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10 de abril de 2016 - 14h21
Clóvis Moura: marxismo e questão racial
O portal marxismo21 acaba de publicar um dossiê sobre Clóvis Moura (1925-2003), escritor e ativo intelectual-militante comunista que se destacou pelos estudos sobre a questão racial e a luta e a resistência negra. O dossiê é composto por artigos, livros, teses acadêmicas e outros trabalhos sobre a obra de Clóvis Moura, e também vídeos e áudios, que contribuem para a história e o pensamento social brasileiros. Vermelho publica o texto de abertura do dossiê.
Clóvis Moura: por uma sociologia da práxis negra
Por Erika Mesquita* (1)
Revisitar a obra de Clóvis Moura é repensar a história social do
Brasil. É com um sentimento saudoso e de enorme gratidão que inicio uma
sucinta apresentação de sua obra, construída ao longo de sua trajetória
(2), quer sobre estudos sobre o negro da qual trata esse dossiê ou como
exímio poeta.
Clóvis Moura, em nossas conversas, sempre ressaltava a importância
de se transformar o conhecimento livresco em arma para revolução, e essa
acepção perpassa sua obra na categoria de análise basilar que é a
práxis negra.
Como outros intérpretes contemporâneos do Brasil, Clóvis Moura
lançou mão da análise marxista, mas ao contrário de outros autores, ele
buscou se aprofundar sobre um assunto repleto de subterfúgios, que era a
luta dos escravos contra o cativeiro. Moura estabeleceu, através da
análise dos quilombos e das numerosas insurreições escravas, uma nova
interpretação da formação da sociedade brasileira.
Observou ele que a sociedade brasileira se formou através de uma
contradição fundamental, senhores versus escravos, e em sendo as demais
contradições decorrentes dessa, pautadas por extrema violência, aspecto
central do sistema escravista. Clóvis Moura remete ao pensamento
marxista quando relaciona o negro como o sujeito histórico da sua
própria transformação e quando observa que as relações de produção têm
como base o racismo como elemento estrutural e estruturante no Brasil.
Portanto, da mesma forma que Marx entendia a classe operária como
sujeito da revolução, e esta descoberta foi feita a partir da
experiência com os movimentos sociais mais avançados de sua época,
Clóvis coloca no negro o sujeito revolucionário e protagonista de sua
autoemancipação dentro de uma práxis histórica negra.
Dessa forma, Clóvis conclui que todos os movimentos que desejam
mudança social são movimentos políticos apesar do fato dos seus agentes
coletivos não terem total consciência disso.
Logo, esse fenômeno se apresenta pelo nível de consciência social
de cada um e as propostas subsequentes para a mudança projetada, mas
todos se enquadram (com maior ou menor nível de consciência social) na
proposta da transformação revolucionária (ou não) da sociedade.
Como já mencionado, a noção de práxis é a categoria-chave para
pensar uma tradução do marxismo europeu para um, pode-se dizer, marxismo
enegrecido. É a práxis – considerada como ação de rebeldia e
resistência ao escravismo – que confere ao negro o papel de sujeito de
sua própria história. Para Moura, o exemplo desse fenômeno máximo do
negro como sujeito é Palmares que se colocou, simultaneamente, como uma
síntese entre república e monarquia: República, pois cada quilombo que
integrava Palmares tinha seu representante, e este decidia de forma
autônoma, ou seja, conjuntamente com o seu povo, como solucionar
problemas incidentes em seu reduto, e monarquia, porque possuíam um rei
com toda distinção hierárquica-social, muitas vezes não só social como
também religiosa e que em tempos de guerra exercia poderes absolutos.
Era dessa forma um modelo singular de governar o povo.
Clovis Moura ainda sustentava que as revoltas negras representaram,
no que ele denomina por escravismo pleno (3), um proto-abolicionismo,
mas um abolicionismo radical que não se concretizou, pois foi atropelado
nos dois últimos decênios anteriores à abolição, por um
pseudo-abolicionismo ou abolicionismo conservador que foi liderado, não
pela classe que deveria nortear o movimento, mas por uma classe de
homens preocupados em manter a sociedade sob controle, sem uma autêntica
emancipação negra. Clóvis Moura entendia o protocampesinato com
referência aos homens livres que – como agregados, meeiros,
trabalhadores de condição, parceiros ou colonos e envoltos numa economia
de miséria – trabalhavam nas lavouras canavieiras ou cafeeiras e
entregavam ao dono da terra parte de sua produção (4) como sendo
escravos disfarçados. Portanto, para ele seria um protocampesinato
dentro ainda do modus da estrutura escravista, mas que em nada a
transformou neste período de transição para o capitalismo propriamente.
Nesta perspectiva, Moura também abordou a questão da propriedade da
terra, quando afirmou que “o escravo ao plantar uma parcela de terra
pertencente ao seu senhor não estabelece outro tipo de relação (feudal
ou capitalista) mas esta relação continua escravista, aumentando o
sobretrabalho do escravo e dando lucro suplementar ao senhor. [...] o
escravo que trabalha por consentimento do seu senhor em um pequeno lote
de terra, plantando nessa parcela produtos agrícolas em pequena escala
para uso pessoal, como atividade suplementar às suas atividades
ordinárias, jamais perde a sua condição (essência) de ser alienado da
sua condição humana.” (5)
Para o autor, lutar pela reforma agrária é lutar por mudanças
estruturais, não só no campo, mas na sociedade como um todo. É empunhar e
trazer à tona a bandeira da radicalidade, com o objetivo de construir
uma sociedade mais justa.
Outra grande questão para Moura foi o racismo. Em sua acepção, a
imigração corroborou o preconceito racial, se caracterizou como uma
tentativa de limpeza racial da nação. A imigração pode-se dizer,
dinamizou um racismo já existente no escravismo e que continuaria após a
abolição.
De acordo com a análise de Moura, o negro foi lançado à periferia
do sistema capitalista, onde poderia ser facilmente dizimado, quer por
doenças ou pela violência que se encontra nesses — denominados pelo
autor — ―guetos invisíveis.
Moura manteve até o fim suas convicções socialistas, apostando que
só a derrocada do capitalismo e o fim das desigualdades sociais criariam
as condições objetivas para o fim definitivo do racismo. Importante
salientar que o conceito de negro para Clóvis Moura se dava enquanto
realidade histórica e construção política e não proveniente somente de
um viés racial.
Embasado nos estudos que fizera do passado e da atualidade, ele não
vislumbrava a revolução de uma forma romântica, mas sempre acreditou
que ela aconteceria, porém não viria em curto prazo, mas sim viria como
resultado de um processo lento de deterioração da sociedade e de uma
conscientização proveniente da periferia do capitalismo. Essa revolução,
no seu entender, vai ser comandada pela classe que é majoritária, pobre
e duplamente oprimida, social e racialmente: o negro, que estará no
protagonismo dessa revolução.
Clóvis Moura via o capitalismo como uma gigantesca máquina de
produzir desigualdades, por isso era preciso destruí-la. Ele entendia
que o fim do capitalismo se daria quando os setores subalternos,
encabeçados pelos não-brancos (6), levantassem a bandeira do socialismo.
Moura entende que essa conscientização dos não-brancos viria apenas a
passos lentos, devido ao grande poder de adaptação do capitalismo e da
eficácia de suas ideologias. Seu otimismo vinha de sua observação de
numerosos e sérios movimentos sociais que continuavam surgindo e
incomodando as elites locais e mundiais. Esse porvir venturoso, ele o
antevia alegremente por continuar a acreditar na utopia, se perfilando
com aqueles que não deixaram de acreditar num mundo solidário e justo.
Clóvis Moura contribui, de forma crítica, à reconstrução simbólica
do negro como sujeito político em torno do praxismo negro e da defesa de
uma sociologia do negro, de uma forma autônoma e radical, se
desvencilhando do academicismo e da militância. Por ser uma obra densa,
ainda está aberta para ser pensada sobre vários vieses, inclusive pensar
sobre o marxismo existente nela. Entretanto, é fato que Clóvis Moura
trouxe a renovação do marxismo, este mais enegrecido, que é a forma
brasileira de compreender as lutas de classes tendo o Brasil das
contradições como pano de fundo.
O Dossiê Clóvis Moura traz grande parte das obras deste grande
pensador brasileiro, bem como o que já foi escrito sobre ele. Deixo aqui
o convite para a leitura, bem como para repensar a obra desse grande
intelectual negro que, sem dúvida nenhuma, deixou um grande legado ainda
pouco explorado, de vozes históricas e sociais que lutaram para a
construção histórica e social deste país polissêmico.
1) Mestre em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas -
UNICAMP (2002), Doutora em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas – IFCH/UNICAMP (2012) Docente / Pesquisadora do
Instituto Federal do Acre – IFAC.
2) O seu último livro: Dicionário da Escravidão Negra no Brasil foi
por ele revisado em seu leito no Hospital Albert Einstein enquanto
recebia tratamento para um câncer que lhe tiraria a vida meses antes da
publicação em 2004 pela Edusp.
3) Clovis Moura divide o escravismo brasileiro em dois períodos, o
escravismo pleno (o primeiro período) e o escravismo tardio (o segundo
período). O que caracteriza o escravismo pleno para o autor era o
período em que a escravidão era uma instituição solida e somente os
escravos lutavam radicalmente para extingui-la. (Sociologia do Negro
Brasileiro, 1988, Editora Ática, São Paulo). Escravismo tardio segundo
Moura era um escravismo decadente em que já não era protagonismo dos
negros lutar pelo fim da escravidão, aqui o papel de brancos e do
próprio capitalismo dependente faz coro juntamente com os negros
escravos.
4) Para Moura, estes homens livres não foram camponeses, pois
aceitar a existência de camponeses no país remete-nos à existência de
restos feudais, o que, para nosso autor, seria insustentável. Nesse
sentido se alinhava às teses de Caio Prado Jr.
5) Clóvis Moura, Dialética Radical do Brasil Negro, 1994, 28-29 (Editora Anita, São Paulo).
6) Para Moura, incluem-se nesta categoria os negros e mestiços, logo, não-brancos.
Ver: http://marxismo21.org/clovis-moura-marxismo-e-questao-racial/
*Erika Mesquita é mestre e doutoranda em sociologia pela Unicamp
*Erika Mesquita é mestre e doutoranda em sociologia pela Unicamp
Fonte: Marxismo21
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