terça-feira, 2 de junho de 2009

Uma entrevista com Lévi-Strauss (AMIGA REGINA ENVIA)

Aqui deixo uma entrevista com o famoso antropólogo francês, Claude Lévi-Strauss, a propósito da sua obra mais famosa - Tristes Trópicos. A entrevista foi publicada num jornal brasileiro, a Folha de S.Paulo, a propósito da visita de um outro famoso antropólogo norte-americano, Clifford Geertz (que faz uma série de comentários críticos aos argumentos etnográficos de Tristes Trópicos). Tudo pode ser visto num blog brasileiro que vos aconselho a visitar.

O REMORSO DA FICÇÃO
Lévi-Strauss diz que se sentiu culpado ao escrever "Tristes Trópicos" por estar cedendo a um desejo nunca realizado de fazer uma obra literária. A entrevista de Claude Lévi-Strauss, concedida a Boris Wiseman, ocorreu em Paris em 28 de novembro de 2003, dia do 95º aniversário do antropólogo. Ela foi feita em seu apartamento no 16º distrito em Paris. Lévi-Strauss recebeu o pesquisador de sua obra, professor da Universidade de Durham (Inglaterra), em um escritório onde havia diversos objetos de arte "primitiva" - segundo ele, as "migalhas" de uma coleção que já foi muito mais importante. A entrevista, de que a Folha publica trechos a seguir, saiu na edição de agosto/setembro/outubro de 2004 da revista "Les Temps Modernes".
Pergunta - Em que estado de espírito o sr. se encontrava quando escreveu "Tristes Trópicos"?
Claude Lévi-Strauss - Escrevi esse livro em uma espécie de raiva e de impaciência. Eu também sentia um certo remorso. Achava que teria feito melhor se escrevesse outra coisa.
Pergunta - O quê?
Lévi-Strauss - Depois de ter tratado das estruturas elementares do parentesco, eu deveria ter passado às estruturas complexas.
Pergunta - Mas o senhor lamenta ter escrito "Tristes Trópicos"?
Lévi-Strauss - Não, ainda mais porque na época teria sido impossível abordar as estruturas complexas; para isso haveria necessidade de computadores.
Pergunta - Por que o senhor decidiu escrever "Tristes Trópicos" no momento em que o fez, isto é, mais de 15 anos depois das experiências em campo de que trata o livro?
Lévi-Strauss - Jean Malaurie, que fundou a coleção "Terre Humaine" [Terra Humana], me fez o pedido, quando eu acabava de atravessar crises em minha vida pessoal e profissional. Isso me faria mudar de ares.
Pergunta - Essa reação corresponde a motivos externos, quase acidentais. O senhor sentia uma necessidade ou um desejo mais interior, mais pessoal, de escrever esse livro?
Lévi-Strauss - Certamente havia motivos mais profundos, mas, à época, não-conscientes. No que diz respeito à necessidade, não, porque eu me sentia culpado por escrever esse livro enquanto deveria fazer ciência. Eu o escrevi tão depressa, em quatro ou cinco meses, que nem sequer verifiquei a ortografia das palavras em português. A primeira edição, nesse sentido, é detestável.
Pergunta - O senhor poderia falar um pouco mais sobre o que eram esses motivos "não-conscientes"? O senhor disse que escreveu "Tristes Trópicos" em parte em um estado de raiva. Raiva de quê?
Lévi-Strauss - De mim mesmo, pelo motivo que acabo de lhe dizer. Mas ao mesmo tempo, sem perceber direito, eu cedia a um desejo nunca realizado de fazer uma obra literária.
Pergunta - Em uma das cartas que enviou ao escritor brasileiro Mário de Andrade [de 15/1/36], o sr. diz o quanto admira os cadiueus. O que admirou mais particularmente?
Lévi Strauss - A cerâmica e as pinturas corporais. Eles eram grandes artistas.
Pergunta - O sr. também admirava seu modo de vida?
Lévi-Strauss - De modo nenhum. Eles viviam como agricultores brasileiros miseráveis.
Pergunta - O sr. teve com os cadiueus o mesmo tipo de relação que com os bororos e os nambiquaras?
Lévi-Strauss - Não. Os cadiueus eram muito desconfiados, temiam os avanços em seu território. Os bororos demonstravam uma certa altivez e tinham grande orgulho de suas instituições. Eles também se mantinham reservados. Por outro lado, com os nambiquaras, apesar de sua reputação de violência, foi completamente diferente. Havia uma simpatia recíproca entre nós. Eram pessoas extremamente cativantes.
Pergunta - O sr. lhes falou sobre a França?
Lévi-Strauss - Muito pouco. Os meios de comunicação eram muito limitados.
Pergunta - O sr. se identificou com os índios que estudou?
Lévi-Strauss - De modo nenhum!
Pergunta - Do ponto de vista metodológico, é importante que o etnólogo evite a identificação?
Lévi-Strauss - Depende. Alguns etnólogos escreveram coisas muito boas ao se identificarem.
Pergunta - Por que o sr. não voltou ao campo?
Lévi-Strauss - Em primeiro lugar, não pude, porque houve a guerra. Mas fui obrigado a fazer trabalhos de gabinete. Eu gosto desse gênero de vida, mas não das rotinas da pesquisa. Falta-me paciência.
Pergunta - Mas é necessário fazer pesquisa em campo pelo menos uma vez para se tornar etnólogo?
Lévi-Strauss - Sem dúvida.
Pergunta - Por quê?
Lévi-Strauss - Para saber utilizar melhor os trabalhos que outros trazem de seu campo.
Pergunta - A experiência entre os nambiquaras foi determinante para o etnólogo que se tornaria?
Lévi-Strauss - Não quero dar a impressão de dar importância demais ao meu trabalho de campo. Fiz mais do que pretendem certos críticos, mas serei o primeiro a reconhecer que no total continua sendo uma proporção muito modesta. A experiência com os nambiquaras foi em certo sentido decepcionante e, em outro, muito lucrativa. Ela foi decepcionante porque eu vinha dos bororos, que têm uma cultura de uma riqueza e complexidade notáveis, e lá me encontrei entre pessoas extraordinariamente desprovidas e, na verdade, praticamente inatingíveis. Como eles levavam uma vida seminômade, nunca estavam lá quando devíamos encontrá-los. Do ponto de vista da antropologia clássica, eu diria que não valeu a pena. Sob um outro ângulo, valeu enormemente, porque foi, digamos, o trabalho de campo levado a seu limite negativo. Era preciso tentar fazer alguma coisa com pouco material, levando-se em conta as dificuldades da pesquisa nessa época. Fazemos melhor desde então.
Pergunta - Essa experiência de limite lhe permitiu perceber coisas que não teria visto de outro modo?
Lévi-Strauss - Eu não diria nada parecido. Aquilo me permitiu medir, a grosso modo, o leque do trabalho em campo, desde suas formas mais ricas até suas formas ingratas.
Pergunta - O sr. explicou em uma entrevista que, na época em que escreveu "Tristes Trópicos", havia começado a escrever um romance, que depois abandonou.
Lévi-Strauss - Não nessa época. Eu havia começado o romance ao voltar do Brasil, isto é, nos poucos meses que se passaram entre minha volta a Paris e a guerra de 39. Foi nesse momento que eu havia começado e depois abandonei o romance. "Tristes Trópicos" veio 15 anos depois.
Pergunta - Qual foi o lugar desse romance não escrito ao mesmo tempo na confecção de "Tristes Trópicos" e na seqüência de sua obra? Ele teve um papel importante?
Lévi-Strauss - Ele teve um papel, de um lado porque um dos títulos possíveis do romance era "Tristes Trópicos" e, de outro, porque as páginas que formavam o início do romance se encontraram em "Tristes Trópicos": descrição de um pôr-do-sol que eu tinha visto, mas a bordo do navio que me levou pela primeira vez ao Brasil. Ao retomá-la em "Tristes Trópicos", devolvi essa descrição a sua verdadeira origem.
Pergunta - O senhor faz novamente referência a essa descrição de pôr-do-sol no "Final" de "O Homem Nu", ou seja, 15 anos depois da publicação de "Tristes Trópicos". Por quê?
Lévi-Strauss - Pareceu-me que havia aí uma espécie de constante ou de invariável em meu pensamento que fazia com que, depois de ter adotado um pôr-do-sol como o próprio modelo dos problemas etnológicos que eu deveria resolver mais tarde, ao terminar o mais complexo desses problemas, isto é, os quatro volumes das "Mitológicas", eu os revia sob a forma de um pôr-do-sol.
Pergunta - Em que um pôr-do-sol fornece o "modelo" dos problemas etnológicos que o sr. estudou?
Lévi-Strauss - Estamos diante de uma realidade extraordinariamente complexa, cujo desenrolar é imprevisível e que devemos, de todo modo, tentar descrever com precisão. E no final, uma vez encontrada uma organização, ou pelo menos tendo imaginado que poderia encontrá-la, eu a via inevitavelmente terminar como o espetáculo do sol poente.
Pergunta - De alguma maneira os mitos, ao se transformarem, seguem um caminho que parece um pôr-do-sol. Poderíamos dizer isso?
Lévi-Strauss - No sentido de que, quanto mais descobrimos conexões, menos obtemos informações.
Pergunta - No "Final" de "O Homem Nu", o senhor explica que, embora cheio de sentidos, visto do exterior o sentido dos mitos se anula. O que explica essa relação, aparentemente paradoxal, entre os mitos e o sentido?
Lévi-Strauss - O pensamento mítico pretende tudo compreender e tudo explicar. Para nós, trata-se de compreender que ele pode ser ao mesmo tempo um imenso fracasso enquanto manifesta, como diz Comte a seu respeito sob o nome de fetichismo, "o estado plenamente normal de nossa inteligência".
Pergunta - Alguns escritores que relataram uma experiência traumática, como o Holocausto, às vezes se sentiram culpados de traírem, nos escritos, o que havia sido a experiência real. O sr. tem um sentimento semelhante?
Lévi-Strauss - Não é uma coisa tão profunda, é sobretudo o sentimento de que os meios de que dispomos, como observador e como escritor, nunca estão na medida do que vemos e do que tentamos descrever. Há uma distância que deve inevitavelmente persistir.
Pergunta - O sr. é tratado hoje como um clássico, e não é raro que o classifiquem entre os maiores pensadores de nosso tempo. O que acha disso?
Lévi-Strauss - Isso me comove, mas ao mesmo tempo me incomoda e me irrita.
Pergunta - Por quê?
Lévi-Strauss - Acredito que não seja verdade. Sinto-me pequeno ao lado de meus grandes antecessores.
Pergunta - Parece-me que o sr. nunca tentou realmente fazer escola ou exercer o papel de um líder "intelectual", à maneira de Sartre, por exemplo. Foi uma opção deliberada?
Lévi-Strauss - Não quis isso porque, confesso, não aprecio muito os contatos sociais. Meu primeiro movimento é fugir das pessoas e voltar para casa.
Pergunta - Às vezes lhe atribuem uma visão muito crítica da cultura a que o sr. pertence.
Lévi-Strauss - Sou profundamente ligado à cultura propriamente dita. Sinto-me o produto dela. É sobretudo a sociedade que me repele.
Pergunta - O que em particular?
Lévi-Strauss - São mil coisas. Mas parece-me que elas se reduzem a uma só: quando nasci, havia 1 bilhão de homens na Terra e, quando entrei na vida ativa, após a formatura, havia 1 bilhão e meio. E hoje são 6 bilhões e serão 8 ou 9 bilhões amanhã. Esse mundo não é mais o meu.
Pergunta - Que olhar o sr. tem sobre a vida cotidiana da Paris do século 21?
Lévi-Strauss - É tão fácil para um velho dizer que tudo era melhor quando era jovem que deveria ser proibido responder a perguntas desse tipo. Mas, enfim, se você quer que eu me manifeste, eu diria que, fora os progressos da medicina, que são incontestáveis e muito vantajosos para todos nós, sob todos os outros aspectos, para alguém do meu meio social e intelectual, a vida oferecia mais prazeres.
Pergunta - Como o sr. vê a situação atual da antropologia?
Lévi-Strauss - Ainda há muito a fazer, pois restam no mundo muitas coisas que foram pouco ou mal estudadas. Mas, enfim, comparado com os dois últimos séculos, será apenas questão de juntar as migalhas.
Pergunta - O sr. acredita que a antropologia está destinada a um declínio inevitável?
Lévi-Strauss - É mais uma transformação. A tarefa da antropologia foi totalmente em razão de uma conjuntura histórica: o momento em que a cultura ocidental tomou consciência de que iria dominar a terra inteira. Era preciso, pois, se apressar para recolher todas as experiências humanas que não lhe deviam nada e cujo conhecimento é indispensável à idéia que podemos ter de uma humanidade não reduzida a uma reflexão pessoal ou mesmo à civilização ocidental propriamente dita. Penso que a antropologia cumpriu muito bem sua função durante, digamos, os dois últimos séculos, mas chegamos ao momento em que nenhuma das experiências humanas que será possível conhecer estará isenta da contaminação ocidental -e, portanto, essas experiências não podem mais nos instruir sobre o que íamos buscar antes.
Pergunta - Como o sr. vê a transformação da antropologia?
Lévi-Strauss - Vai surgir uma disciplina dedicada ao estudo dessas novas diferenças que serão criadas à direita e à esquerda, e está bem assim, mas não é mais meu problema. Aliás, a antropologia se transformará em filologia, em história das idéias, assim como o mundo antigo, a Grécia, Roma, a Índia védica desapareceram, mas deixaram trabalho a fazer, há séculos, e isso continuará durante séculos. A massa de materiais antropológicos que existem e nunca foram destrinchados ou publicados é imensa.
Pergunta - Em "Tristes Trópicos", o sr. evoca a possibilidade de uma tabela periódica das estruturas sociais existentes e possíveis. O que o sr. responde aos críticos que dizem que essa concepção do espírito retira do homem um de seus valores fundamentais -a liberdade?
Lévi-Strauss - É uma linguagem para mim tão opaca quanto uma língua desconhecida. Não sei o que isso quer dizer. Eu acabo de lhe dizer que, quando é preciso levar em conta o indivíduo, havia muitas abordagens que poderiam ser legítimas, mas não o estruturalismo. Porque o estruturalismo implica estarmos em condições de fazer a abstração do próprio indivíduo. Se você tem um microscópio com vários aumentos, e utilizar um aumento fraco, em uma gota de água verá pequenos animais que se alimentam, que copulam, que se afeiçoam, que se odeiam e para os quais a liberdade existe. Se você utilizar um aumento um pouco maior, não verá mais os animais em si, mas as moléculas que compõem seus corpos. O tema da liberdade perde então o sentido. Ele só é aplicável em outro nível da realidade.
Pergunta - Acredito que minha pergunta era: até que ponto os níveis estruturais determinam nossas experiências, nossas maneiras de perceber, tais como as vivemos no nível em que funcionamos como indivíduos, vivos e atuando no mundo.
Lévi-Strauss - Há tantos determinismos que funcionam em todos os níveis, em níveis ligados à biologia molecular, outros à fisiologia animal e outros ainda que não conheço, que o modo como todos esses fatores se imbricam é de uma complexidade enorme, que retira todo o sentido desse gênero de pergunta.
Pergunta - O sr. não escreve mais?
Lévi-Strauss - Não é tão simples. Ainda faço pequenas coisas. Mas não é uma questão de escrever ou não escrever, é uma questão de ter um pensamento que ainda seja fecundo ou que deixe de sê-lo.
Pergunta - A religião enquanto prática religiosa desapareceu?
Lévi-Strauss - Pelo menos na vida civil; é a maneira como a religião atesta sua realidade.
Pergunta - Creio que podemos parar aqui.
Lévi-Strauss - Eu gostaria disso. Começo a não encontrar mais palavras para lhe responder.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

FONTE: http://oficinadeetnografia.blogspot.com/2006/01/uma-entrevista-com-lvi-strauss.html.

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