Por Celso Lungaretti
Outros tempos, outro mundo é o título de uma coletânea de contos sci-fi de Robert Silverberg, lançada em 1970.
Menos valorizado que Asimov, Bradbury e K. Dick, ele é autor de uma indiscutível obra-prima, Mundos fechados (1973).
Mas, não é propriamente de Silverberg que eu quero falar, mas sim da sensação que tive ao ler a coluna desta 5ª feira (10) de Carlos Heitor Cony, O abuso das algemas, sobre Conrad Murray, o médico que querem jogar numa prisão porque Michael Jackson morreu:
"Ele foi condenado em primeira instância porque estava ausente do quarto onde o cantor, já devidamente dopado, tomou uma overdose do remédio que o matou. Que houve culpa do médico é evidente: sabendo da situação, ele deveria estar junto ao leito do artista ou ter retirado o remédio de seu alcance.
Daí a acusação de homicídio culposo. Tudo bem, a justiça foi feita, pelo menos em sua primeira etapa. O que não compreendi foi o ritual dos guardas logo após a leitura da sentença: algemaram o médico.
Em nenhum momento ele ameaçou fugir, agredir quem quer que fosse, não tinha antecedentes criminais e estava sendo julgado por homicídio não qualificado, com direito a apelação.
Compreende-se a condenação, mas não a violência das algemas. Se mais tarde for absolvido, ele terá sido vítima de um ritual judiciário-policial, completamente desnecessário no caso dele".
Cony é, como eu, de outro tempo e de outro mundo.
Do tempo em que ainda havia brasileiros cordiais e do mundo no qual ninguém considerava justificável virar uma universidade pelo avesso porque três jovens fumavam maconha sem prejudicarem a ninguém exceto, talvez, a eles mesmos.
Hoje, há um clamor popular por repressão e truculência, repulsivamente insuflado e maximizado pela indústria cultural. Não se quer justiça, quer-se linchamento (moral ou real) em público.
Cada telespectador, convenientemente adestrado pelos Big Brothers do pós-1984, sente-se aliviado ao desempenhar, ainda que imaginariamente, o papel de juiz e carrasco. A catarse lhe é provida pela indústria cultural, para que continue funcionando a contento numa sociedade desumanizada.
Então, bem-vindas as vozes que ainda alertam contra a escalada do autoritarismo!
Então, bem-vindas as vozes que ainda alertam contra a escalada do autoritarismo!
Mesmo que o façam timidamente, pois não é só o uso de algemas que está errado no caso em questão, mas sim o caso inteiro: o médico não pretendeu cometer crime nenhum, foi apenas incompetente. Merece ser privado do direito de exercer a profissão, mas não da liberdade.
Tanto quanto a enfermeira que injetou leite na veia de um recém-nascido e lhe causou a morte. O que mais havia a fazer-se, além de a demitir? Por maior que seja nossa dor, não podemos clamar por vingança quando inexistiu intenção dolosa.
É outra que jamais vai exercer de novo tal ofício e, espero, sofrerá com a lembrança de como provocou o próprio infortúnio e o de coitadezas obrigados a recorrerem à saúde dos pobres na rica São Paulo.
A devastação que sofremos é outra, mas caem como uma luva as palavras do dirigente esportivo chileno Carlos Dittborn quando, às vésperas do Mundial de 1962, a infra-estrutura com que seu país contava para sediar a Copa do Mundo de 1962 foi seriamente comprometida por forte terremoto: "Porque nada tenemos, lo haremos todo!"
Nosso mundo foi reduzido a nada, neste tempo em que a selvageria do capitalismo está sendo introjetada nos espíritos e devolvida na forma de hostilidade, preconceitos, grosserias, agressões -- várias facetas da barbárie que, paradoxalmente, recrudesce quando estamos no auge de nosso desenvolvimento científico e tecnológico.
O que nos obriga a reconstrui-lo por inteiro, tendo a igualdade, a harmonia e a felicidade dos homens como referenciais e valores supremos.
O que nos obriga a reconstrui-lo por inteiro, tendo a igualdade, a harmonia e a felicidade dos homens como referenciais e valores supremos.
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