Quando saí dos cárceres da ditadura militar, com uma lesão física permanente, muitos problemas psicológicos e terríveis danos morais, havia aclarado meu conceito sobre ditaduras.
Antes já repudiava as de direita, claro, mas me deixara iludir pelos textos que impingiam, como mal necessário, uma ditadura do proletariado, atenuada nas ressalvas: seria tão cirúrgica quanto possível, durando apenas o tempo necessário para se criarem os pré-requisitos de sua abolição.
A experiência vivida falou mais alto do que qualquer argumento: decidi que nada, absolutamente nada, justificava que um indivíduo fosse colocado na condição de vítima indefesa do Estado, qualquer que fosse o Estado.
Meus algozes podiam me torturar como e quando bem entendessem.
Privar-me do sono, de roupas, de alimentos, de higiene, de assistência médica e até da luz solar.
Ameaçar-me de estupro (com as mulheres, muitas vezes iam às vias de fato).
Simular roletas russas e fuzilamentos.
Emitir comunicados mentirosos a meu respeito.
E me matar, seja por excessos involuntários nas sessões de tortura, seja por tédio.
Aos 19 anos, estive próximo de um enfarte no terceiro dia de prisão, quando, após medirem minha pressão, suspenderam as torturas e me encheram de calmantes.
Ao contrário do que aconteceria a partir de 1971, ainda não haviam partido para a matança indiscriminada -- não por respeito à vida humana, mas porque as mortes chocantes davam ensejo a campanhas humanitárias exortando governos estrangeiros a suspenderem linhas de crédito para o Brasil.
A partir do quarto diplomata trocado por presos políticos, no entanto, os tiranos decidiram absorver os prejuízos de ordem econômica, de preferência a exilar militantes que pudessem depois voltar e contribuir para a libertação do povo brasileiro.
Então, ao invés de oficializar suas prisões, passaram a sequestrá-los, levá-los para centros de tortura clandestinos, submetê-los aos piores suplícios, executá-los e dar sumiço nos cadáveres.
Mesmo quando a ordem ainda não era matar, contudo, houve oficial que me incentivou a tentar a fuga, "agora que ninguém está olhando", para me fuzilar pelas costas e depois apresentar seu ato como necessário. Por quê? Porque havia tido um mau dia e estava enfastiado...
A PRIMEIRA BRECHA
Enfim, percebi que jamais se deveria conceder ao Estado tamanho poder sobre o cidadão, por não haver garantia nenhuma de que, mesmo sendo fixados limites, estes não seriam ultrapassados ao sabor dos acontecimentos.
Os textos marxistas sobre ditadura do proletariado e, p. ex., nem de longe justificam os massacres de camponeses durante a coletivização forçada na URSS ou os genocídios de Pol Pot no Camboja. No entanto, estes decorreram daqueles.
Vale lembrar uma frase antológica do filme O Julgamento de Nuremberg (d. Stanley Kramer, 1961).
Face ao desabafo de um magistrado alemão, estupefato por as coisas terem saído tanto do controle durante a era nazista, um membro do tribunal explica:
Face ao desabafo de um magistrado alemão, estupefato por as coisas terem saído tanto do controle durante a era nazista, um membro do tribunal explica:
"Esses horrores todos começaram quando o primeiro juiz condenou o primeiro réu que ele sabia ser inocente".
Então, não se pode deixar que seja aberta a primeira brecha, ainda que ínfima, pois haverá sempre os que a alargarão.
Quem luta para criar a sociedade perfeita, com a concretização plena da liberdade e da justiça social, não deve transigir com nenhuma ditadura e nenhuma forma de desigualdade, seja em que ponto for da caminhada. Caso contrário, não chegará aonde pretendia, mas a lugar bem pior.
FARSA CONTRA SAKINEH
Foram as reflexões que me vieram à mente após ler que as autoridades iranianas exibiram na TV um vídeo com uma suposta Sakineh Ashanti, em fala ademais dublada, praticamente admitindo a cumplicidade jamais provada no assassinato do seu marido.
Foi condenada a ser apedrejada até a morte por adultério, só por adultério.
Como isso teve a pior repercussão possível junto às pessoas civilizadas do mundo inteiro, armaram uma farsa para justificar a sentença hedionda.
E o fizeram depois de privarem sakineh do seu advogado, com abusos grotescos, inclusive o de aprisionar-lhe os entes queridos para usá-los como reféns.
Assim como quando Stalin fazia condenarem dignos revolucionários sob pretextos os mais falaciosos e ridículos, depois de triturados em seus cárceres, não existe condescendência possível com tais práticas por parte de quem pretende sinceramente transformar o mundo.
Há que se defender, sim, o Irã das ameaças de intervenção armada dos EUA, como represália por seu programa nuclear.
Mas, isto não pode -- jamais!!! -- implicar nossa conivência com o estupro sistemático dos direitos humanos por parte das autoridades iranianas.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva ofereceu oficialmente asilo a Sakineh, dando aos aloprados do Irã uma saída honrosa neste episódio, ao menos.
Então, o assassinato com requintes de extrema crueldade que tramam só servirá à propaganda dos EUA enquanto eles mantiverem sua postura de fanática/asnática intransigência.
E enquanto a mantiverem, não merecem a simpatia de ninguém. São bárbaros empedernidos e cruéis assassinos. Nada mais.
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