Quando se trata de serviços públicos, a sociedade contemporânea nos treina para sermos trabalhadores e consumidores. O Estado moderno e profissional gasta quantias enormes para avaliar necessidades; talvez um terço do orçamento destinado à assistência social seja destinado a trabalhos de avaliação. Profissionais avaliam aquilo que necessitamos, decidem se estamos qualificados para receber apoio governamental e, a seguir, determinam como os serviços serão fornecidos. Depois disso, mais profissionais, os inspetores, surgem em cena para averiguar se tudo foi feito de forma correta.
Em vez da imposição de metas e de gerenciamento de desempenho, precisamos de um quadro diferente no que diz respeito à forma como os serviços públicos poderiam ser organizados. As instituições pós-industriais deveriam nos treinar para que fizéssemos auto-gerenciamento e auto-avaliação. E o fator fundamental para isso é enxergar os usuários dos serviços não como consumidores, mas como participantes.
Por mais estranho que seja, quando se trata de determinar como esses novos serviços públicos poderiam funcionar, o melhor guia é um ex-padre iconoclasta da Igreja Católica e visionário que escreveu a sua melhor obra 30 anos atrás: Ivan Illich. Illich foi um crítico da sociedade ocidental que, em uma série de livros polêmicos escritos na década de 1970, analisou os fracassos das instituições modernas e dos profissionais que as organizam.
Curiosamente, ele estava à frente do seu tempo pelo fato de estar voltado para um período anterior à sua era. A sua crítica à industrialização remetia a formas mais comunais de organização, nas quais a produção local e de baixo índice tecnológico atendia à maior parte da demanda. Muito antes da Internet ele também anteviu um mundo pós-industrial, que utilizaria uma linguagem de redes.
O triunfo do capitalismo moderno de bem-estar social, segundo Illich, foi a criação de instituições de serviços públicos em ampla escala, em um cenário no qual, no passado, tais instituições se limitavam a servir a apenas uns poucos indivíduos. Esses sistemas universais aspiram a proporcionar serviços justos e confiáveis, mas exigem códigos, protocolos e procedimentos que muitas vezes os tornam desumanizantes.
As instituições profissionais podem facilmente se tornar parte do problema que elas foram elaboradas para resolver. Um hospital que fornece a cura para uma enfermidade específica pode rapidamente desorientar os pacientes, à medida que esses passam de médico em médico e de departamento em departamento. De maneira similar, o sistema escolar deveria criar oportunidades e promover o avanço. Mas qualquer sistema fundamentado em notas está fadado a produzir fracassos, assim como sucessos.
Na verdade, longe de encorajar as pessoas a aprender, a escola formal treina muitas pessoas para que estas sintam asco do aprendizado. A educação não é vista como um projeto pessoal de auto-desenvolvimento, mas sim como um processo de certificação para demonstrar que o indivíduo aprendeu aquilo que o sistema espera que ele aprenda.
No seu livro "Deschooling Society" ("Sociedade sem Escolas"), que foi publicado pela primeira vez no Reino Unido em 1971, Illich demonstrou alguns princípios sobre como funcionaria um sistema educacional mais prazeroso. Uma idéia era proporcionar a todos aqueles que desejassem aprender o acesso aos recursos a qualquer momento, nas fábricas, escritórios, museus e bibliotecas, assim como nas escolas. Uma outra idéia era facilitar a conexão entre aqueles que quisessem compartilhar conhecimentos e os que desejassem aprender, por meio de intercâmbios de talentos. Em 1971 tudo isso soava meio absurdo. Mas na era da Wikipedia, da eBay e do MySpace, tais idéias soam como sabedoria convencional das redes sociais online.
Em um mundo de serviços públicos participativos, os profissionais ainda seriam os protagonistas de maior conhecimento em qualquer campo específico, mas eles se veriam atuando ao lado de outras fontes de conhecimento. Graças à Internet, as pessoas encontrarão cada vez mais o seu caminho até as fontes de notícias e as informações nas quais confiam. Os monopólios profissionais sobre o conhecimento, estabelecidos arduamente no século 20, sofrerão erosão acelerada no século 21.
Um sistema participativo de serviços públicos necessitaria especialmente de ênfase em auto-análise e auto-avaliação inteligentes.
Como exemplo, vejamos o caso do serviço de exames de sangue na zona norte de Londres. O serviço conta com 5.000 pacientes que tomam medicamentos para evitar a formação de coágulos. Os pacientes são submetidos a exames de sangue semanais, que são realizados por enfermeiras e clínicos gerais, e depois são enviados para um unidade central a fim de que sejam analisados. A unidade escreve a qualquer paciente que necessite modificar a sua dosagem; se o caso for urgente, os profissionais telefonam para o paciente. O sistema funciona de maneira eficiente: as coletas de material para exame são concluídas até às 11h, e os resultados estão prontos às 13h30. Na Alemanha, no entanto, os pacientes fazem tudo isso eles próprios, com uma pequena máquina que custa cerca de US$ 800.
Illich escreveu especialmente antes do advento do computador pessoal, da Internet e do telefone celular. Mas estes são exemplos dos instrumentos vernaculares celebrados por ele em "Tools for Conviviality" ("A Convivencialidade"), artefatos que permitem que as pessoas colaborem entre si e se comuniquem, em contraste com as ferramentas complexas que só são compreendidas pelos profissionais. E nós apenas começamos a explorar esse potencial. O condado de Kent, na Grã-Bretanha, está dando início a testes de sensores domésticos para possibilitar o monitoramento remoto dos movimentos e da saúde de pessoas idosas, o que deverá permitir que um número maior desses indivíduos permaneça em suas próprias casas. Na Coréia do Sul existe um telefone celular que permite que os diabéticos verifiquem o nível de açúcar no sangue e comuniquem os resultados a um médico.
É implausível esperar que os serviços públicos possam ser reformados, em um único lance, para adotarem tal abordagem. E essas idéias também não são apropriadas para todos os aspectos dos serviços públicos. As pessoas que necessitam de uma cirurgia urgente geralmente não desejam ser participantes no processo: o que elas querem é um bom serviço, efetuado por profissionais. Às vezes a ética da auto-ajuda pode ser mal utilizada a fim de fazer com que nós, os usuários, fiquemos encarregados de mais trabalho.
O fato é que a gama de maneiras que nos possibilitam criar bens públicos está se expandindo. Escolas e hospitais continuarão existindo, mas uma quantidade maior de aprendizado e de tratamento de saúde será criada informalmente em nossas casas. As pessoas desejarão ser algumas vezes consumidoras, e outras participantes.
Um setor público pago com dinheiro dos impostos e construído em volta de consumidores passivos não poderá atender às crescentes expectativas dos indivíduos com relação a serviços específicos. A única maneira de personalizar os serviços de acordo com as diferentes necessidades, em uma grande escala e a um preço acessível, é motivar e equipar o usuário para que este se torne um ator, e não um espectador. Imagine um sistema educacional construído em torno dos princípios participativos da Wikipedia, ou uma estrutura de assistência social na qual a participação do usuário seja tão fácil quanto a sua interação com a eBay. No futuro, necessitaremos de serviços públicos produzidos pelas massas, e não apenas para as massas.
*Charles Leadbeater é o autor do livro "We Think", que deverá ser lançado em breve nos países de língua inglesa
*(matéria escrita em 2007)
FONTE : http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/prospect/2007/01/04/ult2678u63.jhtm
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