segunda-feira, 1 de março de 2010

DISSIDENTES CUBANOS: MUITO SOFRE QUEM PADECE


Face a certas tragédias sobre as quais jornalistas e leitores cansavam de repetir o mesmo blablablá que nada resolve, Paulo Francis costumava ironizar: "muito sofre quem padece".

Caso recente do Haiti, cujos males estão diagnosticados há tanto tempo, sem que se vislumbre a mais remota possibilidade de que ocorra a mobilização de vontades e recursos necessária para as correções estruturais que se impõem.


Condenado a ser pária no mundo enquanto o mundo permanecer sob o jugo desumano do capitalismo, sua única esperança é uma transformação em escala maior. Até lá, muito continuará sofrendo porque padece...

Os reacionários agora me cobram que comprove ser mesmo defensor dos direitos humanos, posicionando-me sobre Cuba. Com seu habitual primarismo, ignoram que, longe de omitir-me, já me pronunciei na semana passada.

No fundo, trata-se de outro beco (quase) sem saída. Vamos recapitular.

Nos anos 50, a União Soviética não via com bons olhos revoluções na esfera de influência dos EUA, que pudessem lhe trazer complicações desagradáveis, num momento em que priorizava a consolidação do seu modelo político/econômico nos países que o Exército Vermelho libertara no fim da 2ª Guerra Mundial.

E a via chinesa, de formação de um exército revolucionário no campo e cerco das cidades, mostrava-se inviável na América Latina, na qual quem dominava as cidades tendia a esmagar sem maiores dificuldades as rebeliões rurais.


Aí, um pequeno grupo de abnegados conseguiu iniciar a derrubada da corrupta e sanguinária ditadura de Fulgêncio Batista com uma variação do modelo chinês: criou colunas guerrilheiras que surpreendiam o inimigo e depois embrenhavam-se nas serras, acumulando forças e conquistando aos poucos o apoio da população.

Foi uma mágica que só deu certo da primeira vez, e nas condições peculiares de Cuba, ilha que tinha como principal atividade econômica a monocultura da cana-de-açúcar e cujo tirano era particularmente repulsivo para seu povo.

Nas duas décadas seguintes, reprises seriam tentadas noutros países do subcontinente com monoculturas e ditadores repudiados, mas, havendo possibilidade de êxito, os EUA tratavam de erradicá-las com seu grande porrete, corporificado em ajuda econômica e assessoria militar.

Numa nação de dimensões continentais como o Brasil, o foco guerrilheiro se mostrou mais inadequado ainda, sendo descoberto e atacado antes mesmo de iniciar operações.

Quem conseguiu alguns êxitos foi a guerrilha urbana, principalmente aqui (vários grupos, começando pela ALN e VPR), na Argentina (ERP e montoneros), Uruguai (tupamaros) e Chile (MIR). Trinfos temporários, contudo. Causaram impacto, mas a avassaladora superioridade de forças e os métodos bárbaros do inimigo acabaram prevalecendo.

O certo é que os revolucionários cubanos, face ao embargo implacável dos EUA, sonhavam com a construção do socialismo apoiada por outras revoluções latino-americanas, mas tinham de curvar-se à evidência dos fatos, aceitando a tutela da União Soviética, que lhes dava sustentação econômica mas impunha, como contrapartida, limites de atuação no exterior.

A CRISE DOS MÍSSEIS E O MARTÍRIO DE GUEVARA

A crise dos mísseis, em 1962, foi o sapo mais indigesto que tiveram de engolir.

Depois que os EUA insuflaram a fracassada invasão da Baía dos Porcos, a URSS instalou armamento atômico na ilha, aparentemente apenas para dissuadir os norte-americanos de outras aventuras intervencionistas.

A reação estadunidense colocou o mundo à beira do apocalipse. E o acordo que pôs fim à crise pareceu um recuo humilhante da URSS, que retirou os mísseis -- embora houvesse uma cláusula não divulgada segundo a qual os EUA se comprometeram a nunca mais tentarem derrubar ou favorecer a derrubada do regime cubano.

O certo é que a imagem passada para o mundo foi de que a cavalaria botara de novo os índios pra correr.

Daí a indignação dos líderes cubanos, que foram totalmente ignorados por Kruschev enquanto negociava com Kennedy, recebendo depois a decisão como um prato feito; e a heróica iniciativa de Che Guevara, de tentar pessoalmente levantar novas revoluções, que livrassem Cuba da dependência exclusiva da URSS.

Isto também falhou e só restou a Fidel a opção de construir sua versão tropical do socialismo com todas as limitações de uma nação pequena, pobre e asfixiada pelo embargo econômico -- as quais acentuaram-se ainda mais quando as nações do antigo bloco soviético voltaram ao capitalismo.

Conseguiu alguns êxitos notáveis em educação e saúde, principalmente. Mas, não teve como oferecer prosperidade ao povo. E a experiência soviética ensina que as massas submetem-se a terríveis sacrifícios em nome de um ideal durante algum tempo, mas não por todo o tempo.

Quando os sacrifícios se tornavam rotina, sem nenhuma luz à vista no fim do túnel, a URSS resvalou para o estado policial.

Cuba não reproduziu na mesma escala os horrores do stalinismo, principalmente porque não houve cisão significativa no partido: os revolucionários de primeira hora cubanos concordaram com a mudança de rumos como resposta às circunstâncias adversas, ao contrário de boa parte da velha guarda bolchevique, que resistiu bravamente ao desvirtuamento dos ideais de 1917, até ser imolada.

Então, quem enfrentou o indiscutivelmente popular Fidel Castro não foram figuras exponenciais como Trotsky e Bukharin, mas intelectuais sem muito prestígio junto ao povo, alguns trabalhadores como Orlando Zapata e também cubanos fascinados ou teleguiados pelo capitalismo (eles existem, claro, mas é uma falácia sustentar que todos os oposicionistas o sejam).

E os irmãos Castro, com flagrantes violações dos direitos humanos desses dissidentes, têm conseguido evitar que as brisas se tornem verdadeiros ventos de mudança.

Então, de um lado eu repudio veementemente tais perseguições políticas, pois nenhum outro posicionamento é admíssivel para um homem civilizado e para um verdadeiro revolucionário; do outro, não vislumbro nenhuma possibilidade de que apenas os discursos e abaixo-assinados, mesmo transbordantes de justa indignação, venham alterar o quadro que levou à morte de Orlando Zapata.

Com o colapso físico de Fidel, os dirigentes cubanos dificilmente ousarão desmontar a estrutura do estado policial no instante em que o regime está prestes a encarar o desafio de sobreviver à sua figura mais emblemática. Alguma turbulência sempre haverá, quando a morte for anunciada. Quanta, nem mesmo eles sabem.

É claro que, se tiverem uma perspectiva de prosperidade a oferecer ao povo cubano, poderão até decidir que vale a pena correr o risco.

Daí ser este o momento em que Barack obama poderá se colocar à altura das esperanças que despertou, dando contribuição decisiva para que seja virada uma página lamentável da História.

Como? Pondo um fim ao injusto, contraproducente e odioso embargo econômico de Cuba, um abuso inominável de poder, que fere profundamente o direito de autodeterminação dos povos.

Caso contrário, o mais provável é que os dissidentes cubanos continuem muito sofrendo porque padecem, independentemente do clamor dos justos e da grita demagógica dos injustos.

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