domingo, 18 de outubro de 2009

Parangolé: anti-obra de Hélio Oiticica

Nildo da Mangueira, com Parangolé, 1964








































Jardel Dias Cavalcanti

A idéia da criação dos Parangolés aparece para Oiticica no momento de seu envolvimento com o samba. O interesse por esta dança, por sua vez, nasceu, segundo o artista, de "uma necessidade vital de desintelectualização, de desinibição intelectual, da necessidade de uma livre expressão". O samba leva o participante a uma imersão no ritmo, na verdade, a uma identificação completa e vital do ato com o ritmo, fazendo com que o seu intelecto permaneça obscurecido diante das imagens móveis, constantemente improvisadas, rápidas e inapreensíveis durante a dança. Esta experiência da "lucidez expressiva da imanência", obtida na dança, leva Oiticica a criar o Parangolé.

Parangolé são capas, estandartes, bandeiras para serem vestidas ou carregadas pelo participante de um happening. As capas são feitas com panos coloridos (que podem levar reproduções de palavras e fotos) interligados, revelados apenas quando a pessoa se movimenta. A cor ganha um dinamismo no espaço através da associação com a dança e a música. A obra só existe plenamente, portanto, quando da participação corporal: a estrutura depende da ação. A cor assume, desse modo, um caráter literal de vivência, reunindo sensação visual, táctil e rítmica. O participante vira obra ao vesti-lo, ultrapassando a distância entre eles, superando o próprio conceito de arte.

Mas que fique claro, ao vestir o Parangolé o corpo não é o suporte da obra. Oiticia diz que se trata de "incorporação do corpo na obra e da obra no corpo". Nessa espécie de anti-arte, diz Oiticia, "o objetivo é dar ao público a chance de deixar de ser público espectador, de fora, para participante na atividade criadora".

Com o Parangolé Oiticia propõe ao espectador (agora participante) em lugar de meramente contemplar a cor, vestir-se nela. Este simples ato, que libera o participante do domínio da sensação visual, produz uma "maravilhosa sensação de expansão", criada pela incorporação dos elementos da obra numa vivência total do espectador.

O crítico Mário Pedrosa comenta a origem da criação do Parangolé por Oiticica: "Foi durante a iniciação ao samba, que o artista passou da experiência visual, em sua pureza, para a experiência de tato, do movimento, da fruição sensual dos materiais, em que o corpo inteiro, antes resumido na aristocracia distante do visual, entra como fonte total da sensorialidade".

Dá-se início a uma nova visão de como o ser humano e uma obra de arte podem integrar-se: a morte do espectador e o nascimento do participante.

No Parangolé, portanto, o motor ontológico é a capacidade de revelar a necessidade da ação. O vestir contrapõe-se ao assistir. Oiticica explica: "O 'ato' do espectador ao carregar a obra revela a totalidade expressiva da mesma na sua estrutura: a estrutura atinge aí o máximo de ação própria no sentido do 'ato expressivo'. A ação é a pura manifestação expressiva da obra". Para que a ação aconteça, exige-se a participação inventiva e improvisada do expectador, como acontece no samba.

A partir daí, o próprio conceito tradicional de exposição desaparece, pois nada significa "expor" Parangolés. Por isso, dizer que o Parangolé de Oiticica está sendo exposto é um contra-senso. O que importa agora é a criação de espaços livres para a participação e invenção criativa do espectador. O objetivo da participação, nos indica Hélio Oiticica, "é dar ao homem, ao indivíduo de hoje, a possibilidade de 'experimentar a criação', de descobrir pela participação, esta de diversas ordens, algo que para ele possua significado."

O que o Parangolé nos propõe é o deslocamento da experiência do campo intelectual racional para o da proposição criativa vivencial. E isto só é possível com a radicalização da vivência através da manipulação, do movimento e da utilização plurisensorial da "obra". Novamente damos voz a Oiticica: "O que interessa é justamente jogar de lado toda essa porcaria intelectual, ou deixá-la para os otários da crítica antiga, ultrapassada, e procurar um modo de dar ao indivíduo a possibilidade de 'experimentar', de deixar de ser espectador para ser participador."

Parangolé, portanto, não é uma "obra", mas o "lugar" no qual a experiência artística se funda. Seu objetivo é uma intensificação da vida, da agitação do pulso, da batida do coração, levando o indivíduo a trocar a percepção artística pela expressão artística.

Num primeiro momento, Oiticica aproxima-se de Marcel Duchamp no tocante ao questionamento do estatuto da arte: a obra de arte é apenas o ato artístico mumificado em um museu. A proposta da "antiarte" consiste em sensibilizar o cotidiano através da repotencialização do "coeficiente" criativo do indivíduo, sem pretender impor um padrão estético. Funda-se aqui uma ética para a qual a liberdade reside numa tentativa constante de autodesprendimento e auto-invenção.

Num segundo momento, superando a idéia duchampiana de que o que determina o valor estético já não é um procedimento técnico, um trabalho, mas um puro ato mental, uma atitude diferente em relação à realidade, Oiticica leva o espectador a explorar a própria "fonte" da linguagem, ou melhor, recapturar a linguagem em sua fonte. Despojando a arte de qualquer fim transcendente ou estético, faz com que subsista apenas o mero ato artístico.

A arte agora está livre para assumir-se como um objeto de experiência, anunciando, inclusive, o fim da instituição da autoria. O Parangolé, decididamente anti-retórico, materializa-se enquanto experiência e desmaterializa-se enquanto arte. O desejo de uma experiência artística única, intransferível, entra em choque com a instituição da arte, o consumo mercadológico do objeto artístico, o primado da técnica e a emoção "estética". Deixa de ser puramente arte para virar um embate com o "mundo" da arte.

O que é proposto por Oiticica é uma estética da existência e não dos objetos, das formas de vida, não das formas de arte, sendo a obra apenas o ato de fazer a obra. Ou seja, uma ética do compromisso com formas constituídas de experiência, de libertação pessoal para a invenção de novas formas de vida (ou para ser mais certeiro, uma estética da auto-invenção).

Oiticica nos leva a pensar que a arte contemporânea traz em si mesma as fontes de todas as artes, que toda obra anterior nada mais é do que uma antecipação alegórica daquela. Com o objetivo de superar a distância entre arte e vida, propõe a experiência como eixo condutor do ato artístico. O objetivo é tirar o indivíduo da atitude meramente contemplativa e submergi-lo na sensibilidade ativa. Destruindo o consumidor pequeno-burguês da cultura, o homem da cultura asséptica, com sua tagarelice ociosa (séculos de interpretação), o indivíduo será levado à fonte irrepresentável ou não discursiva da experiência.

O interesse de Oiticica, ao criar o Parangolé, não foi outro senão o de levar o indivíduo ao dilatamento de suas capacidades artísticas, para a descoberta de seu centro interior criativo, de sua espontaneidade expressiva adormecida, condicionada ao cotidiano. E, termino aqui, com as palavras de Bergson, que sintetizam a experiência Parangolé: "Ao libertar e acentuar esta música, eles hão de impô-la à nossa atenção; farão com que venhamos a inserir-nos nela, como passantes que entram numa dança. E por aí impelir-nos-ão a vibrar nas profundezas de nosso ser, algo que só estava esperando o momento de vibrar".

Para saber mais:

FAVARETTO, Celso. A Invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: EDUSP, 1992.

CATÁLOGO: Hélio Oiticica. Centro de Arte Hélio Oiticia. Rio de Janeiro; Galerie nationele du Jeu de Paume, Paris.

OITICICA, Hélio Oiticia & CLARCK, Lygia. Cartas: 1964-74. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 1898.

OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

JUSTINO, José Maria. Seja Marginal, Seja Herói: modernidade e pós-modernidade em Hélio Oiticia. Curitiba: Ed. da UFPR, 1998.

SALOMÃO, Wally. Hélio Oiticia: qual é o parangolé. Rio de Janeiro: relume-Dumará, 1996.

FONTE: http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=856

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