Por Celso Lungaretti
Tinha 78 anos e fazia cinema desde 1959.
Em mais de meio século de atividades, dirigiu 13 filmes, nove dos quais também roteirizou.
Foi um dos fundadores do cinema novo, mas nem de longe fez obras de importância equiparável às dos dois outros parceiros de empreitada: Glauber Rocha (indiscutivelmente, o maior cineasta brasileiro de todos os tempos) e Nelson Pereira dos Santos (bem mais prolífico e realizador de clássicos como Rio 40 Graus e Vidas Secas).
No entanto, Saraceni constituiu-se numa referência muito forte para minha geração, por um único motivo.
Seu O Desafio, lançado em 1965, foi uma resposta cinematográfica à quartelada.
Enfoca os sentimentos de culpa, impotência e prostração subsequentes à vergonhosa derrota sem luta.
Foi o mal-estar que acometeu toda aquela esquerda: supunha-se a um passo do poder, iludida pelo triunfalismo inconsequente do Partido Comunista Brasileiro e seu principal dirigente (Luiz Carlos Prestes), mas acordou ouvindo marchas militares no famigerado 1º de abril de 1964.
E dá-lhe más ressacas! E dá-lhe lavagens de roupa suja! E dá-lhe lutas internas no partidão! E dá-lhe rachas!
Em 1965, a esquerda lambia as feridas e se reconfigurava, voltada para dentro de si mesma. Não reagia.
Aí, foi lançado O Desafio. E --juro!-- o título apareceu pichado nos muros de São Paulo. Só o título, com a tinta escorrendo. Eu tinha 14 anos, via aquilo e nada entendia. Ignorava que fosse uma mensagem vinda das catabumbas: não estamos mortos!
Só em 1967, dando os primeiros passos no movimento estudantil, fui assistir ao filme e compreender o motivo das pichações.
E, francamente, não gostei daquele imenso desencanto que ele flagra, o atoleiro no qual se move Marcelo, o personagem politizado (interpretado pelo Vianninha, de saudosa memória), durante quase todo o tempo.
Mas vibrei com o final, quando ele enfim levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima, decidido a voltar ao bom combate.
Isto ficou apenas sugerido, como se fazia necessário sob o tacão da censura. Depois de um porre com um repulsivo colega de trabalho, vão ao apartamento deste, cuja esposa se despe e se-lhe oferece. Antes que ele tenha qualquer reação, o marido acorda e fita ambos, em meio à sua névoa alcoolica. Marcelo empurra a mulher e vai embora, enojado. Desce uma escadaria com expressão resoluta, afaga a cabeça de um menino pobre e se distancia, marchando ao encontro do seu destino.
Tudo isto ao som do tema "É um tempo de guerra", da peça Arena conta Zumbi.
Ou seja, da canção que Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Edu Lobo haviam derivado de uma poesia antológica de Bertolt Brecht, para usar o esmagamento do quilombo de Palmares como metáfora do golpe militar.
Na peça, era a lição que um guerreiro às portas da morte legava aos que viriam depois. Uma sugestão velada também, claro ("Eu sei que é preciso vencer/ Eu sei que é preciso lutar/ Eu sei que é preciso morrer/ Eu sei que é preciso matar"). Só que parecendo algo meio distante, lá pra frente, pois o momento era de derrocada.
No filme, ficou mais fácil perceber que se tratava do passo seguinte, imediato: um recado de que não só a luta tinha de ser retomada, como assumiria doravante características de guerra.
Foi profético. Houve mesmo a guerra, de consequências trágicas para a esquerda (quantos quadros insubstituíveis foram dizimados!), mas inevitável: ela só reconquistaria o respeito do povo caso se dispusesse a sangrar por seus ideais, como deixara de fazer em 1964.
Muitos dos que não pegaram em armas recriminaram nosso vanguardismo, nosso imediatismo pequeno-burguês. Segundo eles, só servimos para acirrar a repressão e fornecer pretextos para o endurecimento do regime.
http://youtu.be/Kel6lI04W5A
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