Foto: Valéria Simões
Não sei se vai dar para lembrar, mas foi logo depois daquela história das desovas de mocinhas pelo motoboy no Parque Municipal, lembra? A gente até conversou sobre isso, mas não é disso que quero falar agora, só estou relembrando porque tem a ver.
Eu costumava correr no parque, para treinar, sem muita animação, mas me fazia imaginar que um dia eu seria campeão da corrida de São Silvestre ou até que iria correr em Nova Yorque, umas ideias que me vinham. Quando eu vi a senhora correndo também, devagarinho, com aquele peso todo nas pernas meio curtas afinando para baixo, e aquele short de malha, fiquei imaginando outras coisas. Para mim, ou era uma mulher maluca ou uma que estava querendo. É que, apesar do parque se chamar Municipal, podia até ser a floresta amazônica, porque da cidade mesmo, dos bairros bons, não vinha ninguém ali.
Então eu resolvi atacar direto. Não tinha ninguém vendo, mesmo. Não vou repetir o jeito como lhe falei, hoje em dia tenho vergonha daquele jeito desafrontado, mas era assim que eu falava com todo o mundo. Aí, quando a senhora me disse, vem aqui, meu filho, vamos conversar, eu fiquei com medo, achando que a senhora tinha topado e então perdi o jeito. É que eu nunca quis nada com mulher assim, não estou falando da idade, é mais o jeito da pessoa ser. Meu sonho sempre foi com moça loira, bem bonita mas sobretudo com olhos, depois eu digo como, porque aconteceu, só que eu não sabia de nada disso, aliás, nem sabia muito bem o que gostava de verdade.
Aí, a senhora me levou até uma árvore velha (não sei se era velha, mas era já bem grande), me fez encostar a cabeça no braço, pôr o pé pra trás e esticar a panturrilha (nunca tinha ouvido essa palavra). Depois me mandou respirar de um jeito diferente e, no final, me mandou cheirar uma flor qualquer.
Então a gente sentou na grama e conversou. Foi uma coisa muito, muito boa. Me lembro que a senhora me perguntou quais eram as minhas aspirações e eu só tinha duas: trepar com uma loira daquelas de capa de revista e correr numa maratona internacional. Depois me falou de trabalho e eu desconversei. A conversa foi, foi e eu sei que numa certa altura a senhora me falou para ver bem, quando aparecesse uma moça do tipo que eu queria, se ela era mesmo como eu sonhava, se ela me deixava comovido, se me dava vontade de rir e de rezar. Tudo meio bobajada, mas bonito. E devia ser o que eu queria ouvir, porque nunca mais esqueci. Só descobri quem era a senhora porque no jornal aparece a sua fotografia no alto da coluna, bem mais moça, mas deu para reconhecer. Isso foi muitos anos depois e agora me deu vontade de lhe contar o que aconteceu na minha vida no entretempos.
Pois é, um dia eu vi uma moça que me deu aquilo tudo. Ela era loira, mas quase tão magrinha como eu e só um pouquinho mais alta, e branquinha demais, até meio cor-de-rosa. No começo, tive medo de ir falar com ela; essas paulistas branquelas não gostam muito quando um cara como eu, um escurinho com cara de pau-de-arara chega perto delas sem conhecer. Não sei se ela deu uma olhadela que me deu coragem, mas quando vi, estava já conversando, não sei bem de que, isso faz muito tempo, mas a gente se acertou tão bem que de vez em quando me dava vontade de rezar, como a senhora tinha dito.
E foi assim por muito tempo. Para lhe explicar, tenho que começar por aquele jeito de olhar que eu tanto queria encontrar e que ela tinha, e que achei direitinho do jeito que era, num pedaço de jornal velho que achei no chão e que falava do olhar de uma mulher velha chamada Dona Paula, que tinha sido bonita e tinha tido uma paixão e que lembra de tudo olhando nos olhos “ainda infinitos” de uma sobrinha dela. A minha loira meio desbotada não era assim o tempo todo, mas quando a gente transava, às vezes ela soltava um ai comprido de eco de gruta de montanha e fazia esse olhar. Depois o tempo passou e ela não conseguia mais gostar de mim do mesmo jeito, também não era possível, não vou lhe dizer tudo que aprontei, mas entendo, sei que não era possível ela continuar gostando de mim.
O que me salvou foi a idade, foi o tempo e a necessidade de cuidar de meus filhos, que esses, não tinham outro para olhar por eles, então eu tive que tomar jeito. Não foi com a loira, não, foi com uma morena bunduda como a senhora (desculpe, mas é uma coisa engraçada, de costas ela parece com a senhora). E essa, desde que olhei para ela, me dava vontade de rir. Como a senhora tinha dito. Depois às vezes também me dava vontade de rezar. Acho que foi assim que aos pouquinhos tomei juízo. E queria lhe dizer que o jeito como a senhora falou comigo acho que foi uma coisa que mudou o rumo da minha vida. Pronto, acabou a minha história, só que hoje eu queria mesmo era me perder de novo daquele jeito de antigamente, mas acho que esse rumo eu perdi. Um grande abraço e tudo de bom.
Vicente.
(Regina M. A. Machado é uma brasileira expatriada que em geral trata dos escritos dos outros, mas que de tanto engolir crias alheias, acaba pondo para fora alguma criatura nascida do medo e da escuridão, como tantas outras. Fez um doutorado tardio em 2007, na Sorbonne, sobre literatura brasileira. Atualmente anima oficinas de francês para imigrantes em Bonneuil-sur-Marne, onde mora. Quando tem oportunidade, traduz autores brasileiros para o francês e, em se tratando de ficção ou teatro, sempre em colaboração com algum francês de raiz)
FONTE: http://diversos-afins.blogspot.com/
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