “subversão”
(as forças que se insurgiram contra a fascistização que culminou na ditadura) e
o demônio da repressão.
Obviamente, ninguém é tão
anencefálico como para pensar que ambos os tipos de forças se equivalem.
Alfonsín usou este miserável slogan para
não perder as boas graças que todo político argentino que esteja dentro do sistema
(incluído, na época, o partido comunista) usufrui dos militares. Foi uma medida
covarde, porém insuficiente, porque dois anos depois, o governo mandou ao
congresso uma lei que não só indultava, como justificava os crimes da ditadura.
A proposta de CMV no Brasil tem um
tamanho reduzido, e seu funcionamento parece pensando para diluir sua eficácia.
Mas, a pesar disso, a presença de representantes de Herzog e Paiva satisfaria a
condição de dar voz aos parentes das vítimas não armadas. Não entanto, há uma falha fundamental: a ausência dos quadros da
luta armada. Eles foram os mais afetados, e os que sofreram a repressão
mais dura e desproporcional. Também foram os que mais arriscaram. Ao
excluí-los, a Comissão parece negar legitimidade ética à luta (algo que deve
ser cuidadosamente separado de sua eficiência política, que é algo que não está
em jogo).
Pessoalmente, minha organização nunca
apoiou a luta armada como método, mas a
gente se pronunciou sempre no sentido de que os lutadores armados deviam ser
considerados como vítimas absolutamente legítimas. No caso de La Tablada
(Argentina, 2000), consideramos os ex combatentes do grupo TPP como autênticos
perseguidos políticos, embora não fossem perseguidos “de consciência”.
Essa também foi a atitude de Paul
Benenson (1921-2005), o fundador de Anistia Internacional, em 1978, quando
atraiu corajosamente contra si a crítica da esquerda burocrática europeia, apoiando
os direitos dos prisioneiros da Rote
Armee Fraktion, o grupo guerrilheiro alemão conhecido pelo nome de seus
líderes Baader-Meinhof, embora ele, como toda a organização, discordasse dos
métodos usados.
A ignorância ou o desdém pelas
vítimas armadas é uma gravíssima injustiça. Se o problema é que os militares
podem ficar zangados, um governo democrático deve desafiar esse risco, se
quisermos que a democracia tenha credibilidade no futuro.
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