Carlos Lessa ao Mont:
“A corrupção é o princípio que
estrutura o poder representativo”
economista, professor e ex-presidente do BNDES no primeiro
governo Lula (saiu por divergir dos rumos da economia) é um dos
mais argutos e preparados pensadores sobre a economia e política
do Brasil. O Mont foi entrevistá-lo em sua casa no Cosme Velho, movido
por uma preocupação de seu editor. Será que estou errado ao declarar-me
traído, insatisfeito, preocupado com fumaças autoritárias da
administração Lula e enxergando uma gestão medíocre num exercício de
poder que 80% dos brasileiros e boa parte do mundo consideram
excelente. Serei um cabeça de bagre? Um espírito de porco? Um pessimista
incorrigível ou aquele tipo clássico do anarquista que “si hay gobieno soy
contra”? O professor Lessa aceitou conversar comigo e a conversa
estendeu-se a tal ponto que será publicada em duas vezes. Nesta primeira
parte trataremos basicamente de como se chegou ao Lula partindo do
crepúsculo do regime autoritário militar. Na segunda parte abordaremos
alguns aspectos econômicos importantes. Tentar entender o Brasil é o
objetivo central do Mont, expresso em seu dístico, assim nada melhor do
que conversar com alguém que pode explicá-lo. Com a palavra o professor
Lessa:
Carlos Lessa – “A explicação do fenômeno Lula é que o Brasil caminhou
para o restabelecimento da ordem democrática de uma forma muito singular,
porque não tinha como fazer de outra maneira, essa é a verdade
Foi através da formação de uma frente e o denominador comum das frentes é
ser contra, não a favor. O MDB foi uma enorme frente que reuniu desde
quadros da esquerda até quadros da direita; um espectro amplo, e na medida
em que a ordem autoritária começou a ter um desempenho mais precário e
alguns padrões de comportamento desarticulados, a frente cresceu e –
coração de mãe – abrigou todo mundo. Eu sei porque fui fundador do MDB
e que eu saiba ele só recusou duas pessoas: Jânio Quadros e Sandra
Cavalcanti.
Mas é fato que o MDB conseguiu restaurar o estado de direito no Brasil, o
MDB e principalmente a figura do Dr. Ulisses e o grupo que gravitava em
torno do Dr. Ulisses, no qual eu estava, embora fosse uma figura menor
comparado a gente como Teotônio Vilela e Franco Montoro”.
Problemas constitucionais
“A Constituição de 1988 tem problemas técnicos de montagem porque
conciliou por todos os lados. O Dr. Ulysses, que era constitucionalista, dizia
que era que seria necessário reformá-la na hora em que fosse publicada. O
Dr. Ulisses dizia que o poder Judiciário não podia ser um poder que se autoregula,
o que considerava uma excrescência, e tinha um programa para
reformar o judiciário, mas o poder autorregulador ficou na Constituição.
A Constituição foi a emanação de um processo onde a rejeição do
autoritarismo levou a uma espécie de exorcismo de natureza Vodu. O
feiticeiro faz um boneco de palha onde se concentram o mal e os problemas,
queima-se o boneco, destrói-se e os maus espíritos são derrotados. Pegamos
a ordem militar e ela passou a ser responsável pelo mau ensino, pela
inflação, pelo buraco da estrada e por qualquer deficiência na vida brasileira.
Aí caberia colocar a seguinte pergunta: Por que a sociedade brasileira foi
paciente com o autoritarismo? Se essa pergunta tivesse sido feita o debate
poderia ser aprofundado, mas isso não foi feito e a sociedade simplesmente
cristalizou a questão nos ombros dos militares.
Então como transitamos para a democracia? Tivemos apenas uma vítima
ritual, Maluf. O próprio Antônio Carlos Magalhães ferrou o Maluf e virou
campeão da democracia, apesar de ter sido construtor da ordem autoritária.
Foi assim, botamos de um lado Paulo Maluf e do outro Tancredo Neves,
atribuímos o bem absoluto ao Tancredo e o mal absoluto ao Maluf. Todo
mundo torceu e o Maluf foi derrotado, todo mundo lutou contra o mal
absoluto, exorcizamos o mal absoluto e Tancredo morreu na luta pelo bem
Foi um processo perfeito, completou-se o processo de transição com uma
morte e uma vítima (Maluf), mas o próprio Maluf foi resgatado, pois logo
depois foi candidato e não teve problema algum em ser eleito.
Houve um sistema autoritário, mas ninguém foi condenado com exceção do
Maluf naquele episódio. Isso é inacreditável, como é possível passar 20 e
tantos anos sob o autoritarismo, resolver todos os problemas que eram
explicados pelo caráter autoritário, não pesquisar por que houve o
autoritarismo e terminar tudo numa eleição indireta que na realidade foi uma
torcida, com o bem vencendo e quem assumiu foi o Sarney, antigo
condestável do regime autoritário. É um processo absolutamente singular de
transição para nada.
A Constituição de 88 é extremamente avançada, ela combinou a visão
nacional-desenvolvimentista no que ela tinha de positivo, preservou a
prioridade do trabalho, que vinha dos tempos de Getúlio e incluiu a social
democracia. Só que assim que foi proclamada foi dito que era impossível
governar o país com ela...”
MONT: “O que, aliás, é uma velha desculpa dos governos brasileiros...”
CL: “...e começou rapidamente um processo de emendas constitucionais e
hoje já temos mais de 50 emendas e mais de 30 mil medidas provisórias,
praticamente cancelamos a constituição de 88, mas não botamos nada no
lugar, criamos um pântano institucional. Hoje a advocacia brasileira navega
num oceano não referenciado; a medida provisória é reeditada a cada 30 dias
com uma modificação de vírgula.
MONT: “A medida provisória é um instrumento parlamentarista e na França
chama-se medida de emergência. Como lá o primeiro ministro tem que
discuti ao vivo e a cores com o congresso os atos de sua administração, em
caso de urgência ele pode baixar uma medida de emergência, mas terá 40
dias para convencer os parlamentares. Se não o fizer vai para casa”.
CL: “Aqui basta botar uma vírgula. Hoje todos os escritórios de advocacia
têm duas ou três equipes lendo e anotando as MPs para estarem
minimamente atentos e informados. Vivemos no que os juristas chamam de
caos institucional. Isso tudo é pra te dizer que:
Primeiro – O conceito de democracia não foi trabalhado entre nós, na
verdade foi forçada uma solução universal para a explicação de problemas
que estavam no território da mágica: o autoritarismo era o responsável e a
idéia era a de que todo o povo lutou pela democracia porque torceu para o
Tancredo ganhar um Fla-Flu e logo depois, feita a democracia, passamos a
esperar os resultados. Ponto”.
MONT: “Mas esse Fla-Flu não continua até hoje, exacerbado na dicotomia
entre o PSDB e o PT?”
CL: “Não acho, acho que uma sociedade de 200 milhões de habitantes como
a brasileira, onde estendemos o direito de voto até as crianças com 16 anos,
onde o analfabeto passou a ter direito de voto, construímos formalmente um
processo eleitoral absolutamente colossal e, além disso, o voto é obrigatório.
Nesse modelo o voto seria um instrumento de transformação social
absolutamente impecável. Mesmo que o eleitor erre na escolha da pessoa ele
não erra naquilo que espera obter da sociedade. Então como compatibilizar o
formalmente democrático com uma estrutura social cheia de iniquidades
como a brasileira?
Só há uma maneira: Tornando a democracia absolutamente vazia de
conteúdo. Zero de conteúdo”.(...) LEIA NA ÍNTEGRA EM:
Montblaat - Um Jornal Para Entender o Brasil
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