domingo, 3 de outubro de 2010

Caso Battisti: Uma Família Refém da Vendetta

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Carlos Alberto Lungarzo
Anistia Internacional (USA) – 2152711
No Direito Ocidental Moderno, a responsabilidade por uma infração é pessoal, e não pode passar da pessoa do autor. Mas nem sempre isso se respeita. Na Argentina, entre 1974 e 1983, famílias completas desapareceram porque um de seus membros era suspeito de ser “subversivo”. Na Itália foi diferente, porque na Itália não houve desaparecidos. Mas, parentes de perseguidos, que nada tinham a ver com política, eram procurados, presos e incomodados. Este artigo pretende mostrar o lado mais sórdido dos juízes e promotores que interviram na etapa italiana do Caso Battisti: a perseguição contra a família.

Reféns dos Carabinieri

Após a fuga de Cesare da prisão de Frosinone (na região do Lazio, perto de Roma), a culpa da evasão não ficou circunscrita apenas a Cesare Battisti e seus colaboradores, mas foi estendida a todos aqueles cujo tormento pudesse criar terror no fugitivo. Na campanha orquestrada na Itália e no Brasil, proclamou-se que estas capturas visavam apurar se os parentes de Cesare foram cúmplices da fuga. No entanto, como veremos em seguida, os próprios magistrados italianos reconheceram saber que a família não tinha nenhuma cumplicidade. Foram detidos apenas por vendetta.
A revista virtual Carmille Online, um excelente site progressista coordenado por intelectuais italianos, publicou, em abril de 2004, quatro matérias intituladas Uma Famiglia in Carcere. A família Battisti, um grupo de trabalhadores onde havia alguns militantes antigos do Partido Comunista, continuou morando em Latina, a província natal de Cesare. Estava integrada pelo pai e a mãe, ambos doentes, pelos irmãos Vincenzo, Domenico, Assunta e Rita, e os conjugues e os filhos deles. O irmão mais velho, Giorgio, tinha morrido o ano anterior num acidente de trabalho, mas o fato foi ocultado de Cesare pelo chamado “meu incansável promotor”, que mantinha a incerteza do prisioneiro para aumentar sua vulnerabilidade. Esse incansável promotor deve ser Armando Spataro, uma das figuras mais paradigmáticas da Itália do Santo Ofício.
A primeira entrevista de Carmille foi feita com a irmã Assunta, talvez a mais íntima de Cesare e a última que o tinha visitado na prisão.
Assunta conta que, na noite posterior à evasão, os carabineiros a levaram sem cerimônia à presença do procurador da prisão de Frosinone. Durante horas foi alvo de brados cheios de ameaças, maldições e insultos, num clima de confusão onde a noção do tempo se tinha esvaziado. Esteve presa durante dois meses em condições extremas, e ainda na época da reportagem, 23 anos depois, lembrava com angústia aqueles momentos.
Mantiveram-me na cela de segurança de Frosinone [...]. As pessoas que me interrogavam se revezavam, me insultavam e até me maltratavam fisicamente [...] não sabia mais quem era e onde me encontrava, não podia nem ir ao banheiro, lavar-me, comer. [...]
Muitas vítimas da polícia preferem não descrever em detalhe as sevícias sofridas. Portanto, não é válido conjeturar, como fizeram alguns jornalistas, que ela não sofreu verdadeira tortura, e que o mau trato físico foi mencionado apenas como metáfora.  Em alguns casos, pessoas detidas na Itália eram alvo de tortura química, recebendo substâncias misturadas com água que produzem surtos de paranoia e delírio. O método é recomendado pela CIA no manual KURBAK e documentos complementares, na rubrica “estímulos suaves”, para evitar marcas e apagar lembranças. É relevante que muitas vítimas desses tomentos “leves” não tinham condições de percebê-los.
Os membros da reportagem perguntam se tinha sido informada com clareza dos motivos da acusação:
-Acusação? Sou a irmã de Cesare Battisti. As acusações com que me mantiveram presa durante dois longos meses eram: cumplicidade na evasão, associação com banda armada, porte de arma de guerra, roubo de um veículo para fuga, ferimentos aos carcereiros.
Até a mídia comercial italiana reconheceu a ausência de atos violentos naquela evasão. A referência a “ferimentos” foi inventada pelos carabineiros e os magistrados.
Assunta diz que pediu um advogado, mas nem foi ouvida. Ficou isolada numa cela de alta segurança, da qual era tirada bruscamente, a qualquer hora do dia ou da noite, para ser interrogada por períodos que pareciam eternos. O tipo de interrogatório se baseava na crueldade mental, na destruição psicológica, com longas sessões de perguntas sem pausa, súbitas, enfeitadas por gritos e ameaças. O clímax foi atingido quando lhe fizeram acreditar que sua filha Moira, de 14 anos, também tinha sido arrestada. Então, Assunta desmaiou.
Só após uma semana, soube que todos seus familiares adultos tinham sido arrestados, salvo as crianças, o pai doente de tumor e a mãe em tratamento. Num certo momento, decidiu se autoacusar para que os familiares fossem devolvidos a suas casas.
A mãe estava tão grave que não percebia que os policiais ocupavam o hospital e passavam continuamente por sua sala, aguardando uma possível visita do filho fugido. O pai, após de estar internado durante 5 meses, ficou deprimido e psicologicamente paralisado, recluso na casa. A filha lembra: “Ele tinha um filho procurado e todos os outros presos!”.
Perguntada se seria capaz de recuperar-se dessa experiência, Assunta diz: “Não estão superadas as feridas morais e físicas que me impuseram, já que, 23 anos após, estou vivendo a mesma coisa. A imprensa está pisando sobre a dignidade de todos nós.” [Grifo meu]
Vincenzo, o irmão mais velho de Cesare, foi preso no dia seguinte à evasão com o outro irmão, Domenico. No quartel foram interrogados durante mais de 40 horas sem comer nem dormir. Ninguém lhes revelou o conteúdo das acusações, e foram transferidos para outro quartel dos carabineiros, também sem água nem comida. Apenas três dias após foi entrevistado por um juiz ao qual manifestou sua total ignorância dos fatos.
- Nós já sabemos isso- respondeu o juiz. [Grifado meu]
-Então, se não cometi nenhum delito, por que estou preso?
-É de praxe - respondeu o magistrado.
Este diálogo mostra claramente que os magistrados sabiam que a família Battisti não tivera nenhuma participação no fato, e que o único objetivo da prisão era um ritual de vendetta. Vincenzo ficou até o dia 10 de outubro no xadrez. Foi demitido de seu emprego, pois a empresas sempre foram leais aos inquisidores. Ele e Domenico tinham dois filhos cada um, dos quais tomava conta a esposa de Vincenzo, porque também a cunhada Ivea estava trás as grades. A imprensa começou atacar todos. O jornal L’ Stampa de Turim, considerado “moderado”, publicou notícias destrutivas da família Battisti. As manchetes diziam: “É uma família terrorista; tinham um arsenal na casa.” Mas, quando todos foram liberados, jamais redigiu uma retificação.
Os Battisti foram vítimas do sentimento linchador dos vizinhos e de alguns parentes, mas Vincenzo reconhece que nem todos foram agressores, embora estes fossem grande parte. A esposa de Vincenzo não conseguiu que a madrinha de seu filhinho cuidasse dele por umas horas para visitar sua mãe internada.
Vincenzo termina sua entrevista com um comentário:
“Meu irmão Cesare tem cometido erros, mas era apenas um garoto. Esteve preso, exilado por muitos anos, tem passado a vida fugindo desesperado. [...] Perdeu um irmão e seus pais, e só teve conhecimento disso muito depois.”
O irmão Domenico e sua esposa Ivea foram os últimos entrevistados. Eles descrevem aquela noite trágica para toda a família:
Domenico - Fomos acordados às 3 da noite, e vimos nossa casa rodeada pelos carabineiros ou a polícia, iluminada por todos os lados, e os tiras com as metralhadores preparadas. Começaram a revisar tudo.
Ivea - Repetiam: “Fala onde está Cesare; convém falar e não lhes faremos nada”.
Os tiras não mostraram a menor piedade pelas crianças pequenas, e obrigaram os pais a abandoná-las sem esperar a chegada dos tios. Domenico foi transferido do quartel ao presídio de Frosinone onde esteve uma semana. Ivea foi conduzida, após 3 dias no quartel, à prisão de Latina, onde a mantiveram detida. Domenico descreve o tratamento como alucinante: Estava em isolamento absoluto, sem falar com ninguém, não tinha sanitário nem lavabo. Ivea foi colocada numa cela. Nenhum de ambos foi informado das acusações contra eles, e Domenico jamais obteve um advogado.
Durante esta prisão, como nos casos anteriores, os jornais e a TV propagaram a imagem de uma família de terroristas armadas até os dentes. Também neste caso, quando eles foram liberados, ninguém fez qualquer retificação. Como tinha acontecido com os outros, os vizinhos começaram a observá-los com desconfiança. Os Battisti acham que a saúde dos pais piorou após a experiência; a mãe, usualmente cuidada pelas filhas, deveu permanecer sozinha no hospital durante todo esse tempo. Quando se realizou esta reportagem, 23 anos após os fatos, Domenico e Ivea achavam que nunca superariam o trauma.

A Sobrinha

Moira, filha de Assunta, também guarda lembranças plasmadas na reportagem de 2004. Ela viu os carabineiros levar sua mãe e sua tia Rita, e depois voltar para pegar seu pai. Recorda a TV e os jornais noticiando a evasão e o arresto dos familiares com máximo escândalo. “Todos os amigos se afastaram, fosse por medo [...] ou por canalhice”. Moira estava desesperada pelas procuras diárias em sua casa, quando os policiais revistavam os quatros e os armários, gerando um caos que se repetiria dia após dia, sem descanso, acompanhado pela ameaça constante: quando terminavam a revista, já na parte da noite, os esbirros ameaçavam levá-la presa.
Era ameaçada com o xadrez e tentavam enganá-la lhe contando falsas conversas com sua mãe. Mas a tortura não ficou restrita ao psicológico. Uma noite, os carabineiros a levaram ao quartel de Frosinone, onde foi interrogada pelo brutal procurador. Sintetizando sua experiência, Moira enfatiza os numerosos insultos e ameaças recebidas. Finalmente:
Esta é a história que vivi, e que me deixou uma ferida interna que levarei sempre. Daquela experiência ficou o terror de ver uma farda. [..] Esta situação não está superada, apesar de meus esforços, já que a mídia continua a semear ódio e difamação [Grifo meu]


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