Poema das sete faces
Carlos Drummond de Andrade
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás e mulheres
A tarde talvez fosse azul
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna meu Deus,
pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás do óculos e do bigode.
Meu Deus, porque me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
Seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
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O PLANO DE EXPRESSÃO
Não nos propomos fazer aqui uma análise do poema de Drummond, muito menos pretendemos atribuir-lhe uma decifração total, visto que um texto poético de tal envergadura se constitui numa galáxia de significados que a análise jamais o esgota. Pretendemos apenas estudar-lhe o plano da expressão, sob os aspectos denotativos, conotativo e mítico, dentro de determinado enfoque, sem negar-lhe a possibilidade de n outros percursos de leitura diferentes.
Partindo do princípio de que a grandeza do poeta consiste no modo como explora as palavras e que entre estas há as que encerram um significado em si (substantivos, adjetivos, verbos) e outras que são palavras de relação, sem significado ou com significação latente (pronomes, preposições, conjunções), é com as primeiras que vamos nos ocupar, embora não esqueçamos do que na obra literária aquelas posições podem ser invertidas na escala de valores. Nossa preferência se explica também pela própria finalidade deste trabalho que é a análise de relação expressão / conteúdo em escala ascendente a partir do nível denotativo.
O contato com a poesia drummondiana revela-nos, logo de saída, marcante originalidade de vocabulário. O poeta esmera-se em alcançar os melhores resultados no trato com a palavra, no teorizar a palavra, como assim é visto por Antônio Houaiss:
Teoria da palavra – divagações, talvez, em torno de uma lúcida intuição de poeta, de cuja prática da palavra se pretende, agora, dar uma idéia, com a sua seleção verbal, prática mais rica ainda do que a teoria, que não a sistematiza, não a limita, não a define inteiramente. Prática, ademais, fecunda, e fecunda desde o início – sem a mínima quebra do valor de sua mensagem, muito antes pelo contrário.[1]
O vocabulário de Drummond – como é o dos poetas contemporâneos – opõe-se ao vocabulário usual dos poetas anteriores, como o disse Houaiss:
...não apenas uma oposição consagrada – como a dos parnasianos, à procura do rigor racional no uso dos vocábulos em oposição ao uso afetivo e padronizado dos românticos, ou dos simbolistas, à procura dos vocábulos musicais ou sugestivos em oposição ao uso lógico dos parnasianos. Nos contemporâneos, a oposição a todos os outros é por universalização; não há proscrição possível por princípio; haverá, se tanto, omissão, por não ocorrer a necessidade de uma dada palavra; e ainda mais, essa universalização não se faz na base da chamada adequação verbal – palavras afins pelo uso social de certa camada, pelo uso técnico, pela sugestão histórica, pela associação histórica – mas as palavras, provindas de quaisquer setores do vocabulário, confluem em inusitadas combinações, associações, que carregam de ineditismo o inusitado, sobretudo porque não se amarram em esquemas convencionais, de dignidade específica, de acordo com o tema, mas com o estado espírito do autor.[2]
Essa dupla oposição – ao anterior e ao presente – é uma constante em sua obra e é o que se verifica no Poema de sete face, anjo torto, ser gauche na vida, casas espiam os homens, bonde cheio de pernas, homem atrás dos óculos e do bigode, Raimundo, conhaque, botam a gente, etc. Valorização por oposição que se faz não apenas ao convencional, mas ao usual. Oposição que nos revela o mais importantes aspecto geral na evolução do vocabulário de Drummond.
Observe-se que nesse poema, na primeira, segunda, terceira e quarta estrofes, que se referem ao mundo objetivo, o mundo das coisas, as palavras são mais livres, mais independentes, passíveis de serem interpretadas isoladamente. J´na quinta, sexta e sétima estrofes, referindo-se ao mundo subjetivo, mundo dos sentimentos, as palavras adquirem mais força de expressão quando sentidas em bloco. Assim é que aquela primeira metade do poema, mais especialmente, se presta de imediato a uma leitura, seja no nível denotativo ou no conotativo, como veremos a seguir. (...)
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FONTE : http://www.filologia.org.br/revista/artigo/6(17)81-90.html
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