quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

CONVERSA NA NOITE CEGA


 
 
 
Disse para ela que o contato acontece quando fechamos os olhos. Ela respondeu que quando fechamos os olhos somos omissos. Também era verdade, dependendo do ponto de vista, mas como ter ponto de vista se os olhos estão fechados? Tentei explicar.
 
     O espiritual e o físico estão juntos, um depende do outro, caso contrário nenhum existiria, só podemos conhecer a claridade se entendermos o escuro, a diversidade está dentro da unidade, o que seria da vida sem a morte, do preto sem o branco, da verdade sem a mentira?
 
     Ela me olhou com olhos de desespero e falou sobre a morte consentida. Que naquele exato momento, neste exato momento estavam morrendo de fome milhares de pessoas, principalmente crianças que nada sabiam sobre metafísica. Falou apressadamente, como se tudo fosse muito urgente – e tudo era muito urgente. Disse que não podemos brincar de viver quando logo ali à nossa volta havia um despudorado cinturão de miséria que um dia iria estrangular a cidade que se fingia de cega, cidade digna de políticos e representantes que só pensavam em enriquecer e se especializavam em falsos silogismos, na perdida retórica dos desertos e no estender as mãos para o poder.
 
     “São materialistas”, falei, “e um dia pagarão seu karma”. Esclareci que eram subdesenvolvidos espiritualmente e só pensavam em riquezas porque o seu espírito era muito, mas muito pequeno e que a sua capacidade de compaixão era nula. Que nada sabiam nem queriam saber dos horrores do mundo, porque entendiam o mundo como um lugar onde se deve desfrutar o prazer e apenas o prazer. Pessoas ligadas aos cinco sentidos, em muitos aspectos inferiores aos animais, que são puros por si mesmos, refletindo a Natureza e a divindade que os criou.
 
     Percebi em seu olhar uma imensa tristeza quando retrucou que pensar assim era consentir na inação; jogar tudo para um outro mundo, uma outra vida, uma outra possibilidade que consistia apenas em questão de fé e em nada contribuía para resolver os problemas da nossa realidade. Disse que sentia em si o desespero de milhões de desamparados que viviam a desilusão diária dos enganados pelos usurpadores das suas vidas, tripudiados e escarnecidos pelos muito ricos que desejavam ficar cada vez mais ricos e mais ricos, em troca da degradação e da miséria dos que só podiam apelar para a fé, porque nada mais lhes restava de esperança.
 
     Eu olhava para os seus olhos que cintilavam na escuridão daquela noite que parecia infinita. Eram belos e belo deveria ser o seu espírito. Insisti em dizer que tudo era uma grande prova, um teste a que todos estávamos sendo submetidos na nossa passagem pela Terra. Que talvez tudo fosse uma ilusão, quem sabe já estávamos mortos e não sabíamos? Um teste que consistia em contínuo aprendizado, promovendo a evolução espiritual de todos e individualmente. Disse que até as grandes tristezas, o desespero, a miséria, as doenças, as humilhações faziam parte desse teste cósmico. Que todos respondiam nesta vida de acordo com o karma adquirido em vidas passadas e que muitas vezes o sofrimento poderia resultar em aprendizado para o crescimento espiritual em vidas futuras.
 
     Ela me olhou com olhos apagados. Ficou um instante em silêncio e depois me perguntou se eu conseguia conceber um deus tão imensamente mau a ponto de ficar o tempo inteiro do seu inalcançável infinito olhando o sofrimento das suas criaturas que eram imperfeitas e por isso falhas e sujeitas a erros. E que por seus erros em vidas passadas teriam de sofrer no presente, enquanto ele, o grande criador, ficava apenas observando para ver quem passava no teste.
 
     Eu retruquei, dizendo que não dependia de Deus, que era o Criador, mas nos deixava o livre-arbítrio para errarmos e aprendermos com os nossos erros e que nos dava vidas e mais vidas, oportunidades infinitas para evoluirmos espiritualmente.
 
     “Mas é muito cômodo para Deus!” – contestou, com olhos pouco indulgentes. “Os que não conseguirem evoluir, através dos testes de fome, humilhação e sofrimento, porque são espíritos inferiores, provavelmente serão levados para o grande lixão cósmico onde serão reciclados – não é assim? E os que vivem em abundância - devido à exploração que transforma a grande maioria em escravos - são aqueles que já evoluíram espiritualmente e por isso tem direito a uma vida de paz e fartura na Terra?” – completou, irônica.
 
     Tentei dizer que aqueles também estavam sendo testados; um teste mais agradável, mas teste. Ela já havia se afastado, encoberta pela noite, mas ainda gritou: “Deus não é onisciente?”
 
     A noite estava escura, muito escura. Parecia cega aos gritos e pensamentos. Fiquei olhando para o céu e vi uma estrela cadente riscar aquela tanta escuridão, como uma heresia que se desnuda. Arregalei os olhos e lembrei: “crianças morrendo de fome neste exato instante...” 
 
 
Fausto Brignol

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