segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Malvinas 02: Conflitos de Soberania




Malvinas 02:
Conflitos de Soberania
Carlos A. Lungarzo
As reclamações de soberania sobre as Malvinas começaram logo após a ocupação definitiva dos britânicos em 1833. Durante o século 19 houve várias mudanças de estilo nas queixas apresentadas pelo governo argentino, mas quando as relações internacionais assumiram um caráter oficial no século 20, com a criação da ONU, essas queixas se tornaram públicas e incessantes.

Os Protestos Iniciais

No dia 17/06/1833, o ministro argentino Manuel Moreno fez chegar ao secretário britânico para assuntos estrangeiros, Lorde Palmerston, um relatório onde descrevia a ocupação das Malvinas e apresentava suas razões para considerar violada a soberania argentina. (Vide) O Lorde respondeu em janeiro de 1834, dando uma justificação curta baseada na antiga negociação com a Espanha. O governo argentino não aceitou a explicação, e Moreno voltou a protestar em 29/12 sem obter resposta.
Houve outros dois protestos argentinos, em 18/12/1841 e em 19/02/1842. Na resposta a esta, GB afirmava que o acordo de 1771 com Espanha era definitivo, mas o ministro Moreno rejeitou a resposta.
EL 23/06/1843, as ilhas foram incorporadas aos domínios da coroa pela Rainha Vitória e em 1847 foi designado o primeiro governador oficial do arquipélago. Nessa época, Lorde Palmerston afirmou que o assunto da soberania das Malvinas, que tanto preocupava à Argentina, estava pendente de acordo.
Em 1884, 35 anos desde o último protesto argentino, o tema da soberania só tinha sido tratado bilateralmente, como assunto secundário. O ministro de relações exteriores argentino informou em 30/05 ao representante de GB que a Argentina desejava um laudo internacional, mas a resposta dos britânicos foi negativa. A proposta foi repetida em 1885, anexada a una protesta formal.
Durante 1886 continuou a troca de protestos e negativas, até que a GB afirmou que considerava a questão encerrada. Entre 1888 e 1928, a Argentina no apresentou novas reclamações.
Logo de começar a 2ª Guerra, Grã Bretanha foi atacada pelos nazistas com um duríssimo bombardeio que começou em setembro de 1940. Então, a Argentina aproveitou a vulnerabilidade da GB para a denunciar de maneira reiterada e contínua em todos os fóruns mundiais. Também aproveitou a intenção dos EEUU de unificar a política ocidental, para pensar a possibilidade de colocar toda a América de seu lado. Em 06/1940, a Argentina voltou a pressionar, e a GB decidiu fazer uma proposta de domínio compartilhado, mas não houve ensejo para concretizar a proposta.
Em 05/07/1946, o governo de Juan Domingo Perón, empossado pela primeira vez o mês anterior, encaminhou o problema de soberania das Malvinas ao CS da ONU. O conflito passava assim ao plano coletivo pela primeira vez.

Reclamações Posteriores

Em 1948, GB inscreveu as Malvinas como “território sem autogoverno” no cadastro da ONU, mas, em 1950, o Congresso Nacional Argentino declarou as Malvinas possessão argentina.
Em 14/12/1960, a ONU aprovou por ampla maioria a Declaração sobre a Independência dos Países e Povos Coloniais. O documento fazia referencia especial a três aspectos:
1.     Respeto à autodeterminación.
2.     Preservação da unidade nacional.
3.     Defesa da integridade territorial.
Em seguida, a Argentina fixou sua posição sobre esta declaração, indicando como devia ser aplicada às Malvinas. Segundo Buenos Aires, o principio de autodeterminação devia subordinar-se ao da unidade nacional e, então, não devia aplicar-se aos malvinenses.
O governo argentino negava aos ilhéus o direito de escolher, porque eles eram de origem britânica, e estavam nas ilhas por causa da “expulsão violenta” dos legítimos residentes. Ou seja, para a lógica argentina, uma pessoa viva em 1960 devia pagar as culpas dos colonialistas ingleses de 1833. Vejamos como esta ideologia nazista tem profundas raízes na cultura nacional.

Pessoas versus Terra

Um ponto absolutamente crucial para entender o conflito entre a Argentina e a GB em relação com as Malvinas é o desprezo dos governos argentinos pela autodeterminação dos povos, e sua alta estima por valores místicos como a soberania e a integridade territorial.
Sem entender pelos menos os traços principais desta ideologia nacionalista e ancestralista, a discussão Argentina/Grã Bretanha pode parecer banal, reduzida a chavões e slogans panfletários.
Por volta de 1828, após a derrota política e desterro dos poucos membros iluministas do movimento revolucionário argentino e da vitória de conservadores e clericais, o país adquiriu um perfil único nas Américas. Tornada herdeira das tradições pré-feudais espanholas, a Argentina viveu dois séculos dominada por ditaduras ou, às vezes, por governos semi-democráticos, porém oligárquicos e, quase sempre, fraudulentos.
Como é bem sabido, a sociedade argentina foi estruturada sob o poder de caudilhos (senhores da guerra, que não equivalem aos “coronéis” brasileiros), consolidado através do exército e da Igreja, cujas decisões sobre a vida pública e privada não tinham limite. Hoje, a nação argentina é o único estado que ainda possui um concordato com o Vaticano.
Por causa disso, a Argentina teve seis golpes de estado no século 20, o último dos quais (1976) ficou célebre por sua extrema ferocidade. Antes disso, houve pelos menos dois golpes nitidamente nazistas (1930 e 1943) e outros que misturavam fascismo com interesses da direita conservadora e pró-americana (1955, 1962, 1966).
Além disso, a Argentina teve notórias ambições imperialistas, que foram muito fortes no começo do século 20, e se insinuaram sem atingir sucesso em diversas ameaças ao Chile, à Bolívia e até num projeto não realizado de bombardear represas brasileiras entre 1976 e 1979.
A isto deve ainda acrescentar-se o sentimento racista extremo, que levou à ditadura de 1976 a tentar uma falida aliança “branca” com África do Sul e Brasil (a OTAS), cuja fundação fracassou pela rejeição da ditadura brasileira que não queria comprometer-se num projeto racista. Esse racismo também se manifestou durante governos democráticos, como quando Carlos Menem disse, numa reunião internacional na Bélgica em 1992: “Graças a Deus, na Argentina não temos negros!”.
Assim sendo, não é para sentir-se surpreso de que medidas que defendem os direitos humanos foram sempre desprezadas e combatidas pelo establishment argentino, e que os valores metafísicos e totalitários, como a soberania ou a integridade territorial sempre predominassem. Isto explica as circulares discussões com GB no caso das Malvinas, a partir da década de 60. Voltemos, então, à sequência histórica:
Em meados de 1966, diplomatas argentinos em Londres foram informados de que as Malvinas poderiam passar à soberania argentina, no momento “certo”. Em março de 1967, Londres informou à Argentina que estava disposta a ceder a soberania efetiva das ilhas desde que se respeitassem os direitos dos habitantes. Em harmonia com a ideologia das elites argentinas que descrevemos acima, a Argentina recusou considerar a vontade dos malvinenses.
Estes, desapontados ao perceber que eram simples moeda de troca para os britânicos fizeram circular uma carta aberta às autoridades e o público, com uma mensagem emocionada, porém sem pieguice, que parece ter influído na fria mentalidade do Foreign Office. Eis um trecho:
Os governos de GB e a Argentina planejam entregar as ilhas Falkland à Argentina. Senhores: pensem que
1.    Os ilhéus nunca foram consultados sobre seu futuro.
2.      Eles não querem ser argentinos.
3.      Os ilhéus são tão britânicos como VVSS, a maioria descende de ingleses e escoceses até 6ª geração. Cinco de cada seis nasceram nas ilhas. Muitos idosos nunca estiveram em nenhum outro lugar.
4.      Não temos problemas raciais, nem desemprego, nem miséria. Somos pacíficos e não mexemos (meddle) nos problemas de outros países e culturas. Deixem-nos viver em paz!
Os dignitários britânicos, apesar do frio pragmatismo das grandes potencias, entenderam que seriam muito criticados se trocavam os ilhéus como se fossem fardos de lã, e se sentiram obrigados a dizer que aceitariam um acordo bilateral desde que fosse aceito pelos falklanders.
Um negociador britânico visitou as ilhas em novembro de 1968, para convencer os ilhéus de que, dada a crise na GB, teriam uma vida melhor sob a soberania Argentina. Mas estes não engoliram aquele papo e conseguiram que uma parte do Parlamento assinasse uma moção declarando os habitantes das Malvinas autênticos britânicos.
Em 11/12/1968, o MRE argentino emitiu uma declaração contra a interpretação britânica da autodeterminação: [El reconhecimento de la soberania argentina] não deve ser submetido à opinião dos atuais habitantes das ilhas. Era mais uma manifestação de desprezo das muitas que tomaram estado público naqueles anos.

Cooperação

Em 01/07/1971, ambos os governos emitiram una declaração para facilitar a interação entre a Argentina e as Malvinas, fornecendo documentos aos ilhéus, anulando impostos, criando uma linha área, e tomando outras providências. Nesta data, a 5ª ditadura argentina estava deixando o poder aos civis, e o último ditador da sequencia de três que governou nesse lapso, Agustín Lanusse, era um dos poucos militares de formação não fascista (que seria, por sua vez, perseguido na ditadura seguinte). O final de seu mandato foi de relativa abertura.
Mas, nas eleições de 1973, o movimento peronista, que tinha estado proscrito durante anos, ganhou as eleições com quase 70% dos votos para Juan Perón e sua esposa. Com o retorno de um governo populista de imensa popularidade, o problema das Malvinas voltou a ser colocado nos antigos termos chauvinistas. Preocupado, o primeiro ministro britânico, do Partido Trabalhista, aceitou retomar o problema da soberania.
Sua proposta, que foi inicialmente bem aceita pela Argentina, incluía: soberania compartilhada entre GB e Argentina; caráter oficial das línguas espanhola e inglesa; dupla nacionalidade para os falklanders; hasteamento conjunto de ambas as bandeiras; governador designado de maneira alternada por cada país.
Mas, Perón morreu em 07/1974, e foi substituído por sua esposa, que estava aliada a uma máfia fascista e violentíssima. Essa foi a mais truculenta época da Argentina anterior ao golpe de 1976. Nunca um governo militar tinha assassinado tantos opositores como esse governo democrático: num ano desapareceram umas 2000 pessoas, o que foi o portal para o genocídio posterior dos militares, que multiplicaram as mortes 15 vezes ou mais.
Em 05/01/1976, esta sinistra gangue política declarou quebradas unilateralmente as negociações com GB sobre Malvinas!

Discussões sobre Soberania

Em 1976, deflagrou-se na Argentina o golpe mais brutal da história do país. Inversamente, na GB triunfava o Partido Trabalhista com o premiê James Callaghan.
No obstante a discrepância, logrou-se um avanço: em 19/04 ambos os países declararam que a soberania era assunto fundamental, e foram iniciadas negociações incluindo esse ponto na pauta. O secretário britânico de Assuntos Estrangeiros mostrou-se sensível ao problema da soberania e o incluiu na agenda das Falkland. Ele admitiu o interesse da GB na colaboración económica e na discussão sobre soberania, mas enfatizou um aspecto que agora merecia mais a consideração dos britânicos: A população das Ilhas seria consultada.
Os encontros diplomáticos desta agenda celebraram-se em diversos países até 1981, mas nessa data a GB começava a sentir o clima de tensão bélico ao redor do arquipélago e começou a pensar na defesa militar.
Finalmente, houve um breve ciclo de encontros bilaterais em Buenos Aires, onde se repetiu (por n-sima vez) o mesmo esquema: GB estava disposta a render soberania, desde que a autodeterminação dos ilhéus fosse garantida. A Argentina considerava isso como uma afronta a sua exigência de rendição incondicional e rejeitava.

Argumentos das Partes

Antes das organizações internacionais, os países usavam critérios próprios para definir o direito à soberania. Inferir ações concretas desses critérios, décadas depois, com base em difusos dados históricos é praticamente impossível. O único cabível é uma decisão baseada na conveniência dos países litigantes e da população afetada.
Os típicos argumentos argentinos em favor de sua soberania foram repetidos nestes 179 anos de maneira quase idêntica. Não existindo até o século 20 organismos internacionais de arbitragem, a única validação dos argumentos era a dos próprios interessados, o que tornou estas “negociações” num infinito círculo vicioso.
Argentina reclama do caráter efêmero da ocupação britânica anterior a 1833, e aduz que os governos argentinos nunca aceitaram a ocupação e que isso deveria valer como prova de soberania.
Alguns autores afirmam que o direito de arbitragem cabe ao Papa, e não aceitam a objeção de que a Inglaterra não era católica, pois, segundo eles, todo o direito colonial se origina no Tratado de Tordesilhas, quando a reforma religiosa na GB ainda não tinha sido realizada. Em todo momento, a ação inglesa é acusada de provir de um legado colonial (o que os próprios ingleses reconhecem), mas também se denuncia a atual exigência de autodeterminação dos ilhéus como ato de imperialismo.
Normalmente, as lutas antiimperialistas são deflagradas pelo sofrimento real dos dominados por déspotas. Esses casos se remontam ao cativeiro hebreu, passando pelo imperialismo ateniense, a dominação cristã durante as Cruzadas e, de maneira proeminente, o colonialismo português, espanhol, belga, francês e britânico na África, nas Américas e na Ásia.
Mas, a idéia de que a opressão dos argentinos provém de um incidente ocorrido em 1833 introduz um elemento irracional próximo do racismo. Ninguém tem fornecido um modelo de como mudaria a situação da população argentina se o país obtivesse a soberania sobre as Malvinas. Nos últimos tempos, aduz-se que o petróleo da região seria fundamental para a nação, mas essa reivindicação é nova, e a reclamação das ilhas tem quase dois séculos.
A proposta de que as situações históricas devem regredir no tempo mesmo quando os fatos anteriores são irrelevantes conduz a graves sem sentidos, tanto como o direito dado pela proximidade geográfica.
O ex-presidente Lula, ao falar sobre as reclamações da presidente argentina há alguns anos, fez um comentário que, em essência, pode resumir-se assim (não lembro as palavras exatas): “Vejam como a Inglaterra está longe; é claro que não pode ser proprietária das Malvinas”. Ora, será que ele aplicaria essa argumentação a relação Havaí/EEUU?
A GB tem arguido que a continuidade de sua administração nas ilhas e a formação de uma identidade própria dos falklanders (pois nas Malvinas não há argentinos, salvo cinco que não parecem revoltados por ser britânicos) criou um laço cultural-nacional no qual estaria baseado seu direito. Este argumento é refutado pela Argentina sob a base de que o processo foi iniciado por uma invasão e, portanto, pela força. Hoje em dia pensamos que o colonialismo é sempre ilícito. Mas, eliminar o colonialismo das Malvinas significaria respeitar a autodeterminação dos ilhéus e, portanto, a solução não seria mudar de soberano, mas tornar-se um estado independente.
De fato, a política de descolonização das Nações Unidas não consiste numa substituição de soberanos, mas na conquista da autonomia. Todavia, as Malvinas estão entre os 16 territórios considerados inviáveis como países independentes. Portanto, é necessário buscar uma solução onde a soberania se torne irrelevante ou, então, seja compartilhada entre os dois países, mas onde a integridade dos ilhéus fique protegida.
Em várias das propostas vistas neste artigo, essa condição seria satisfeita. Por que, então, acabaram fracassando?

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