Com a chegada do celular, este passou a ser, praticamente, o único meio na comunicação do dia-a-dia entre os dois e o recurso para evitar o desconforto de dizerem certas coisas pessoalmente, cara a cara.
Quando não saía para visitar alguns amigos, ela costumava passar parte do tempo no andar de cima, onde mantinha uma espaçosa sala para receber suas visitas. No canto esquerdo, ao fundo, um pequeno bar, com tudo de bom para uma conversa descontraída. Ele, após chegar do escritório ou da Bolsa, mesmo antes do banho, costumava usar a sala que ficava localizada, estrategicamente, ao lado da cozinha, que também lhe servia como o descanso do guerreiro. Por vezes, funcionava como o seu segundo escritório; agendava alguns contatos ou compromissos para os próximos dias; atendia os chamados da esposa, que estava, normalmente, logo ali em cima e combinavam detalhes da administração da casa, do cardápio, das compras; resolviam alguns problemas comuns e, é claro, às vezes, pintava uma discussãozinha, mantendo o tempero da vida a dois. Os filhos já estavam encaminhados e fora do ninho.
O celular era o elo, a membrana plasmática, daquele casal. Fosse alguém ousar suprimir algum daqueles dois aparelhinhos (“de abrir”, como ela costumava identificá-los) não estaria simplesmente provocando a separação dos dois, seria como implodir – no sentido figurado – uma união de mais de vinte anos. Se bem que raramente ficavam juntos nestes últimos anos, mas mantinham, para todos os outros efeitos, um casamento sólido.
Em determinados programas ou compromissos sociais costumavam, ainda, aparecer juntos. Conservavam este comportamento, não por hipocrisia ou para projetarem uma imagem de fachada, era por amizade e pelo costume de ainda freqüentarem os mesmos amigos e alguns lugares públicos. Eram espectadores assíduos do único teatro da cidade. Sempre que alguma peça, show de música ou espetáculo de dança acontecia - de artistas locais ou de fora - eram presença obrigatória.
Sempre tem um dia em que as coisas não se encaixam. Por um simples atrito ou até mesmo um mal-entendido à-toa e colocamos o mundo abaixo. Ninguém é perfeito.
A peça Somos Todos Iguais Nesta Noite, estreava naquela sexta-feira de muito frio, no Teatro Municipal. Casa cheia. Justo no último momento, quando já
estavam saindo de casa, por nada iniciaram uma discussão que só serviu para fazê-los chegar atrasados e ainda tinham que comprar os ingressos. Pior, a propaganda garantia que a peça iria iniciar às nove horas em ponto. Depois desse horário ninguém mais poderia entrar.
Apesar do motivo fútil pelo qual começara a discussão, os ânimos foram-se alterando no trajeto até o teatro e mal ele teve tempo de estacionar o carro e chegar ao guichê a apenas três minutinhos das nove. Dois ingressos para dois lugares localizados bem distante um do outro.
Também, àquela hora...
Ninguém sabe o que ele teria dito de tão grave naqueles últimos instantes para ela – como se estivesse com algo entalado na garganta – não conseguir esperar o final do espetáculo, ligar para ele (através da modalidade em que o celular começa a tremer em vez de tocar a musiquinha). Ela já arrancou pesado, com um enorme palavrão: “Seu...”
O bate-boca foi se transformando num espetáculo à parte. Já nem precisavam mais dos seus aparelhinhos, pelo tom e a altura de voz com que, agora, discutiam. Dava pra perceber que a platéia ficara dividida entre com qual dos dois estaria a razão. Nem precisa dizer que os atores passaram à condição de platéia, tal o calor do diálogo, que imprimia à cena um insuspeito realismo. Da mesma forma que ela deu início ao bate-boca público, foi uma frase sua, muito forte, que fez com que ele se dirigisse, apressadamente, ao corredor central do teatro, em direção à saída. Imaginem alguém ouvir isso no meio de toda a gente: “Você é que não dá mais no couro, seu...” (com outras palavras, bem mais fortes, é claro). Mesmo encerrando com o mesmo palavrão que iniciara o bate-papo, o que o precedeu serviu, certamente, para garantir a ele um estigma para o resto de sua vida.
Saíram do teatro - ele na frente e ela logo atrás – a passos duros. Ele abriu a porta do carona, esperou ela entrar; fechando, delicadamente, a porta, fez a volta, entrou no carro e deu a partida. No caminho para casa não deram uma palavra. Um pouco antes de chegarem, a uns duzentos metros, talvez, ele abriu o vidro, meteu a mão no bolso do paletó, puxou o seu celular e jogou-o pela janela. Ela pagou o desaforo com a mesma moeda. Largou-a na frente da casa, guardou o carro e os dois entraram em silêncio, de mãos dadas.
Pouco se sabe, ou quase nada, do que teria acontecido a partir daquele momento.
Nunca mais foram vistos no teatro.
OTÁVIO MARTINS
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