Malvinas 02:
Conflitos de Soberania
Carlos A. Lungarzo
As reclamações de soberania sobre as
Malvinas começaram logo após a ocupação definitiva dos britânicos em 1833.
Durante o século 19 houve várias mudanças de estilo nas queixas apresentadas
pelo governo argentino, mas quando as relações internacionais assumiram um
caráter oficial no século 20, com a criação da ONU, essas queixas se tornaram públicas
e incessantes.
Os Protestos
Iniciais
No dia 17/06/1833, o ministro argentino Manuel
Moreno fez chegar ao secretário britânico para assuntos estrangeiros, Lorde
Palmerston, um relatório onde descrevia a ocupação das Malvinas e apresentava
suas razões para considerar violada a soberania argentina. (Vide)
O Lorde respondeu em janeiro de 1834, dando uma justificação curta baseada na
antiga negociação com a Espanha. O governo argentino não aceitou a explicação,
e Moreno voltou a protestar em 29/12
sem obter resposta.
Houve outros
dois protestos argentinos, em 18/12/1841
e em 19/02/1842. Na resposta a esta,
GB afirmava que o acordo de 1771 com Espanha era definitivo, mas o ministro
Moreno rejeitou a resposta.
EL 23/06/1843, as ilhas foram incorporadas
aos domínios da coroa pela Rainha Vitória e em 1847 foi designado o primeiro governador oficial do arquipélago.
Nessa época, Lorde Palmerston afirmou que o assunto da soberania das Malvinas, que tanto preocupava à Argentina, estava pendente de acordo.
Em 1884, 35 anos desde o último protesto
argentino, o tema da soberania só tinha sido tratado bilateralmente, como
assunto secundário. O ministro de relações exteriores argentino informou em 30/05 ao representante de GB que a
Argentina desejava um laudo internacional,
mas a resposta dos britânicos foi negativa. A proposta foi repetida em 1885, anexada a una protesta formal.
Durante 1886 continuou a troca de protestos e
negativas, até que a GB afirmou que considerava a questão encerrada. Entre 1888 e 1928, a Argentina no apresentou novas reclamações.
Logo de
começar a 2ª Guerra, Grã Bretanha foi atacada pelos nazistas com um duríssimo
bombardeio que começou em setembro de 1940.
Então, a Argentina aproveitou a vulnerabilidade da GB para a denunciar de
maneira reiterada e contínua em todos os fóruns mundiais. Também aproveitou a
intenção dos EEUU de unificar a política ocidental, para pensar a possibilidade
de colocar toda a América de seu lado. Em 06/1940,
a Argentina voltou a pressionar, e a GB decidiu fazer uma proposta de domínio compartilhado, mas não houve
ensejo para concretizar a proposta.
Em 05/07/1946, o governo de Juan Domingo Perón, empossado pela
primeira vez o mês anterior, encaminhou o problema de soberania das Malvinas ao
CS da ONU. O conflito passava assim ao plano coletivo pela primeira vez.
Reclamações Posteriores
Em 1948,
GB inscreveu as Malvinas como “território sem autogoverno” no cadastro da ONU,
mas, em 1950, o Congresso Nacional Argentino declarou as Malvinas possessão argentina.
Em 14/12/1960, a ONU aprovou por ampla
maioria a Declaração sobre a
Independência dos Países e Povos Coloniais. O documento fazia referencia especial
a três aspectos:
1. Respeto à
autodeterminación.
2. Preservação
da unidade nacional.
3. Defesa
da integridade territorial.
Em
seguida, a Argentina fixou sua posição sobre esta declaração, indicando como devia ser aplicada às Malvinas. Segundo
Buenos Aires, o principio de autodeterminação
devia subordinar-se ao da unidade nacional e, então, não devia aplicar-se aos
malvinenses.
O
governo argentino negava aos ilhéus o direito de escolher, porque eles eram de
origem britânica, e estavam nas ilhas por causa da “expulsão violenta” dos
legítimos residentes. Ou seja, para a lógica argentina, uma pessoa viva em 1960
devia pagar as culpas dos colonialistas ingleses de 1833. Vejamos como esta
ideologia nazista tem profundas raízes na cultura nacional.
Pessoas versus
Terra
Um ponto absolutamente
crucial para entender o conflito entre a Argentina e a GB em relação com as
Malvinas é o desprezo dos governos
argentinos pela autodeterminação dos povos, e sua alta estima por valores místicos
como a soberania e a integridade territorial.
Sem entender pelos menos os traços
principais desta ideologia nacionalista e ancestralista, a discussão
Argentina/Grã Bretanha pode parecer banal, reduzida a chavões e slogans panfletários.
Por volta de 1828, após a derrota
política e desterro dos poucos membros iluministas do movimento revolucionário
argentino e da vitória de conservadores e clericais, o país adquiriu um perfil
único nas Américas. Tornada herdeira das tradições pré-feudais espanholas, a
Argentina viveu dois séculos dominada por
ditaduras ou, às vezes, por governos semi-democráticos,
porém oligárquicos e, quase sempre, fraudulentos.
Como é bem sabido, a sociedade
argentina foi estruturada sob o poder de caudilhos
(senhores da guerra, que não equivalem aos “coronéis” brasileiros),
consolidado através do exército e da Igreja, cujas decisões sobre a vida
pública e privada não tinham limite. Hoje, a nação argentina é o único estado
que ainda possui um concordato com o Vaticano.
Por causa disso, a Argentina teve
seis golpes de estado no século 20, o último dos quais (1976) ficou célebre por
sua extrema ferocidade. Antes disso, houve pelos menos dois golpes nitidamente
nazistas (1930 e 1943) e outros que misturavam fascismo com interesses da
direita conservadora e pró-americana (1955, 1962, 1966).
Além disso, a Argentina teve notórias
ambições imperialistas, que foram muito fortes no começo do século 20, e se insinuaram
sem atingir sucesso em diversas ameaças ao Chile, à Bolívia e até num projeto
não realizado de bombardear represas brasileiras entre 1976 e 1979.
A isto deve ainda acrescentar-se o
sentimento racista extremo, que levou à ditadura de 1976 a tentar uma falida aliança
“branca” com África do Sul e Brasil (a OTAS), cuja fundação fracassou pela
rejeição da ditadura brasileira que não queria comprometer-se num projeto
racista. Esse racismo também se manifestou durante governos democráticos, como
quando Carlos Menem disse, numa reunião internacional na Bélgica em 1992:
“Graças a Deus, na Argentina não temos negros!”.
Assim sendo, não é para sentir-se
surpreso de que medidas que defendem os direitos humanos foram sempre
desprezadas e combatidas pelo establishment
argentino, e que os valores metafísicos e totalitários, como a soberania ou
a integridade territorial sempre predominassem. Isto explica as circulares discussões com GB no caso das Malvinas, a
partir da década de 60. Voltemos, então, à sequência histórica:
Em
meados de 1966, diplomatas
argentinos em Londres foram informados de que as Malvinas poderiam passar à soberania argentina, no momento “certo”. Em março
de 1967, Londres informou à Argentina
que estava disposta a ceder a soberania
efetiva das ilhas desde que se respeitassem os direitos dos habitantes. Em
harmonia com a ideologia das elites argentinas que descrevemos acima, a Argentina
recusou considerar a vontade dos malvinenses.
Estes,
desapontados ao perceber que eram simples moeda de troca para os britânicos fizeram circular uma carta aberta às
autoridades e o público, com uma mensagem emocionada, porém sem pieguice, que
parece ter influído na fria mentalidade do Foreign
Office. Eis um trecho:
Os governos de GB e a
Argentina planejam entregar as ilhas Falkland
à Argentina. Senhores: pensem que
1. Os ilhéus nunca foram
consultados sobre seu futuro.
2. Eles não querem ser argentinos.
3. Os ilhéus são tão britânicos
como VVSS, a maioria descende de ingleses e escoceses até 6ª geração. Cinco de
cada seis nasceram nas ilhas. Muitos idosos nunca estiveram em nenhum outro
lugar.
4. Não temos problemas
raciais, nem desemprego, nem miséria. Somos pacíficos e não mexemos (meddle) nos problemas de outros países e
culturas. Deixem-nos viver em paz!
Os
dignitários britânicos, apesar do frio pragmatismo das grandes potencias,
entenderam que seriam muito criticados se trocavam os ilhéus como se fossem
fardos de lã, e se sentiram obrigados a dizer que aceitariam um acordo
bilateral desde que fosse aceito pelos falklanders.
Um
negociador britânico visitou as ilhas em novembro de 1968, para convencer os ilhéus de que, dada a crise na GB, teriam
uma vida melhor sob a soberania Argentina. Mas estes não engoliram aquele
papo e conseguiram que uma parte do Parlamento assinasse uma moção declarando
os habitantes das Malvinas autênticos
britânicos.
Em 11/12/1968, o MRE argentino emitiu uma declaração
contra a interpretação britânica da autodeterminação: [El reconhecimento de la soberania argentina] não deve ser submetido à opinião dos atuais habitantes das ilhas. Era mais uma manifestação de
desprezo das muitas que tomaram estado público naqueles anos.
Cooperação
Em 01/07/1971, ambos os governos emitiram una declaração para facilitar a
interação entre a Argentina e as Malvinas, fornecendo documentos aos ilhéus,
anulando impostos, criando uma linha área, e tomando outras providências. Nesta
data, a 5ª ditadura argentina estava deixando o poder aos civis, e o último
ditador da sequencia de três que governou nesse lapso, Agustín Lanusse, era um
dos poucos militares de formação não fascista (que seria, por sua vez,
perseguido na ditadura seguinte). O final de seu mandato foi de relativa
abertura.
Mas, nas
eleições de 1973, o movimento
peronista, que tinha estado proscrito durante anos, ganhou as eleições com quase
70% dos votos para Juan Perón e sua
esposa. Com o retorno de
um governo populista de imensa popularidade, o problema das Malvinas voltou a
ser colocado nos antigos termos chauvinistas. Preocupado, o primeiro ministro
britânico, do Partido Trabalhista, aceitou retomar o problema da soberania.
Sua proposta, que foi inicialmente
bem aceita pela Argentina, incluía: soberania compartilhada entre GB e
Argentina; caráter oficial das línguas espanhola e inglesa; dupla nacionalidade
para os falklanders; hasteamento
conjunto de ambas as bandeiras; governador designado de maneira alternada por
cada país.
Mas, Perón morreu em 07/1974, e foi substituído por sua
esposa, que estava aliada a uma máfia fascista e violentíssima. Essa foi a mais
truculenta época da Argentina anterior ao golpe de 1976. Nunca um governo
militar tinha assassinado tantos opositores como esse governo democrático: num
ano desapareceram umas 2000 pessoas, o que foi o portal para o genocídio posterior
dos militares, que multiplicaram as mortes 15 vezes ou mais.
Em 05/01/1976, esta sinistra gangue política declarou quebradas unilateralmente as negociações com GB sobre Malvinas!
Discussões
sobre Soberania
Em 1976, deflagrou-se na Argentina o golpe
mais brutal da história do país. Inversamente, na GB triunfava o Partido
Trabalhista com o premiê James Callaghan.
No
obstante a discrepância, logrou-se um avanço: em 19/04 ambos os países declararam que a soberania era assunto fundamental, e foram iniciadas negociações incluindo
esse ponto na pauta. O secretário britânico de Assuntos Estrangeiros mostrou-se
sensível ao problema da soberania e o incluiu na agenda das Falkland. Ele
admitiu o interesse da GB na colaboración económica e na discussão sobre
soberania, mas enfatizou um aspecto que agora merecia mais a consideração dos
britânicos: A população das Ilhas seria
consultada.
Os encontros
diplomáticos desta agenda celebraram-se em diversos países até 1981, mas nessa data a GB começava a
sentir o clima de tensão bélico ao redor do arquipélago e começou a pensar na
defesa militar.
Finalmente,
houve um breve ciclo de encontros bilaterais em Buenos Aires, onde se repetiu
(por n-sima vez) o mesmo esquema: GB
estava disposta a render soberania, desde que a autodeterminação dos ilhéus fosse garantida. A Argentina
considerava isso como uma afronta a sua exigência de rendição incondicional e
rejeitava.
Argumentos das
Partes
Antes das organizações
internacionais, os países usavam critérios próprios para definir o direito à soberania.
Inferir ações concretas desses critérios, décadas depois, com base em difusos dados
históricos é praticamente impossível. O único cabível é uma decisão baseada na
conveniência dos países litigantes e da população afetada.
Os típicos argumentos argentinos em
favor de sua soberania foram repetidos nestes 179 anos de maneira quase
idêntica. Não existindo até o século 20 organismos internacionais de arbitragem,
a única validação dos argumentos era a dos próprios interessados, o que tornou
estas “negociações” num infinito círculo vicioso.
Argentina reclama do caráter efêmero
da ocupação britânica anterior a 1833, e aduz que os governos argentinos nunca aceitaram
a ocupação e que isso deveria valer como prova de soberania.
Alguns autores afirmam que o direito
de arbitragem cabe ao Papa, e não aceitam a objeção de que a Inglaterra não era
católica, pois, segundo eles, todo o direito colonial se origina no Tratado de
Tordesilhas, quando a reforma religiosa na GB ainda não tinha sido realizada. Em
todo momento, a ação inglesa é acusada de provir de um legado colonial (o que
os próprios ingleses reconhecem), mas também se denuncia a atual exigência de
autodeterminação dos ilhéus como ato de
imperialismo.
Normalmente, as lutas
antiimperialistas são deflagradas pelo sofrimento real dos dominados por déspotas. Esses casos se remontam ao
cativeiro hebreu, passando pelo imperialismo ateniense, a dominação cristã durante
as Cruzadas e, de maneira proeminente, o colonialismo português, espanhol,
belga, francês e britânico na África, nas Américas e na Ásia.
Mas, a idéia de que a opressão dos
argentinos provém de um incidente ocorrido em 1833 introduz um elemento irracional
próximo do racismo. Ninguém tem fornecido um modelo de como mudaria a situação
da população argentina se o país obtivesse a soberania sobre as Malvinas. Nos
últimos tempos, aduz-se que o petróleo da região seria fundamental para a
nação, mas essa reivindicação é nova, e a reclamação das ilhas tem quase dois
séculos.
A proposta de que as situações
históricas devem regredir no tempo mesmo quando os fatos anteriores são
irrelevantes conduz a graves sem sentidos, tanto como o direito dado pela
proximidade geográfica.
O ex-presidente Lula, ao falar sobre
as reclamações da presidente argentina há alguns anos, fez um comentário que,
em essência, pode resumir-se assim (não lembro as palavras exatas): “Vejam como
a Inglaterra está longe; é claro que não pode ser proprietária das Malvinas”. Ora,
será que ele aplicaria essa argumentação a relação Havaí/EEUU?
A GB tem arguido que a continuidade
de sua administração nas ilhas e a formação de uma identidade própria dos falklanders (pois nas Malvinas não há
argentinos, salvo cinco que não parecem revoltados por ser britânicos) criou um
laço cultural-nacional no qual estaria baseado seu direito. Este argumento é
refutado pela Argentina sob a base de que o processo foi iniciado por uma
invasão e, portanto, pela força. Hoje em dia pensamos que o colonialismo é sempre ilícito. Mas, eliminar o
colonialismo das Malvinas significaria respeitar a autodeterminação dos ilhéus
e, portanto, a solução não seria mudar
de soberano, mas tornar-se um estado
independente.
De fato, a política de descolonização
das Nações Unidas não consiste numa substituição de soberanos, mas na conquista da autonomia. Todavia,
as Malvinas estão entre os 16 territórios considerados inviáveis como países
independentes. Portanto, é necessário buscar uma solução onde a soberania se
torne irrelevante ou, então, seja compartilhada entre os dois países, mas onde
a integridade dos ilhéus fique protegida.
Em várias das propostas vistas neste
artigo, essa condição seria satisfeita. Por que, então, acabaram fracassando?
Nenhum comentário:
Postar um comentário