Veteranos de Guerra: Onda
de Suicídios
Carlos A. Lungarzo
Nos últimos quatro posts, contei
alguns detalhes da Guerra das Falkland
(Malvinas), para dar uma ideia da responsabilidade que assumem os governos que
estimulam este tipo de barbárie. Nesta nota, quero falar de algo mais humano: o
destino dos meninos que, desmobilizados após a guerra, se tornaram párias de seus
sistemas belicistas.
Até os dias de hoje, veteranos da Guerra das Malvinas de
ambas as partes continuam se suicidando. Calcula-se que, tanto na Argentina
como na GB, o número de suicídios de antigos soldados excede o número dos
mortos em combate.
Vencedores
e Vencidos?
A rendição da Argentina em junho de
1982, teve várias consequências, mas o destino dos jovens que tinham sido
recrutados para a guerra não interessou nem aos políticos, nem aos militares,
nem à ralé fanática que os tinha oferecido como bucha de canhão. Na Argentina,
os únicos que se ocuparam deles foram os ativistas de direitos humanos (como as
Mães de Praça de Maio e outros) e os
próprios veteranos, que se reuniram em associações para dar-se apoio mútuo. Na
GB, houve apoio do estado e de ONGs de direitos humanos, mas o dano já tinha
sido muito grande, e não foi possível evitar a onda de suicídios.
Durante a rendição, não houve nenhuma
preocupação pela saúde da tropa, mas os prisioneiros argentinos foram tratados
pelos vencedores pelo menos respeitando os acordos de Genebra e Haia, embora
não com verdadeira humanidade. Um exemplo disto é que um jovem prisioneiro
argentino, formado brilhantemente em medicina a uma idade precoce, pediu a seus
captores que tramitaram uma solicitação sua para obter refúgio na GB.
Ele argumentava poder ser útil, pelo
menos como paramédico, tendo em conta a diferença de qualidade entre a medicina
de ambos os países, e considerando que a formação de um médico no UK tem um
custo muito alto. O capitão do navio onde estava prisioneiro não se interessou
por algo tão civil como a saúde e a vida das pessoas. Disse que devolver os
prisioneiros era um compromisso de
honra do UK. Ele entendeu: a humanidade estava dissolvida entre a honra
dos açougueiros vencedores e os açougueiros vencidos. Os seres humanos podiam
ser trocados como balas ou armas.
O governo britânico já tinha negado,
alguns meses antes, a entrega a Suécia de um prisioneiro de guerra especial: o
sádico torturador e assassino Alfredo Astiz, que o país escandinavo reclamava
por crimes contra a humanidade, e o tinha devolvido à Argentina. Para Lady
Thatcher e seu gabinete era mais importante cumprir uma formalidade arcaica,
mesmo com um país que considerava inimigo, que contribuir à vigência dos
direitos humanos entregando um criminoso para ser julgado. Esta deferência com neonazistas
se repetiu o dia da rendição.
O major general Jeremy Moore sabia, sem sombra de dúvida, que o general rendido, Menéndez, era um dos piores carrascos
da ditadura argentina, cum um curriculum de
mais de 5000 assassinatos. Apesar disso, o favoreceu com gentilezas que iam
muito além das convenções de guerra. Substituiu, por pedido do vencido, a frase
“rendição incondicional” por apenas “rendição”.
Também aceitou que os oficiais
vencidos conservassem suas armas pessoais (pistolas Browning Hi-Power, 9 mm), porque diziam que seus recrutas estavam
indignados e queriam linchá-los. O linchamento é sempre uma grande aberração,
mas devolver suas armas aos oficiais era autorizá-los a que matassem os
recrutas. Além disso, a cerimônia de rendição foi privada e não pública, para
não ofender os torturadores derrotados, os quais receberam suas bandeiras de
volta, um ato simbólico, mas que têm relevância para os militares. Também
autorizaram os oficiais a manter suas unidades sob seu controle até chegar à
Argentina, prolongando a condição de subordinados dos recrutas.
Devolvidos à Argentina, os
combatentes das Malvinas encontraram numerosos problemas para se integrar à
sociedade. Os governos e os políticos não tinham interesse neles, e para a
grande massa eram apenas bucha de canhão que não funcionou bem e seria
descartada.
Havia veteranos de dois estilos, mas
é impossível saber sua proporção. Alguns, durante a guerra, se sentiram
comovidos pela oportunidade de oferecer suas vidas por algo que entendiam ser
“a honra nacional”. O que teriam esperado era serem recebidos como heróis.
Outros atuaram nessa guerra sem saber
por que, se aterrorizaram muitas vezes, tiveram surtos, e entenderam que eram
manipulados por loucos irrecuperáveis. Estes, que tinham a correta visão da
situação, teriam querido ser recebidos como vítimas da insanidade militar, e
protegidos pelo carinho da sociedade.
De fato, ambos os grupos, aquele dos
que se viciaram no clima de guerra, e aquele dos que foram inocentemente
envolvidos por ela, deveriam ter sido tratados como novas vítimas de crueldade
militar, e aconchegados pelos governos e a cidadania. Mas nada disso aconteceu.
Suicídios
de Veteranos
É uma banal comprovação que qualquer
um que participa de uma guerra perde parte significativa de saúde mental. Os
que se identificam com os ideais militares talvez não percam essa saúde, porque
nunca a tiveram: são os psicopatas que veneram a morte e o sofrimento. Até o
general Patton, um protótipo do militar americano, fazia sarcasmo com a ingenuidade
dos que querem morrer pela pátria. A ele se atribui esta frase cínica: “Você
não deve morrer por sua pátria; faça que o inimigo morra pela dele”.
Mas a saúde mental e física dos
veteranos das Malvinas sofreu proporcionalmente mais do que aconteceu nas
guerras mais conhecidas do século 20. Em realidade, ambos os lados lutavam por
uma causa absurda, e deve ter sido insuportável o impacto de compreender que
aquilo era uma enorme fraude. Com efeito, o único sentido legítimo que podia ter
a defesa da GB teria sido a proteção aos falklanders,
mas isso não era o que realmente importava ao governo conservador e ao
tradicional aparato militar britânico. A defesa das ilhas foi deflagrada pelo
delírio patriótico, e pelo sentimento místico.
É óbvio que a vida dos habitantes era
prioritária, mas a única solução humana era negociar a liberdade dos
falklanders (que poderiam ter sido instalados rapidamente na Escócia) pela
soberania reclamada durante 149 anos pela Argentina, encerrando aquela interminável
ladainha. Não sabemos se a Argentina teria aceitado, pois o ódio que alimentou
sua ação militar foi superlativo, mas a GB deveria ter intentado, se respeitava
os direitos dos ilhéus como afirmava. A GB arriscou a segurança dos habitantes,
que eram praticamente reféns dos argentinos, e até foi responsável pela morte
de três mulheres.
Do lado argentino, influíram na
depressão dos veteranos as lembranças das torturas aplicadas pelos superiores,
os meses de fome, frio, vento, doenças e abandono, a desnutrição e as
mutilações ocorridas em combate. Para os mais militarizados deve ter sido
terrível a sensação de derrota, mas a maioria dos ex recrutas lembram mais que
outras coisas a brutalidade do exército, o sem sentido dos objetivos bélicos, o
terror das explosões e os tiros, a morte dos amigos, o alcoolismo dos oficias, e
os rumores de que o governo e a mídia roubavam as doações populares destinadas
a eles. Além desses traumas, muitos experimentam moléstias orgânicas
permanentes, invalidez e desemprego, muito maiores que em qualquer outra faixa
da sociedade.
Os problemas sofridos pelos soldados
britânicos são parcialmente diferentes, mas a existência de trauma de guerra,
mutilações e desemprego é similar. Talvez na GB influisse mais que na Argentina
a sensação de sem sentido, já que o tema das ilhas sempre foi alheio ao
cotidiano britânico. Além disso, o surto de suicídio em ambos os países mostra
que a vitória não traz nenhuma
vantagem, salvo para as elites sanguinárias que planejam e executam as
guerras.
Em 2002, Denzil Connick, dirigente de
uma das agrupações de veteranos britânicos, informou a BBC, que já o número de
antigos recrutas que se tinham suicidado desde o fim da guerra ultrapassava o
número de baixas bélicas: os suicídios eram 260 e as baixas britânicas 255. Nesse mesmo ano, fontes
inglesas indicavam o suicídio de 265
veteranos argentinos (Vide). Um estudo feito por uma ONG argentina
em 1999 mostrava que a metade dos ex combatentes pensava com certa frequência
em suicídio. Em 2005, a estimativa de suicídios entre veteranos argentinos era
de 350, e nos dias atuais,
porta-vozes das ONGs de ex combatentes acreditam que o número ultrapasse os 440.
A maioria dos observadores acredita
que uma guerra como esta não se repetirá. É provável. Todavia, é preocupante a
forma oportunista em que os governos da região estão alimentando o rancor, pese
a que as opiniões dos habitantes desses países que escrevem na internet parece
pouco entusiasta com esta febre de chauvinismo continental.
Recentemente foi declarado um boicote
dos trabalhadores argentinos do transporte contra todo navio de “qualquer tipo e tamanho”, que seja de
nacionalidade britânica ou possuído por britânicos, mesmo que esteja registrado
sob outra bandeira. Esta não é uma provocação risível como as anteriores, mas
uma represália ilegal que poderá trazer complicações.
Temos a má sorte de viver num mundo
dominado em sua maior parte por idiotas e paranoicos. Mas, em compensação,
temos duas vantagens: (1) as coisas já foram piores; (2) os povos engolem as
manobras de seus patrões cada vez menos.
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