Os pés de Aninha estavam praticamente em carne viva
Não era pra menos, afinal, passou o ano inteiro na quadra da escola,
ensaiando para o carnaval
Mas a alegria era tanta que, naturalmente, anestesiava toda e qualquer
dor física que sentisse
Aninha era da comunidade, porém, ainda na adolescência, se mudou
com os pais para o outro lado da cidade
Mas pra ela não havia tempo ruim, fizesse sol ou chuva, lá estava
Aninha, enfrentando trem e ônibus lotados, que a levavam do Hospital,
onde trabalhava como auxiliar de enfermagem, para os braços do samba
em sua escola do coração
Aquilo tudo era um verdadeiro sonho para aquela moça simples -
pois a vida não era nada fácil para quem nascia no morro
Desde muito criança ao se olhar para os prédios e as pessoas que passam
no calçadão, lá embaixo, já existe uma sensação que aquele era outro mundo
... outra realidade
Mais eis que o carnaval chegava como uma redenção. E então, se
entendia, pelo menos em fevereiro, a razão pela qual o morro
se elevava acima da cidade de concreto
Pois o morro era feito de Aninhas e sonhos, que durante aqueles quatro
dias do ano, explodiam em cores, ritmos e movimentos, nas alegorias
e fantasias daquela gente
Eufórica, Aninha não via a hora de pisar na avenida, já havia deixado
à todos avisados, principalmente, dona Idalina, sua avô - tão
orgulhosa da neta querida. Seus olhos brilhavam só em pensar em
vê-la radiante na Marquês de Sapucaí - uma verdadeira princesa !
A fantasia era tão bonita, com as cores em alusão a miscigenação
de raças no Brasil. E ficava ainda mais bela, no corpo moreno e de
formas tão brasileiras de Aninha
Estava praticamente tudo pronto, era só controlar a ansiedade até
a chegada do grande dia
Porém, as coisas começaram a mudar, quando o diretor da escola
veio lhe dizer que havia sido procurado por um empresário que
representava uma tal modelo, muito conhecida por ter dito um filho
com um famoso jogador de futebol
E que seria melhor para a imagem da escola, ter esta modelo saindo
como destaque - sem falar que a emissora que detinha os direitos
de transmissão da festa, também o pressionava para colocar mais
gente "de nome" na avenida
Não era preciso dizer mais nada, era como se o carnaval estivesse
acabando ali, naquele momento
De repente, não mais se ouvia o som da bateria, a decepção era
tamanha, que silenciara as cuícas, os repiques, os tamborins, que
vibravam em cada músculo de Aninha
No lugar daquela colorida fantasia, lhe ofereçam outra - tão apagada
quanto o seu sorriso - e lhe deram também um lugar em uma daquelas
alas preteridas pelas câmeras de tvs
Se tivesse sorte, quem sabe, poderia mostrar todo seu samba no pé,
na dispersão, solitária, em meio a uma ou outra câmera fotográfica
E assim, deu-se o desfile ...
Mas ainda assim, lá ficou dona Idalina - altas horas da madrugada,
bem próxima do monitor de tv, forçando a já tão cansada vista,
na esperança de ver sua neta
E só após a passagem do último integrante da escola, é que aquela
vozinha foi para a cama - feliz, por acreditar ter visto, mesmo de
relance, os longos cabelos negros que mais pareciam ser os de Aninha
- sua tão amada princesa ... a mais bela da avenida
Marcelo Roque
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