Como meu sobrenome deixa evidente, sou de ascendência italiana (por parte do avô paterno e do bisavô materno).
Mas, os dois ramos já haviam se dissociado desse passado quando eu começava a entender as coisas.
Uma lembrança remota da minha meninice foi a do meu pai e meu tio comentando a morte de um ancestral famoso: Angelo Lungaretti. Circulava de mão em mão a notícia publicada no jornal italiano Corrieri della Sera.
Atraído pelas promessas dos fazendeiros brasileiros, que mandavam recrutadores à Itália oferecendo viagem gratuita, Angelo Lungaretti veio trabalhar na lavoura cafeeira.
Raul Salles, filho do fazendeiro Diogo Eugênio Salles, assediou a irmã de Angelo. Este tentou transferir-se com a família para outra fazenda, mas Raul fez com que fossem rejeitados. E ainda persuadiu o delegado de Analândia a prender Angelo por embriaguez.
Quando o soltaram, no dia 3 de outubro de 1900, Diogo e Raul tentaram expulsar os Lungaretti da fazenda, sem pagar-lhes os 2.000 réis a que faziam jus por seu trabalho. O velho Francisco, pai de Angelo, disse que não sairiam. Diogo agarrou-o, sacudiu-o e atirou-o no chão.
Angelo, vendo o pai desmaiado, supôs que estivesse morto. Com uma velha e enferrujada garrucha, disparou contra Diogo, ferindo-o mortalmente.
Seguiu-se uma série de descalabros, como as torturas sofridas por habitantes de Analândia para que depusessem contra Angelo.
No processo, não foi levada em conta a minoridade do réu (Angelo ainda não completara 21 anos) nem se providenciou tradutor para ele e as testemunhas da defesa que não falavam bem o português, além de se relevarem várias contradições dos acusadores.
O falecido era irmão do presidente Campos Sales, que cogitou até a instauração da pena de morte, com efeito retroativo, para que pudesse ser aplicada nesse caso; foi dissuadido pela Inglaterra.
O governo italiano, supondo tratar-se de mais um anarquista, não deu a mínima. Angelo foi, entretanto, fortemente apoiado pela colônia, que até se cotizou para pagar-lhe um advogado famoso. Isto não impediu sua condenação a 21 anos de reclusão.
Finalmente, numa mudança de governo, foi libertado depois de cumprir sete anos e meio da pena. Voltou à Itália, onde levou vida tranqüila até a morte, em 1960.
Mas, esta história familiar não me interessou muito na época. Só fui lhe dar valor muito tempo depois, em função do rumo que minha própria vida tomou.
O que me predispôs mesmo a valorizar meu sangue latino foram os livros do primeiro autor que me fez a cabeça: Monteiro Lobato, com sua verdadeira veneração pelo legado greco-romano.
Graças a ele, passei a identificar a Itália com o humanismo, o equilíbrio, a sensatez. Não com o fascismo que só a derrota na II Guerra Mundial conseguiu apear do poder.
E foi ainda a arte reforçou minha admiração pela Itália: desde os fundamentais escritores Dante Alighieri, Alberto Moravia e Italo Calvino até os maravilhosos filmes de Federico Fellini, Ettore Scola, Mario Monicelli e tantos outros.
Sem nunca ter podido conhecer a pátria dos meus antepassados, eu a imaginava como um contraponto ao sôfrego e calculista american way of life: uma terra aprazível, com um povo compassivo, que sabia viver. Pensava em cada italiano como um Marcello Mastroianni e em cada italiana como uma Sofia Loren.
E, embora estivesse ciente dos excessos com que foram combatidos os militantes da ultraesquerda na década de 1980, não os associava ao povo italiano. Para mim, a culpa toda era do PCI, que aliara-se ao partido da burguesia facinorosa (a Democracia-Cristã) contra os verdadeiros revolucionários, tangendo-os ao desespero e a atitudes insensatas como a execução de Aldo Moro.
O Caso Battisti desfez rudemente minhas ilusões: percebi que muitos italianos comuns, a exemplo do que ocorria durante o fascismo, continuam se deixando tanger por lideranças demagógicas e rancorosas.
Assim como os brasileiros foram levados pela mídia a quase trucidarem os donos da escola-base, houve italianos que aderiram insensivelmente à caça às bruxas desencadeada por Berlusconi. Que decepção!
Então, já não me surpreende a introdução de medidas repulsivas como as que a Itália adotou neste ano de 2009 para combater a imigração ilegal, propostas, claro, pelo governo Berlusconi, como as pesadas multas impostas a clandestinos e o risco de prisão que passaram a correr os que os hospedam.
Também foi aumentado de dois para seis meses no tempo de detenção de imigrantes ilegais e se criaram rondas locais de cidadãos comuns (esquadrões de delatores voluntários) para localizá-los, secundando o trabalho da polícia.
É essa Itália mesquinha e intolerante que persegue Battisti, para exibir sua cabeça como troféu, marcando o reencontro com aquele passado em que os trens chegavam sempre no horário, a autoridade era sagrada e o Duce zelava por todos.
Mas, nem tudo está perdido: a agência France Presse informa que 3 mil cidadãos de Cocaglio, no norte da Itália, se manifestaram pacificamente neste sábado (28) contra a decisão de seu prefeito de realizar a contagem dos estrangeiros da comunidade para denunciar os clandestinos às autoridades.
Como a cidade tem apenas 8 mil habitantes, o movimento denominado United Colours of Christmas (alusão à publicidade da Benneton) foi dos mais significativos.
E recebeu o apoio do Vaticano: "Esta ideia de relacionar o Natal e a difícil realidade que afeta os seres humanos é uma coisa dolorosa", declarou o presidente do Conselho Pontifício para os Imigrantes, monsenhor Antonio Maria Veglio.
Do outro lado, estão um medíocre prefeito eleito pelo fascistóide partido anti-imigrantes da Liga Norte e seu colega de agremiação política, o ministro do Interior do igualmente fascistóide Governo Berlusconi, um tal de Roberto Maroni.
Maroni é aquele que decidiu construir um centro de identificação e expulsão de imigrantes ilegais na ilha de Lampedusa, tida como a entrada da Europa.
Ou seja, simbolicamente, ele quer fechar a porta do continente aos miseráveis, como o príncipe Próspero fechou as portas do seu castelo aos aldeões, deixando-os entregue à peste, no imortal conto de Edgar Allan Poe, A Máscara da Morte Rubra. Torço para que ele receba o mesmo castigo de Próspero.
E (sem muitas esperanças, confesso), torço também para que a Itália siga o exemplo desses dignos moradores de Cocaglio, repudiando a herança mussolinesca e reassumindo-se como a pátria de Dante.
Mas, os dois ramos já haviam se dissociado desse passado quando eu começava a entender as coisas.
Uma lembrança remota da minha meninice foi a do meu pai e meu tio comentando a morte de um ancestral famoso: Angelo Lungaretti. Circulava de mão em mão a notícia publicada no jornal italiano Corrieri della Sera.
Atraído pelas promessas dos fazendeiros brasileiros, que mandavam recrutadores à Itália oferecendo viagem gratuita, Angelo Lungaretti veio trabalhar na lavoura cafeeira.
Raul Salles, filho do fazendeiro Diogo Eugênio Salles, assediou a irmã de Angelo. Este tentou transferir-se com a família para outra fazenda, mas Raul fez com que fossem rejeitados. E ainda persuadiu o delegado de Analândia a prender Angelo por embriaguez.
Quando o soltaram, no dia 3 de outubro de 1900, Diogo e Raul tentaram expulsar os Lungaretti da fazenda, sem pagar-lhes os 2.000 réis a que faziam jus por seu trabalho. O velho Francisco, pai de Angelo, disse que não sairiam. Diogo agarrou-o, sacudiu-o e atirou-o no chão.
Angelo, vendo o pai desmaiado, supôs que estivesse morto. Com uma velha e enferrujada garrucha, disparou contra Diogo, ferindo-o mortalmente.
Seguiu-se uma série de descalabros, como as torturas sofridas por habitantes de Analândia para que depusessem contra Angelo.
No processo, não foi levada em conta a minoridade do réu (Angelo ainda não completara 21 anos) nem se providenciou tradutor para ele e as testemunhas da defesa que não falavam bem o português, além de se relevarem várias contradições dos acusadores.
O falecido era irmão do presidente Campos Sales, que cogitou até a instauração da pena de morte, com efeito retroativo, para que pudesse ser aplicada nesse caso; foi dissuadido pela Inglaterra.
O governo italiano, supondo tratar-se de mais um anarquista, não deu a mínima. Angelo foi, entretanto, fortemente apoiado pela colônia, que até se cotizou para pagar-lhe um advogado famoso. Isto não impediu sua condenação a 21 anos de reclusão.
Finalmente, numa mudança de governo, foi libertado depois de cumprir sete anos e meio da pena. Voltou à Itália, onde levou vida tranqüila até a morte, em 1960.
Mas, esta história familiar não me interessou muito na época. Só fui lhe dar valor muito tempo depois, em função do rumo que minha própria vida tomou.
O que me predispôs mesmo a valorizar meu sangue latino foram os livros do primeiro autor que me fez a cabeça: Monteiro Lobato, com sua verdadeira veneração pelo legado greco-romano.
Graças a ele, passei a identificar a Itália com o humanismo, o equilíbrio, a sensatez. Não com o fascismo que só a derrota na II Guerra Mundial conseguiu apear do poder.
E foi ainda a arte reforçou minha admiração pela Itália: desde os fundamentais escritores Dante Alighieri, Alberto Moravia e Italo Calvino até os maravilhosos filmes de Federico Fellini, Ettore Scola, Mario Monicelli e tantos outros.
O AFETO QUE SE ENCERRA
Sem nunca ter podido conhecer a pátria dos meus antepassados, eu a imaginava como um contraponto ao sôfrego e calculista american way of life: uma terra aprazível, com um povo compassivo, que sabia viver. Pensava em cada italiano como um Marcello Mastroianni e em cada italiana como uma Sofia Loren.
E, embora estivesse ciente dos excessos com que foram combatidos os militantes da ultraesquerda na década de 1980, não os associava ao povo italiano. Para mim, a culpa toda era do PCI, que aliara-se ao partido da burguesia facinorosa (a Democracia-Cristã) contra os verdadeiros revolucionários, tangendo-os ao desespero e a atitudes insensatas como a execução de Aldo Moro.
O Caso Battisti desfez rudemente minhas ilusões: percebi que muitos italianos comuns, a exemplo do que ocorria durante o fascismo, continuam se deixando tanger por lideranças demagógicas e rancorosas.
Assim como os brasileiros foram levados pela mídia a quase trucidarem os donos da escola-base, houve italianos que aderiram insensivelmente à caça às bruxas desencadeada por Berlusconi. Que decepção!
Então, já não me surpreende a introdução de medidas repulsivas como as que a Itália adotou neste ano de 2009 para combater a imigração ilegal, propostas, claro, pelo governo Berlusconi, como as pesadas multas impostas a clandestinos e o risco de prisão que passaram a correr os que os hospedam.
Também foi aumentado de dois para seis meses no tempo de detenção de imigrantes ilegais e se criaram rondas locais de cidadãos comuns (esquadrões de delatores voluntários) para localizá-los, secundando o trabalho da polícia.
É essa Itália mesquinha e intolerante que persegue Battisti, para exibir sua cabeça como troféu, marcando o reencontro com aquele passado em que os trens chegavam sempre no horário, a autoridade era sagrada e o Duce zelava por todos.
REPÚDIO À DESUMANIDADE
Mas, nem tudo está perdido: a agência France Presse informa que 3 mil cidadãos de Cocaglio, no norte da Itália, se manifestaram pacificamente neste sábado (28) contra a decisão de seu prefeito de realizar a contagem dos estrangeiros da comunidade para denunciar os clandestinos às autoridades.
Como a cidade tem apenas 8 mil habitantes, o movimento denominado United Colours of Christmas (alusão à publicidade da Benneton) foi dos mais significativos.
E recebeu o apoio do Vaticano: "Esta ideia de relacionar o Natal e a difícil realidade que afeta os seres humanos é uma coisa dolorosa", declarou o presidente do Conselho Pontifício para os Imigrantes, monsenhor Antonio Maria Veglio.
Do outro lado, estão um medíocre prefeito eleito pelo fascistóide partido anti-imigrantes da Liga Norte e seu colega de agremiação política, o ministro do Interior do igualmente fascistóide Governo Berlusconi, um tal de Roberto Maroni.
Maroni é aquele que decidiu construir um centro de identificação e expulsão de imigrantes ilegais na ilha de Lampedusa, tida como a entrada da Europa.
Ou seja, simbolicamente, ele quer fechar a porta do continente aos miseráveis, como o príncipe Próspero fechou as portas do seu castelo aos aldeões, deixando-os entregue à peste, no imortal conto de Edgar Allan Poe, A Máscara da Morte Rubra. Torço para que ele receba o mesmo castigo de Próspero.
E (sem muitas esperanças, confesso), torço também para que a Itália siga o exemplo desses dignos moradores de Cocaglio, repudiando a herança mussolinesca e reassumindo-se como a pátria de Dante.
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