quarta-feira, 19 de novembro de 2008

"JOSÉ CELSO MARTINEZ CORRÊA" - O REI DA VELA: MANIFESTO DO TEATRO OFICINA

O REI DA VELA: MANIFESTO DO OFICINA

José Celso Martinez Corrêa

Nós somos muito subdesenvolvidos para reconhecer a genialidade da obra de
Oswald. Nosso ufanismo vai mais facilmente para a badalação do óbvio sem risco do
que para a descoberta de algo que mostre a realidade de nossa cara verdadeira. E é
verdade que a peça não foi levada nem até agora, nem a sério. Mas hoje que a cultura
internacional se volta para o sentido da arte como linguagem, como leitura da
realidade através das próprias expressões de superestrutura que a sociedade
espontaneamente cria, sem mediação do intelectual (história em quadrinhos, por
exemplo), a arte nacional pode subdesenvolvidamente também, se quiser, e pelo
óbvio, redescobrir Oswald. Sua peça está surpreendentemente dentro da estética mais
moderna do teatro e da arte visual. A supérteatralidade, a superação mesmo do
reacionalismo brechtiano através de uma arte teatral síntese de todas as artes e nãoartes,
circo, show, teatro de revista etc.
A direção será uma leitura minha do texto de Oswald e vou me utilizar de tudo
que Oswald utilizou, principalmente de sua liberdade de criação. Uma montagem tipo
fidelidade ao autor em Oswald é um contra-senso. Fidelidade ao autor no caso é tentar
reencontrar um clima de criação violenta em estado selvagem na criação dos atores,
do cenário, do figurino, da música etc. Ele quis dizer muita coisa, mas como
mergulhou de cabeça, tentando fazer uma síntese afetiva e conceitual do seu tempo,
acabou dizendo muito mais do que queria dizer.
A peça é fundamental para a timidez artesanal do teatro brasileiro de hoje, tão
distante do arrojo estético do cinema novo. Eu posso cair no mesmo artesanato, já que
há um certo clima no teatro brasileiro que se respira, na falta de coragem de dizer e
mesmo possibilidade de dizer o que se quer e como se quer.
Eu padeço talvez do mesmo mal do teatro do meu tempo, mas dirigindo
Oswald eu confio me contagiar um pouco com ao todo elenco, com sua liberdade. Ele
deflorou a barreira da criação no teatro e nos mostrou as possibilidades do teatro
como forma, isto é, como arte. Como expressão audiovisual. E principalmente como
mau gosto. Única forma de expressar o surrealismo brasileiro. Fora Nelson Rodrigues,
Chacrinha talvez seja o seu único seguidor sem sabe-lo.
O primeiro ato se passa num São Paulo, cidade símbolo da grande urbe
subdesenvolvida, coração do capitalismo caboclo, onde uma massa enorme,
estabelecida ou marginal, procura através da gravata ensebada se ligar ao mundo
civilizado europeu. Um São Paulo de dobrado quatrocentão, que somente o olho de
Primo Carbonari consegue apanhar sem mistificar. O local da ação é um escritório de
usura, que passa a ser a metáfora de todo um país hipotecado ao imperialismo. A
burguesia brasileira lá está retratada com sua caricatura – um escritório de usura onde
o amor, os juros, a criação intelectual, as palmeiras, as quedas-d’água, cardeais, o
socialismo, tudo entra em hipoteca e dívida ao grande patrão ausente em toda ação e
que faz no final do ato sua entrada gloriosa. É um mundo kafkiano, onde impera o
sistema da casa. Todo ato tem uma forma pluridimensional, futurista, na base do
movimento e da confusão da cidade grande. O estilo vai desde a demonstração
brechtiana (cena do cliente) ao estilo circense (jaula), ao estilo de conferência, teatro
de variedades, teatro no teatro.
O segundo ato é o ato da Frente Única Sexual passado numa Guanabara.
Utopia de farra brasileira, uma Guanabara de telão pintado made in the states, verdee-
amarela. É o ato de como vive, como é o ócio burguês brasileiro. O ócio utilizado
para os conchavos. A burguesia rural paulista decadente, os caipiras trágicos,
personagens de Jorge de Andrade e Tennessee Williams vão para conchavar com a
nova classe, com os reis da vela e tudo sob os auspícios do americano. A única forma
de interpretar essa falsa ação, essa maneira de viver pop e irreal, é o teatro de revista,
a praça Tiradentes. Assim como São Paulo é a capital de como opera a burguesia
progressista, na comédia da seriedade da vida do business man paulistano, na
representação através dos figurinos engravatados e da arquitetura que, como diz Lévi-
Strauss, parece ter sido feita para se rodar um filme. O Rio, ao contrário, é a
representação, a farsa de revista de como vive o burguês, a representação de uma falsa
alegria, de vitalidade que na época começava na Urca e hoje se enfossa na bossa de
Ipanema.
O terceiro ato é a tragicomédia da morte, da agonia perene da burguesia
brasileira, das tragédias de todas as repúblicas latino-americanas com seus reis
tragicômicos vítimas do pequeno mecanismo da engrenagem. Um cai, o outro o
substitui. Forças ocultas, suicídios, renúncias, numa sucessão de abelardos que não
modifica em nada as regras do jogo. O estilo shakespeariano interpreta em parte
principalmente através de análises do polonês Jan Kott esse processo, mas o
mecanismo não é o da história feudal, mas o mecanismo das engrenagens
imperialistas – um mecanismo um pouco mais grotesco, mesmo porque se sabe hoje
que ele é superável, passível de destruição. A ópera passou a ser a forma de melhor
comunicar este mundo. E a música do Verdi brasileiro, Carlos Gomes, O escravo, e o
nosso pobre teatro de ópera, com a cortina econômica de franjas douradas, pintadas,
passam a ser a moldura desse ato.
Aparentemente há desunificação. Mas tudo é ligado a várias opções de
teatralizar, mistificar um mundo onde a história não passa do prolongamento da
história das grandes potências. É onde não há ação real, modificação na matéria do
mundo, somente o mundo onírico, onde só o faz-de-conta tem vez.
A unificação de tudo formalmente se dará no espetáculo através das várias
metáforas presentes no texto, nos acessórios, no cenário, nas músicas. Tudo procura
transmitir essa realidade de muito barulho por nada, onde todos os caminhos tentados
para supera-la até agora se mostram inviáveis. Tudo procura mostrar o imenso
cadáver que tem sido a não-história do Brasil destes últimos anos, à qual nós todos
acendemos a nossa vela para trazer, através de nossa atividade cotidiana, alento. 1933-
1976: são 34 anos. Duas gerações pelo menos levaram suas velas. E o corpo continua
gangrenado.
Minha geração, tenho impressão, apanhará a bola que Oswald lançou com sua
consciência cruel e antifestiva da realidade nacional e dos difíceis caminhos de
revoluciona-la. Ela não está ainda totalmente conformada em somente levar sua vela.
São os dados que procuramos tornar legíveis em nosso espetáculo. E volto para meu
trabalho. E volto para meu trabalho, para a redação do espetáculo manifesto do
Oficina. Espero passar a bola para frente com o mesmo impulso que a recebi. Força
total. Chega de palavras: volto para o ensaio.
[Teatro Oficina, 4 de setembro de 1967. Folheto distribuído na estréia da peça e reproduzido em Arte
em Revista 1 – Anos 60. São Paulo: Kairós, 1979.]

http://www.fafich.ufmg.br/manifestoa/pdf/oreidavela

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