sexta-feira, 1 de junho de 2012

GENOCIDAS VITIMADOS?



Genocidas Vitimados?
Carlos Alberto Lungarzo
Prof. Tit. (r) Univ. Est. Campinas, SP, Br.
1 de junho de 2012
Recentemente, a Folha de S. Paulo publicou uma matéria que compara as possíveis baixas nas filas da ditadura dos anos 60/70, com as vítimas produzidas pela própria repressão. Vou me referir neste artigo à versão resumida da Folha.com (aqui), cujo autor menciona como sua principal fonte o site Terrorismo Nunca Mais (Ternuma), que é um dos vários sites publicados por grupos de militares e seus amigos civis.
O conteúdo da matéria e suas fontes de “informação” estão relatados no site Náufrago da Utopia. (Aqui e passim.) Quero me restringir aqui apenas a alguns pontos objetivos: (1) O caráter abusivo da equiparação entre vítimas e vitimadores; (2) a baixa confiabilidade das fontes corporativas, e  (3) a distorção do conceito de “terrorismo”.

A Teoria dos Dois Demônios

Embora usada em vários países, o primeiro registro da expressão “doutrina dos dois demônios” é de 1983. Apareceu na Argentina, quando o governo empossado esse ano 1983 se viu obrigado, a contragosto, a iniciar uma investigação sobre as mais das 30.000 vítimas da ditadura.
O chavão foi atribuído ao presidente Alfonsín, mas é quase certo que sua moderada imaginação tivesse sido estimulada pelo famoso escritor Ernesto Sábado (1911-2011), presidente da Comissão Nacional de Desaparição de Pessoas  (CONADEP), a única pessoa conhecida que teve a criatividade de elogiar a “inteligência” do ditador Videla.
A ditadura Argentina tinha sido vencida pela Grã Bretanha na Guerra das Malvinas em 1982. A grande maioria belicista, que estimulara a guerra e aclamara a invasão, mudou de ânimo e, com o  mesmo fanatismo, se voltou contra seus recentes heróis.
Foi essa derrota a causa de que os militares percebessem sua dificuldade para seguir governando (somada aos problemas econômicos, que, porém, não eram novos no país). Os partidos políticos, subservientes às casernas, evitaram irritar os militares, mas fizeram moderada pressão para ter participação no bolo.
O partido de centro-direita que ganhou as eleições, o Radical, viu-se obrigado a criar a CONADEP, por causa da intensa pressão dos milhares de parentes de desaparecidos e dos cerca de um milhão de ex-refugiados.
Aliás, após Malvinas, os países democráticos, que cinicamente se recusaram a punir os crimes dos militares durante 10 anos, entenderam o perigo de apoiar sanguinários incontroláveis, e lembraram sua experiência trágica com o nazismo. Influiu, ainda, o fato de que entre os aniquilados pela ditadura havia cidadãos de 32 países, dos quais 6 levaram a sério a defesa de suas vítimas. Então, uma investigação seria inevitável e, portanto, era necessário relativizá-la para não irritar as casernas. Assim surgiu a doutrina dos dois demônios.
Os dois demônios eram o demônio da subversão, que, segundo a cartilha, provocou os militares, e o demônio da repressão, que nasceu quando o direito de defesa dos militares foi deturpado por “alguns” maus oficiais, que seriam uma exceção na ilibada instituição.
No Brasil, aplica-se, em realidade, a teoria do “demônio sozinho”, pois os militares se atribuem ter salvado o Brasil de uma suposta ditadura de esquerda.
A diferença entre executar crimes atrozes e serem vítimas deles é extremamente evidente. Entretanto, é importante ter em conta que existem grupos que desprezam esta diferença, inclusive mesmo dentro das Comissões de Memória e Verdade. É crucial ter consciência de que as críticas “equânimes”, para ambos os lados, são formas hipócritas e covardes de fingir que as Comissões estão cumprindo sua tarefa e, ao mesmo tempo, de não irritar os militares  que, afinal, continuam tendo um poder decisivo não explícito.

Estatísticas Militares

Alguns setores (não apenas de direita) diferenciam os militares em “progressistas” e reacionários, criando um mito que custou milhões de mortes de civis no mundo todo. Por causa desse sofisma, supõe-se que nas filas militares há também grupos com senso de objetividade, que estariam acima do sentimento de vingança contra os que desafiaram a ditadura. Com base nisto, a informação dada pelas casernas é tratada como a mesma seriedade que a oriunda de fontes civis.
As vítimas das ditaduras nem sempre são de esquerda; uma minoria pode ser indiferente ou até de direita. Mas, em qualquer caso, elas fazem parte da sociedade civil e, portanto, estão sujeitas às normas da vida civilizada, da opinião pública, das instituições, etc., ou seja, rendem conta a certo paradigma de transparência que é totalmente alheio a sociedades secretas, seitas místicas ou corporações guerreiras.
As listas de vítimas da repressão, no Brasil e em outros países, foram elaboradas por ONGs, grupos políticos, movimentos sociais, e têm sido, na medida do possível, conferidas por organizações internacionais e até por organismos intergovernamentais.  Um fato deliberadamente ignorado é que não existe um controle dessa natureza para o caso de listas publicadas pelos militares sobre suas baixas. É verdade que não seria fácil inventar mortos que não existem, mas sim é fácil (e, aliás, frequente), atribuir ao inimigo a morte de militares, policiais ou cúmplices civis que foram aniquilados como parte de uma queima de arquivo ou de luta entre gangues.
Vejamos um caso que envolve tanto a Argentina como o Brasil. Em 1985, a PF brasileira encontrou um oficial da marinha argentina com visto de turista vencido, chamado Héctor Ricardo Gulberti. Ele entregou-se imediatamente e pediu refúgio, dizendo que tinha participado em seu país em sequestros e desaparições. Mas, em 1979, quando a repressão arrefecia, percebeu que vários de seus colegas estavam desaparecendo, e percebeu que os altos quadros queriam calar os subordinados que “sabiam demais”. Disse ter sabido que ele estava entre os próximos. Ofereceu-se a dar informação aos parentes das vítimas, mas posteriormente foi facilitada sua fuga em direção desconhecida.
 (Veja isto na Folha de S. Paulo de 25/05/2000 ou http://www.exibir.com/dhumanos/folha2605.htm)
Eu perdi contato com este caso, mas sabe-se que houve dúzias, ou talvez centenas, de “queimas de arquivo” similares. Não sabemos quantos destes casos aconteceram em outras ditaduras, mas é amplamente conhecido o fato de que as forças armadas de quase todos os países (mesmo os realmente democráticos) aumentam o diminuem o número real de suas baixas de acordo com o efeito que pretendem conseguir.
Mesmo em conflitos de médio porte onde a contagem do número de mortes é menos difícil, os exércitos costumam “inflar” a quantidade de vítimas entre suas tropas e minimizar as do bando oposto,  para justificar a repressão sem limites.
Isto é comum em Oriente Médio e Ásia Central, mas foi mais característico na ex-Iugoslávia. Quando o confronto ocorre entre dois exércitos, a manipulação se faz por ambas as partes. Nos casos de genocídio, quando um exército extermina população civil, esteja ou não armada, o governo genocida exagera o número de mortes de suas tropas e até dos civis que, segundo eles, teriam sido atingidos pelos resistentes por considera-los cúmplices dos agressores.
Uma fonte importante é o Blog sobre o Genocídio de Srebrenica, que, embora construído por setores simpatizantes com a ação da NATO, possui numerosas verificações cruzadas e conferências de grupos de ideologia diversa. Vide.
Seria ingênuo (se não fosse ardiloso) citar seriamente dados de blogs que estão interessados em denegrir a resistência contra a ditadura. Quando os militaram falam sobre a resistência, seu discurso se enche de impropérios, pieguice e invocações aos valores místicos de pátria, tradição e fé cristã. Mas, na maioria dos casos, não há publicações detalhadas de como seus esbirros teriam morrido. Cabe supor que as pessoas mortas pela guerrilha tinham também familiares, amigos e um contexto social do qual seria possível obter confirmações.

Terrorismo

Como também se menciona em Náufrago  da Utopia, há um uso incorreto do conceito de terrorismo por parte dos militares. “Terrorismo” é uma expressão odiosa, que evoca coisas como mortes de crianças, assassinatos em massa, bombas que explodem em qualquer lugar, sangre e barbárie. As palavras “guerrilha” e “rebelião” não produzem o mesmo.
Entretanto, as ações de guerra assimétrica na América do Sul não foram massivamente terroristas. Houve, sim, algumas ações terroristas isoladas de parte de grupos opostos a ditaduras, mas isto aconteceu em outros países. Em tudo o que é possível ler sobre a guerrilha brasileira, não há nenhum indício de terrorismo.
Observe-se que até o Supremo Tribunal Federal rejeita o uso do termo terrorismo para indicar um ato de luta armada contra militares. Em 1989 recusou a exigência de extradição (no processo ext 493) de um cidadão argentino acusado de ter participado do ataque a um quartel militar durante uma ameaça de golpe de estado por parte do regimento que utilizava esse quartel. O trecho relevante do acórdão diz:
Não constitui terrorismo o ataque frontal a um estabelecimento militar, sem utilização de armas de perigo comum nem criação de riscos generalizados para a população civil.
Por outro lado, embora ainda sem consenso total, é bom ter em conta a proposta de definição do Conselho de Segurança da ONU.
Terrorismo: [conjunto de] atos criminosos contra civis, cometidos com o objetivo de causar morte ou feridas sérias ou toma de reféns, para provocar estado de terror no público em geral ou em um grupo de pessoas ou em indivíduos, intimidar a população, ou compelir o governo ou uma organização internacional para fazer ou deixar de fazer determinado ato”
Estas distorções não são fruto do acaso. Ainda que, na maioria dos países, as ditaduras tenham saído de cena, o julgamento dos algozes é impedido ou desviado por seus sucessores históricos. Os exemplos de Nuremberg, Grécia ou Argentina (este último numa proporção pequena) não podem aplicar-se a outros países, já que nos três casos houve, de maneira direta ou indireta, intervenção internacional.
O ajuste de contas com o passado de genocídio e tortura não pode ser tratado como um problema nacional, mas como uma questão que afeta a toda a humanidade.

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