Caso Battisti:
Eterna Vigilância
Carlos A. Lungarzo
Os países da América Latina foram
colonizados por culturas racistas e supersticiosas, e povoados por ondas de
imigrantes europeus, cuja maioria tentava agradar às oligarquias locais, e
sentia-se representada pelos novos movimentos de direita que apareciam em seus
países. Por exemplo, o Integralismo brasileiro
é nada mais que uma versão medíocre e subdesenvolvida do fascismo de Mussolini.
As esquerdas do continente surgiram
também dos imigrantes, mas, neste caso, eram minorias esclarecidas que
provinham de regiões mais avançadas, onde a luta de classes já era um fenômeno
conhecido desde a Revolução Industrial. Estes eram anarquistas, comunistas,
socialistas e marxistas independentes, que vinham de enclaves judeus, russos,
alemães, ou então da parte mais iluminista do Portugal, da Espanha e da Itália,
como a Catalunha, a Lombardia, o Triângulo Vermelho do Norte da Itália, etc.
Por esse motivo, em quase nenhum país da América Latina (salvo
a pequena Costa Rica, após 1947, e o Uruguai, até 1973), existiu respeito sistemático
pelos direitos humanos. É verdade
que no Brasil temos pelo menos a teoria, no artigo 5º da Constituição Federal,
mas (como todo mundo diz), entre o Brasil real
e o Brasil legal há um abismo
gigantesco.
Nos países com tradição burguesa
liberal, como a GB, a Holanda, os Escandinavos, parte da Suíça, o Canadá e
alguns estados mais seculares dos EEUU, um estrangeiro pode ocupar cargos
públicos, opinar sobre política, se filiar a partidos políticos e fazer
propaganda política.
Em meus remotos tempos de estudante,
nós, que tínhamos apenas visto de estudante, mas não éramos sequer imigrantes,
não sofremos perseguição mesmo na época de Reagan. Eu e meus amigos
participamos em atos contra a política americana na Nicarágua, na Guatemala,
Honduras, e nunca fomos ameaçados com expulsão, desde que não fosse usada
violência.
Na Europa não católica, a tolerância
é ainda maior. Um colega de militância que se refugiou na Europa, foi
imediatamente aceito pela Suécia, que lhe deu inicialmente um visto de 3 anos.
(Pouco depois virou cidadão sueco). Mas mesmo com esse visto (muito menos forte
que a residência permanente que tem Battisti e tenho eu no Brasil), meu amigo
Jorge foi aceito no Partido Socialista, que o propôs para candidato a prefeito
da pequena cidade de Arvidsjaur, mesmo sem falar corretamente o sueco. Não
ganhou essa eleição, mas seu programa interessou os eleitores que o escolheram
pouco depois para vereador.
No Brasil, como em qualquer outro
país do Cone Sul, os estrangeiros não têm nem um décimo desses direitos. A
lei de estrangeiros de 1980, ultradraconiana, aprovada durante a ditadura de
Figueiredo, estava destinada especialmente a prejudicar os refugiados, e foi
aprovada com urgência, porque o governo queria honrar as ditaduras do Chile e
da Argentina. Ela nunca foi substituída apesar das promessas de humanizar a
vida dos exilados.
No Brasil, na vida prática, um
estrangeiro têm mais direitos que a maioria dos nacionais, pois essa maioria é
pobre. Mas, os estrangeiros que gozam destes benefícios são os que as elites
protegem e, obviamente, os que têm dinheiro.
Um Exemplo Próprio
Durante meu primeiro período como
professor da UNICAMP, a ditadura não se empenhou em deportar-me para a
Argentina, o que, naquele momento, teria sido a morte para toda minha família. A
burguesia paulista não gostaria deportar um cientista, branco, membro de um
centro de (imaginada) “excelência”.
Na época, havia na UNICAMP dois
professores argentinos e um chileno, que eram figuras políticas importantes em
seus países, dos quais um tinha sido ministro. Os três estavam no Brasil
estreitando “relações culturais” entre a ditadura de Geisel e seus equivalentes
da Argentina e do Chile.
Na Argentina, eu não estava entre as
pessoas mais procuradas. Apenas me pegariam se isso fosse muito fácil, pois a
única acusação era ser membro de organizações de direitos humanos.
Por causa dessa relativa
tranquilidade, em abril de 1978, dei uma entrevista à revista da Sociedade
Americana para o Avanço da Ciência, que era publicada em inglês e não era lida
fora do círculo de cientistas. Minha entrevista foi discreta e minha relação
postal com o editor era um assunto puramente pessoal que nada tinha a ver com a
política interna brasileira.
Nela, eu denunciava os crimes da
ditadura Chilena e, sobretudo, da Argentina, e pedia a cooperação internacional
para ajudar as forças democráticas. A entrevista não foi, acredito, do
conhecimento do Ministério da Justiça da ditadura, mas sim foi conhecida pela
própria UNICAMP, cujo vice-reitor grampeava minha correspondência. (Na época
não tinha Internet)
Este avisou ao espião chileno que
avisou a um dos espiões argentinos, e ambos colaboraram com meu chefe para me
demitir. Meu chefe (acredito que com bastante alegria) me disse que não podia
proteger uma pessoa que difamava governos amigos,
e me confessou que tinha enviado uma carta ao editor do magazine que tentou
fazer minha entrevista a distância, dizendo que minhas denuncias eram
exageradas.
Fui expulso do Centro de Lógica e História da Ciência, contando apenas com o apoio
de dois colegas. Os restantes deram de ombros. Tivemos sorte de sermos admitidos
pelo México, onde ficamos até a vinda da democracia no Brasil.
Dou este exemplo para que os amigos de esquerda que leem esta nota
entendam até que ponto é frágil a
vida de um refugiado.
A Situação de Battisti
Numerosos estrangeiros opinam de
política partidária, e eu também o faria se tivesse algo para dizer. Mas, nem
eu nem muitos outros imigrantes, teríamos,
hoje em dia, perigo em nossos países de origem.
Não acontece isso com Battisti. Se ele for expulso a qualquer local
do mundo, não poderia viajar mais ou menos tranquilo, como eu fiz. Vou relatar
uma parte importante dessa viagem.
Quando estava com
minha família em Congonhas esperando a decolagem, do avião da Varig que nos
levaria a México, entraram, quase na hora de fechar as portas, cinco homens e três
mulheres muito elegantes e silenciosos, que tinham poltronas perto das nossas,
formando um círculo do qual nos estávamos no centro.
Eles seguiram no
voo até a escala em Miami. Tinham umas malas que pareciam estojos de violinos,
mas aposto a que não eram! Deviam ser instrumentos de uma nota só.
Eles nos olhavam discretamente,
mas jamais nos incomodaram. Apenas um deles se levantou e me seguiu a boa
distância quando fui ao banheiro. Na conexão em Miami, eles desapareceram e o
voo Miami-México, pela linha Aeroméxico, foi tranquilo.
Os policiais não iriam sequestrar uma
família apenas por causa de que um de seus membros fosse um era ativista de
direitos humanos, mesmo que esse tipo de atividade produzisse repulsa a
policiais e militares. Aliás, a Argentina nunca tinha pedido minha extradição,
pois na fila de espera para ser assassinados pela ditadura devia haver, antes
de mi, pelos menos 200.000, e os militares argentinos apenas tinham atingido os
30.000.
Peço agora que Imaginem o caso de Cesare Battisti.
Suponhamos que ele fosse deportado a
um terceiro país, como propôs um triste provocador há alguns meses. Nesse caso,
o ciclo de saída do país deveria ser parecido ao que foi o nosso, e talvez 8 ou
mais policiais fossem destacados com a finalidade de vigiá-lo. Mas, um voo a um
pais não fronteiriço (por exemplo, México) tem sobrados pretextos para fazer
uma parada técnica, onde os policiais oficiais poderia ser substituídos por
mercenários italianos.
Foi assim como se fez, não apenas na
desolada Nicarágua, com um refugiado italiano, mas nas cultas e civilizadas
Suíça e França com outros dois. Algumas pessoas acham estas coisas impossíveis,
mas a ditadura argentina sequestrou em aviões pelos menos 37 pessoas que nunca
reapareceram. Mas, não precisamos ir longe. Os EEUU sequestram hoje militantes
islâmicos em países europeus e os transportam em aviões até centros de tortura.
Battisti tem no Brasil o apoio de corajosos apoiadores entre os
parlamentares, os advogados, alguns membros do governo, os movimentos sociais,
as ONGs de Direitos Humanos e algumas dúzias de amigos que o monitoram continuamente.
Mas, quem pode proteger alguém que está nas mãos de 10 mercenários armados no
meio da impenetrável selva da América Central?
Ou, porque será
que o grotesco provocador sugeriu que Battisti fosse enviado ao México?
Muitos pensarão: “estamos em
democracia”. Mas lembrem uma frase do ditador d’Aubisson que foi derrubado por
uma revolta democrática em El Salvador:
A democracia passa, mas a polícia e os militares ficam.
É natural que alguém brilhante como
Battisti, que passou 4 anos preso no Brasil sem qualquer motivo, sinta uma
enorme necessidade de liberdade. Seria anormal que uma pessoa sensível fosse
indiferente aos convites dos movimentos sociais, que, com sua preciosa
militância, fizeram possível criar um
clima de pressão para que ele fosse solto.
Mas, a situação é ainda instável e, como diz o ditado, “a corrente se
corta pelo elo mais fraco”.
Sei que Battisti poderá sentir-se desconfortável
por este aparente “paternalismo” da
minha parte, mas, como dizia o grande Miguel de Unamuno, “há momentos em que calar é mentir”.
Não devemos subestimar o poder dos
linchadores.
Battisti foi julgado no Brasil na
pior farsa jurídica conhecida e, a pesar de ter tido final feliz, a
tortuosidade de todo o processo esteve mais cheia de mentiras e ilegalidades
que a de Dreyfus, Joe Hill e Sacco e Vanzetti. Apenas a de Olga Benário e a de
Jimmy Wilson em 1958 em Alabama, são comparáveis.
O voto do relator contra ele contém mais de 20
falsidades e uma clara contradição. Os dados mais básicos publicados pelos
jornais eram falsos. Até mentiam ao dizer qual era o grupo armado ao qual Battisti
pertenceu na Itália há 34 anos.
A nossa foi, e continua sendo, uma
luta contra fascistas, covardes, mercenários e personagens do Código da Vinci.
Mas, não por lutar contra canalhas
devemos desprezar o poder do inimigo. Que as hordas de linchadores estejam
privadas de um mínimo de inteligência, honestidade e coragem, não impede que
tenham força, dinheiro e recursos legais. Como conhecedores do marxismo, todos
nós sabemos que a lei se faz em benefício dos ricos, e é aplicada por aqueles
que os servem.
Algumas vezes, por erro ou acaso (ou,
por pressão popular, como no caso Battisti), a lei se aplica com justiça, mas
isso é raro, e os movimentos sindicais, sociais, políticos e culturais que
apoiaram Cesare podem sentir-se contentos de ter tido um sucesso proporcional a
seus generosos esforços.
Desde que Battisti foi liberado,
houve várias provocações contra ele:
a farsa da Haia, a bufonada do MPF/DF, a sabotagem contra o acórdão, e algumas
outras. É verdade que os provocadores estão cansados e seus intoxicados
neurônios têm dificuldade para inventar novos truques. Mas, eles podem
aproveitar qualquer circunstância que pareça favorável.
Lembremos que já é preocupante ter
que permanecer em alerta permanente (como
de fatos estamos) para evitar que aconteça qualquer autoatentado da direita
para influencia a população contra o escritor. Isto é uma prática que gangues
conservadoras, fascistas e monarquistas, aplicaram desde o começo da
modernidade, e na qual a operação Gladio foi mestra.
Não sugiro que uma pessoa talentosa e
criativa deva viver na humilhação do silêncio. Battisti tem muito para dizer,
muita função educadora para fazer, como fez durante 10 anos no México e durante
14 anos na França.
A obra que Battisti pode fazer como escritor de assuntos
sociais é muito maior que a contribuição que pode fazer dando entrevistas para
movimentos partidários.
Pode-se ajudar à sociedade sem
necessidade de participar de discussões sobre a política nacional. Há muitos
militantes valiosos no Brasil, e não é necessário que um estrangeiro se some a
eles com risco de sua vida.
Todavia, os intelectuais lúcidos e
envolventes, que podem abrir os olhos da humanidade, são imprescindíveis, e uma
figura da grandeza de Battisti não aparece a cada 20 anos num mesmo país.
Lembremos que quando foi publicado o
livro Cargamento Sentimental, na França,
o resenhista de uma pacata porém prestigiosíssima revista francesa de
literatura se emocionou e disse:
Salve, Cesare, os que te leram, te saúdam
Deixemos que Battisti agradeça a
todos os movimentos de esquerda com o melhor que ele tem: paixão, talento,
imaginação e experiência cultural.
Sua tarefa deve ser continuar sua missão educadora, que lhe valeu a admiração de vários
prêmios Nobel, de intelectuais brilhantes, de celebridades importantes, de
artistas famosos, e de grandes estrelas, como Jeanne Moreau.
Sua ausência num
ato político não será tão grave como poder ser uma morte lenta e horrível nas
prisões italianas.
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