Com florzinhas nas lapelas, os senadores saíram da sua casa oficial. Foram recebidos por centenas de estranhas pessoas que não paravam de se beijar. Havia homens que pareciam mulheres e mulheres que pareciam homens. Todos pareciam ser alguma coisa que não eram, mas que desejariam ser. Pareciam manequins. E não paravam de se beijar. Os lábios já estavam roxos, mas não de frio.
Os senadores e senadoras foram cercados e ovacionados com gritos histéricos dos homens que pareciam mulheres e com urros atordoantes das mulheres que pareciam homens. Os lábios dos seres, aos poucos, voltaram às cores normais, mas somente o tempo suficiente para gritarem histericamente e urrarem grotescamente quando da saída dos senadores. Do outro lado da calçada, mas cercados por um cordão de isolamento e por policiais que pareciam ser policiais – alguns pareciam homens de verdade, outros pareciam mulheres de verdade – centenas de pessoas que pareciam pessoas de verdade e não manequins, gritavam com vozes que pareciam vozes humanas, palavras de ordem que variavam entre “Vendidos!” e “Vendidas!”. Porque os senadores eram, supostamente, dos dois primeiros sexos que formaram a raça humana.
Supostamente. Ouvia-se buzinaços nas ruas, mas ninguém sabia se eram de vaia ou de ovação. Tudo se confundia, conforme o planejado. Súbito, alguns senadores dos que pareciam homens foram cercados pelos homens que pareciam mulheres e algumas das senadoras que pareciam mulheres foram cercadas pelas mulheres que pareciam homens e, apesar dos seus protestos iniciais, também foram beijados e beijadas, ou beijadas e beijados, fogosamente. Beijos que correspondiam a votos e, aos poucos, os escolhidos deixaram-se beijar e abraçar e acariciar e...
Do outro lado, na outra calçada, supostos homens policiais e supostas mulheres policiais começavam a preparar as bombas de gás lacrimogêneo e as balas de borracha contra a multidão que ameaçava avançar. Os buzinaços aumentavam. Parecia até que o Brasil inteiro acordava, embora houvesse futebol em todos os estádios. A multidão revezava-se entre rezas em altos brados e gritos de fúria. Os senadores que não tinham sido seqüestrados aos beijos pelos estranhos e alegres seres humanos que pareciam, fingiam que nada estava acontecendo, com aquelas caras de sonsos que os caracterizam e tentavam sair rapidamente de entre os seus acariciadores eleitores. Seus seguranças, que supostamente era homens, chamavam helicópteros para resgatá-los - mesmo os(as) que estavam nus ou nuas e assediados ou assediadas de todos os lados por beijos e sexos e coisas e tais.
Supostos homens e supostas mulheres jornalistas tudo filmavam e reportavam à sua maneira ou conforme o roteiro especificado ou de acordo com as suas preferências sexuais, mas sempre havia um(uma) âncora que repetia para não esquecerem o politicamente correto. E tudo era filmado, exceto as cenas burlescas de repto e de rapto e os senadores eram descritos como heróis que a pátria aclama e ama por terem aprovado uma lei que protegia e aspergia uma classe especial de pessoas sensuais, sensoriais, sensíveis e sensitivas, que agora estavam acima dos demais seres que não eram tão sensuais ou tão sensíveis assim, ou o eram à sua maneira que, de agora em diante, deveria ser considerada errada.
A multidão do outro lado da rua urrava. Os seres que pareciam gargalhavam, ou pareciam gargalhar. Súbito, o cordão de isolamento foi rompido. Pedras, balas e bombas foram jogadas, de ambos os lados – e ambos os lados não eram ambos, porque existiam diversos lados – e já se trocavam os primeiros socos e empurrões e palavras não escritas na Bíblia eram proferidas aos gritos e raivosamente e mulheres que pareciam homens, fortes e destemidas, formaram a linha de frente dos Mais Sensíveis. Junto a elas ou eles, homens vestidos de mulheres, mas sensivelmente musculosos, começaram a esbordoar os que brandiam bíblias – em legítima defesa ou em fero ataque – e repeliram a agressão dos que estavam na frente da multidão urrante e foram ouvidos gritos de “Cuidado com a Gaystapo!” e muitos foram feridos e posteriormente presos pelos policiais que pareciam realmente ser policiais, embora surgissem dúvidas, e a voz de prisão para todos e cada um dos que formavam a multidão que era Contra Os Mais Sensíveis era dada por dez seres que pareciam seres alados, vestidos com coloridas togas que pareciam asas e muito foi o gemer e o chorar.
O Brasil estremecia sexualmente. Orgasmos múltiplos aconteciam a todo instante nos mais diversos recantos deste país continente. Mesmo os que estavam nos estádios e torciam pelos seus coloridos times de futebol, ao saberem da notícia dividiram-se e começaram a brigar enquanto os jogadores faziam a dança do trenzinho. Templos eram fechados por ordem dos cumpridores da Nova Lei da Sensibilidade e os fiéis recolhiam-se aos esgotos e cloacas públicas, que acreditavam catacumbas. Os que não conseguiam se esconder a tempo eram obrigados a prestar o Juramento Sensível e a provar a sua sensibilidade no ato.
Coloridos do Brasil inteiro se uniam em passeatas magníficas, ao lado dos deputados que por eles tudo faziam e dos senadores que tentavam esconder a sua senilidade com gestos sensíveis. O Exército estava nas ruas para prevenir novos ataques dos que eram Contra os Mais Sensíveis. A Esquadrilha da Fumaça fazia revoluteios no ar. Navios coloridos da Marinha ostentavam bandeirolas e lançavam vistosos fogos de artifício que podiam ser vistos nas alegres praias do país. A Nova Lei da Sensibilidade era pregada em majestosos Templos Sensoriais para multidões embevecidas com a sua nova liberdade dos cinco sentidos.
Faziam-se festas e um Carnaval fora de época era anunciado. Tudo parecia muito alegre. Tudo se confundia, conforme o planejado. E a confusão tornava todos confusamente felizes.
Depois de algum tempo – talvez meses, talvez anos – quando os fulgores da alegria geral já não eram tão fulgurantes e a alegria geral não parecia geral, e quando os assustados moradores dos esgotos que apelidaram de catacumbas, animaram-se a sair, aos poucos, e não foram agredidos imediatamente, mas apenas olhados com alguma animosidade, formaram-se, em nome da Democracia das Cores, pequenos grupos de obsoletos heteros, que somente foram aceitos porque podiam proliferar e o Estado necessitava de novos atores e novos soldados. E desses grupos surgiu um movimento que foi denominado Movimento da Proliferação, ao qual foi dado o direito de manifestar-se publicamente e, inclusive, fazer passeatas que reivindicavam direitos iguais aos Coloridos.
Os políticos, que continuavam políticos, apesar de Coloridos e dividindo-se no Congresso apenas pelas diversas cores e matizes, perceberam que surgia uma nova força social que proliferaria e traria votos. Logo, os Prolíficos começaram a queixar-se de agressões e até assassinatos, de perseguições pelos Coloridos Ortodoxos e os políticos, aos poucos, foram acolhendo as suas reivindicações.
Chegou o dia em que uma nova lei seria votada no Senado, depois de ter sido aprovada pela Câmara, que daria aos Prolíficos os mesmos direitos que os Coloridos, e até alguns a mais. Uma lei que defenderia os Prolíficos do que eles chamavam de crescente heterofobia no país. Os Coloridos Ortodoxos reagiram e manifestaram-se contra aquela nova lei.
No dia da votação, os Coloridos Ortodoxos colocaram-se na calçada oposta à do Senado, enquanto os senadores votavam. Mal perceberam quando foram cercados por um cordão de isolamento e por policiais que pareciam Prolíficos de farda, que começavam a preparar as bombas de gás lacrimogêneo e as balas de borracha. Ouvia-se buzinaços nas ruas.
Fausto Brignol.
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