sexta-feira, 19 de junho de 2009

Resenha: Memórias do Subsolo (Fiódor Dostoiévski)



















Tradução: Boris Schnauderman

Um livro incrivelmente ácido. Todo o texto é coberto por um misto de frustração e raiva, a voz do homem do subsolo conta um pouco de si, sempre escolhendo esconder ou mostrar apenas o que acha fundamental para justificar sua própria existência. É impressionante como o autor deixa transparecer apenas pedaços da personalidade do personagem, e ainda assim consegue transformar essa criatura raivosa em algo ainda mais único, exatamente por sua multiplicidade. Não é difícil apontar alguns homens do subsolo andando perto de nós. O autor possibilita que qualquer um se identifique em algum aspecto com a difícil rotina do subsolo. É quase impossível não se comparar com o personagem, ou mesmo deixar de refletir sobre a sensibilidade necessária para cometer ações tão brutais como as que são narradas no livro.

Minha única decepção, foi concluir que nem mesmo Dostoiévski, foi capaz de responder as perguntas que atormentavam o homem do subsolo, e talvez seja exatamente esta a maior beleza da novela. Para mim, toda a narrativa exibe e tripudia da vida livresca, tanto quanto da "vida viva", que o próprio autor cita como objeto de desejo na vida subterrânea. O homem do subsolo ataca tudo e todos sem distinções.

Existe neste personagem, muito mais do que uma inaptidão para viver, existe uma sensibilidade excessiva, um conhecimento ou reconhecimento excessivo de si mesmo, o impedindo de viver da mesma forma que as outras pessoas. Também está lá, a insatisfação com a previsibilidade do próprio destino, uma preferência estranha pela auto-mortificação por não realizar o que ele acredita ser necessário, ainda que reconheça estas necessidade como algo irreal e desnecessário.

É como se o personagem soubesse do que é capaz, e exatamente por isso não se sentir capaz de tomar ações. Ele é tão insignificante como as outras pessoas, mas ao ter conhecimento da própria fatalidade, acaba se sentindo ainda mais atormentado.

O personagem sente uma inveja rancorosa pela vida normal, e se despreza ainda mais por desejar algo que reconhece não ser verdadeiro para ele. O que o personagem deseja, não é viver, trabalhar e amar como todos os outros, mas ter a ignorância e torpeza necessária para viver, trabalhar e amar como todos os outros. É na insensatez deste desejo que ele se coloca atrás de suas próprias convicções, que o ridicularizam e o colocam em um nível ainda mais baixo que o das pessoas que ele tanto abomina.

O texto, apesar de pequeno, é denso. Toda a trama se desenvolve sob uma atmosfera suja e nebulosa, aliás, como é bem comum em outros textos do autor. Todo o livro é um incentivo à qualquer anti-herói. E apesar da história não vingar ou explicar este anti-herói, demonstra o patético de se tentar viver a vida através de um modelo previsível (ou mesmo imprevisível).

É libertador poder se identificar com os tormentos do autor, e a melhor resposta para as perguntas que atormentam o homem do subsolo, talvez sejam seguir os passos do próprio autor em direção à uma grandeza nada modesta. Um caminho para poucos, certamente. Neste caminho seleto passaram Henry Miller, Bukowski, Fante e alguns outros autores modernos. Toda a influência que o texto exerceu nos nomes mencionados é bem visível, e muitas das dúvidas levantadas pelo homem do subsolo encontram eco em Arturo Bandini, Hank Chinaski, e até mesmo no próprio Henry Miller dos Trópicos de Capricórnio e Câncer. É possível ver muita semelhança, no bom sentido, na maneira caótica de encarar o mundo -- e de um jeito estranho eles talvez se complementem.

Dostoiévski é sempre um contraste grosseiro com outros escritores russos, como Tolstói, que de algum se propõe a resolver estes tormentos através de Deus ou alguma visão mais fraterna da vida. Dostoiévski leva a questão a um passo além, ignorando a necessidade de Deus, e colocando a bondade humana no mesmo saco da maldade humana.

Górki, dizia que toda a obra de Nietzsche está neste livro, com a diferença de Dostoiévski ser muito menos grosseiro. Existe de fato muita semelhança nas Memórias do Subsolo com o Zaratustra ou o Anticristo de Nietzsche. E é preciso reconhecer que Dostoiévisk, consolida estas idéias com uma sutileza muito superior aos aforismos e gritos de Nietzsche.

De qualquer forma, este é um livro para ser lido com atenção. Marcar passagens, relendo com cuidado, sempre refletindo.

FONTE: http://knol.google.com/k/sabino-verdureiro/resenha-memrias-do-subsolo-fidor/1wiq3k45i7xzx/2.

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