sábado, 6 de junho de 2009

Poesia – João Cabral de Melo Neto – Morte e Vida Severina – Parte VIIÌ

ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR DE EITO E OUVE O QUE DIZEM DO MORTO OS AMIGOS QUE O LEVARAM AO CEMITÉRIO


Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.

é de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
neste latifúndio.

Não é cova grande.
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.

é uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.

é uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.

é uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.


Viverás, e para sempre
na terra que aqui aforas:
e terás enfim tua roça.

Aí ficarás para sempre,
livre do sol e da chuva,
criando tuas saúvas.

Agora trabalharás
só para ti, não a meias,
como antes em terra alheia.

Trabalharás uma terra
da qual, além de senhor,
serás homem de eito e trator.

Trabalhando nessa terra,
tu sozinho tudo empreitas:
serás semente, adubo, colheita.

Trabalharás numa terra
que também te abriga e te veste:
embora com o brim do Nordeste.

Será de terra
tua derradeira camisa:
te veste, como nunca em vida.

Será de terra
e tua melhor camisa:
te veste e ninguém cobiça.

Terás de terra
completo agora o teu fato:
e pela primeira vez, sapato.

Como és homem,
a terra te dará chapéu:
fosses mulher, xale ou véu.

Tua roupa melhor
será de terra e não de fazenda:
não se rasga nem se remenda.

Tua roupa melhor
e te ficará bem cingida:
como roupa feita à medida.


Esse chão te é bem conhecido
(bebeu teu suor vendido).

Esse chão te é bem conhecido
(bebeu o moço antigo)

Esse chão te é bem conhecido
(bebeu tua força de marido).

Desse chão és bem conhecido
(através de parentes e amigos).

Desse chão és bem conhecido
(vive com tua mulher, teus filhos)

Desse chão és bem conhecido
(te espera de recém-nascido).


Não tens mais força contigo:
deixa-te semear ao comprido.

Já não levas semente viva:
teu corpo é a própria maniva.

Não levas rebolo de cana:
és o rebolo, e não de caiana.

Não levas semente na mão:
és agora o próprio grão.

Já não tens força na perna:
deixa-te semear na coveta.

Já não tens força na mão:
deixa-te semear no leirão.


Dentro da rede não vinha nada,
só tua espiga debulhada.

Dentro da rede vinha tudo,
só tua espiga no sabugo.

Dentro da rede coisa vasqueira,
só a maçaroca banguela.

Dentro da rede coisa pouca,
tua vida que deu sem soca.


Na mão direita um rosário,
milho negro e ressecado.

Na mão direita somente
o rosário, seca semente.

Na mão direita, de cinza,
o rosário, semente maninha,

Na mão direita o rosário,
semente inerte e sem salto.

Despido vieste no caixão,
despido também se enterra o grão.

De tanto te despiu a privação
que escapou de teu peito à viração.

Tanta coisa despiste em vida
que fugiu de teu peito a brisa.

E agora, se abre o chão e te abriga,
lençol que não tiveste em vida.

Se abre o chão e te fecha,
dando-te agora cama e coberta.

Se abre o chão e te envolve,
como mulher com que se dorme.

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