quinta-feira, 2 de junho de 2011

Caso Battisti: Catálogo Brasileiro Abreviado

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Caso Battisti:
Catálogo Brasileiro Abreviado
Carlos A. Lungarzo
AIUSA – 2152711
Cum victoribus nihil impeditum, victis nihil tutum arbitrarentur...
Como eles (os vencidos) acharam que aos vitoriosos nada é impedido, e aos vencidos nada é seguro...
Frase de Júlio César se referindo a derrota do povo dos Nervios, onde formula um dos mais claros postulados do militarismo: a lei é a força e o vencido não tem direito nenhum. Vide De Bello Gallico, II, 28
Todos os dias, em mais da metade dos países do mundo, diversas pessoas são vítimas de linchamento judicial. Entretanto, apenas seis casos ganharam grande publicidade até 1960: Dreyfus (Fr., 1894); Joe Hill (EEUU, 1915), Sacco e Vanzetti (EEUU, 1927), Olga Benário (Br., 1936), o casal Rosenberg (EEUU, 1953), Jimmy Wilson (EEUU, 1958). O novo grande linchamento togado se repete, anacronicamente, quando se pensava que o mundo tinha saído algumas polegadas de barbárie, em 2009: o caso Battisti. Este não é o mais truculento e cruel dos sete, mas é o mais tortuoso, o mais abundante em ardis cínicos, manobras obscuras, é o que melhor representa o espírito da Inquisição.
Dentro de poucos dias deveremos acordar do pesadelo, e por isso me pareceu útil fazer um breve catálogo de algumas perversões jurídicas, sociais, políticas e éticas cometidas durante a fase brasileira deste caso.
Elas são tantas, que talvez eu esqueça a maioria delas. Mas, as poucas que lembro com precisão serão suficientes para termos uma imagem. A lembrança permanente deste fato não deve servir para revanche, para acumular ressentimento nem para exercer nossa indignação. Deve servir apenas para que estes fatos não aconteçam novamente. Como isso é um objetivo difícil, que demorará várias gerações, devemos nos munir de todos os recursos legais, comunicacionais, intelectuais, artísticos e quaisquer outros, para que os inquisidores sejam desmascarados.
A vingança é o método típico da direita e das religiões, e isso explica a escala de violência interminável nos países não seculares. Todos perdem com a política do ódio. Mas a identificação dos responsáveis deve servir para as ações legais que sejam possíveis, dentro da reduzidíssima margem que possuem os perseguidos nas sociedades pré-civilizadas (como já tinha dito Júlio César), não sejam desestimadas, e se juntem esforços para, pelo menos, tentar inicia-las.

Captura e Primeiro Período

Ø Em março de 2007, Cesare Battisti foi sequestrado em Copacabana, por comandos policiais brasileiros, franceses e italianos. Na época, não havia pedido formal de extradição nem flagrante de qualquer delito. Esta detenção foi contrária à Convenção Americana de Direitos Humanos, à Carta de Bogotá, à Convenção de Genebra de 1951 e ao protocolo de 1967. Estas proíbem arrestar estrangeiros que fogem de perseguição, e podem estar irregulares porque a situação de perseguido lhes impede ter visto normal.
Ø Fontes diversas afirmam que o deslocamento de Battisti pouco antes do sequestro estava sendo monitorado pelo STF, sem cujo consenso ele não poderia ter sido realizado. Sequestro de qualquer cidadão num território qualquer, com auxílio de forças internacionais, é crime pelo direito internacional. (Sequestros políticos internacionais foram uma especialidade do Brasil na época da Operação Condor, mas se pensava que isto não aconteceria de novo. Não pode argumentar-se que, neste caso, havia um pedido do governo italiano, porque, se for assim, o sequestro dos uruguaios Lilian Celiberti e Universindo Dias também foi pedido pelo governo de seu país. É verdade que Battisti não foi devolvido clandestinamente a Itália, mas a regularização do sequestro só se faz alguns dias depois.)
Ø Em abril de 2007, a Polícia Federal e o Procurador da República, encaminharam “documentos” à Justiça Fede­ral, indicando a pretensa relação de Battisti com terroristas brasileiros. Os únicos “dados” mencionados, mas não mostra­dos, foram “documentos” que a Folha diz ter visto.
Ø O delegado Cléberson Alminhana, do setor de inteligência da Polícia Federal disse que se percebia uma tendência ao envol­vimento de Battisti com atividades terroristas. Talvez, Cléberson traduziu o famoso thriller Colombiano Americano intitulado “O computador das FARC” para o português. Com efeito, o delegado contou uma longa história de um computador, uns arquivos comprometedores e outras "provas" que parecem calcadas do histórico computador de Reyes.
Ø O procurador Orlando Cunha diz que a ligação de Battisti com terroristas europeus é “notória”, sem exibir provas nem mencionar testemunhas. (Antes, a polícia tinha dito que era com terroristas brasileiros. Ou serão terroristas universais? Precisa mais consistência em suas invenções, Excelência. Se não, vai ser difícil levar a sério) Nem disse o nome de algum desses grupos terroristas, porque, como todos sabem, atualmente quase não há terrorismo na Europa (O IRA fez um acordo com o UK, e o ETA está muito dividido). Facticamente, trata-se de um embuste do mais baixo nível, mas, juridicamente, é acusação não provada de culpabilidade, uma prática repudiada pelos países civilizados desde a época do antigo direito romano.
Ø O delegado Fábio Galvão, ao solicitar a busca e apreensão no apartamento de Battisti, disse: "Segundo informações da equipe policial, o italiano utiliza seu computador para se comunicar com a organização terrorista italiana conhecida como Brigada Vermelha"... (Seja que Galvão tenha inventado isto, seja que copiou de alguém, percebe-se que não teve tempo para conferir: o grupo guerrilheiro italiano, já dissolvido nessa época, se chamava Brigadas Vermelhas, com s de “sapato”. O termo, em singular, foi usado como abreviatura de Brigata Partigiana Stella Rossa, que atuou durante a segunda Guerra Mundial e foi dissolvido em 1947. O governo deve pagar melhor os policiais para que possam fazer um curso de leitura básica.)


Ø Na carceragem, o delegado Angelo Gioia não fornece os remédios suficientes para tratar uma infeção de ouvido de Battisti, e lhe nega banhos quentes, que poderiam contribuir a que infeção não se agrave. Este fato foi testemunhado por jornalistas, que assistiram à indignação do deputado Gabeira por estes maus tratos. Tentar agravar as doenças dos presos como método de punição (ou vingança), é crime internacional equivalente a tortura ou maus tratos.

Ø Vincenzo Battisti denunciou que seu irmão tinha sido espancado e queimado na polícia. Este dado foi confirmado pela reportagem da revista Piauí escrita por Mário Sérgio Conti. Ele registra que o prisioneiro recebeu pancadas, chutes e joelhadas, ficando lesionado por algum tempo.
Ø As torturas foram denunciadas ao relator Celso de Mello, mas este se limitou a transferi-lo de prisão, sem investigar os autores. Trata-se de acobertamento de tortura, também algo rotineiro no Brasil, onde a tortura ajuda juízes e procuradores para coletar mais corpos para os xadrezes.

Ø A prisão de Battisti, mesmo antes de sua declaração como refugiado, violou pelo menos 4 itens da Carta de Bogotá, da Convenção Americana e da Convenção de Genebra. Na numeração da Carta de Bogotá, os itens violados são os seguintes:
v No Artigo 24 se garante a qualquer pessoa o direito de apre­sentar petições respeitosas a qualquer autoridade. Em 11 de feve­reiro de 2009, Eduardo Suplicy tinha entregado ao STF uma petição de Cesare para ser ouvido, mas os inquisidores a ignoraram. Todos sabiam que nunca Battisti tinha sido acusado formalmente de homi­cídio e condenado sem interrogatório nem declaração.
v O artigo 25 exige que o juiz verifique sem demora a legalidade da prisão, e que o processe ou o libere. Quando eu escrevi a denúncia a OEA, já Cesare somava 26 meses de masmorra.
v O artigo 26 recolhe um antiquíssimo princípio do direito oci­dental: Presume-se que todo acusado é inocente, até prova de culpa. Qualquer pessoa socializada sabe isso aos 6 anos. Entretanto, o ministro Celso de Mello tinha dado à imprensa dicas mascaradas de que o refugiado podia ser condenado.
v O artigo 27 é uma declaração enfática do di­reito de buscar e receber asilo. Os inquisidores torceram o processo para poder extraditar Battisti, a despeito do direito de asilo e das decisões do chefe do estado.
Ø Em abril de 2007, quando Battisti estava internado na Polícia Federal de Brasília, um grupo de parlamentares e políticos tentou visitá-lo para manifestar solidariedade, mas foi obstruído pela delegada Valquíria Souza Teixeira de Andrade. Os parlamentares, mesmo aceitando as sevícias, novamente foram obstruí­dos por um funcio­nário não mencionado que reduziu seu tempo de visita. Ainda aceitando o abuso, o deputado Chico Alencar e o senador José Nery encontraram mais uma dificuldade. O dele­gado Rodrigo Zemovitch aduziu que seus nomes não estavam na lista de visitantes, e só permitiu a visita ante a reação dos parlamentares.

Ø Todos os pedidos de soltura da defesa, salvo um, foram submetidos pelo relator Peluso à aprovação da Itália, acatando sempre a decisão dos patrões. Isto viola o princípio de neutralidade entre as partes.
Ø O relator  Peluso “advertiu” os advogados que os pedidos de soltura deviam parar, porque, caso contrário, o julgamento se faria interminável. Em outras palavras, ameaçou os defensores.

Julgamento e Relatório

Ø Para burlar a lei 9474, que impede extraditar um refugiado, o relator de STF anulou o refúgio. Esta é uma intromissão ilegal do judiciário no executivo, cujo direito a dar refúgio está garantido na CF, nas leis nacionais, nos tratados internacionais, na jurisprudência e não direito usual. Não se conhece nenhum outro caso em qualquer país do mundo desde 1945.
Ø O relatório contra Battisti contém numerosas mentiras, algumas muito grossas. Exemplo 1: que os megaatentados terroristas entre 1969-1981, com explosivos militares, nunca foram esclarecidos. Foram, sim, e se identificaram como autores uma dúzia de fascistas. Mas quase todos eles foram liberados pela Suprema Corte Italiana. (2) que a Itália não existiram leis de exceção, (3) que Tarso Genro mentia ao falar da repressão italiana, (4) que na Itália da época existiam plenas liberdades civis, (5) que Battisti era amigo dos que assaltaram Torregiani no Restaurante Transatlantico, pouco antes de sua morte, (6) que o ladrão do restaurante no foi morto por ele, mas por um amigo dele, e que foi em legítima defesa, o que contradiz as testemunhas arroladas pelos jornais, (7) que a luta contra o terrorismo na Itália foi a mais moderada da Europa, quando, de fato, foi entre 10 e 50 vezes mais violenta que a da Alemanha, a da Grã Bretanha e a da França, e até que algumas ditaduras latino-americanas, como a de Bolívia e Uruguai. (8) O relator chama “especulações” as denúncias de que o anarquista Pinelli tivesse sido torturado e jogado do 4º andar de uma delegacia em 15/12/1969, apesar dos numerosos indícios e algumas testemunhas. Há muitas outras que não lembro neste momento, mas o leitor poderá percebê-lo facilmente lendo o relatório.
Ø Além de falsidades explícitas, o relator oculta fatos importantes. Por exemplo, que Torregiani e Sabbadin eram membros de esquadrões de civis para matar marginais, contando com a “vista grossa” da polícia. Que Torregiani expunha as fotos das pessoas que tinha “executado” numa vitrine de sua loja. (Este fato causou a repulsa das pessoas normais e, em especial, de alguns jornalistas, que se referiram a ele como matador, justiceiro, etc., fatos que o relator omite.) Que Santoro era considerado torturador, inclusive pela justiça italiana, que arquivou seu processo. As únicas dúvidas que há em relação a prática de tortura e crime político é contra o agente Campagna, que foi acusado pelos PAC, mas sem mostrar provas. (Pode aduzir-se que Peluso não precisava referir-se às vítimas dos PAC, mas, nesse caso, não deveria ter apresentado eles como cidadãos pacíficos).

Ø O relator afirma que Battisti teve advogados, e o “prova” dizendo que seus advogados eram tão bons e corajosos, que o defenderam até do Conselho de Estado da França. Observem: os advogados que agiram falsamente são os italianos. Os mencionados pelo relator são os advogados franceses, que nem conheciam os italianos, e atuaram 20 anos depois que eles. Tudo isto está claríssimo nos autos. Impossível pensar que o relator estava confundido.
Ø Além de mentiras factuais, o relatório contém uma notória inconsistência. Na pág. 53, o relator diz que Battisti entrou no açougue de Sabbadin e lhe disparou vários tiros, na presença de Giacomini. Na página 108 disse o exatamente inverso: Battisti era o cúmplice e Giacomini fez os disparos. Não existe prova nenhuma da presença de Battisti, mas, pelo menos, a justiça italiana reconhece que os tiros foram dados por Giacomini, quem confessou o fato e nunca mencionou Battisti. É claro então, que a primeira versão é uma “criação” do relator.
Ø Após a leitura do relatório, a escritora Fred Vargas formulou publicamente 13 perguntas a Peluso, mas este se recusou inclusive a ouvir. Ninguém deu nenhuma resposta ao pedido do advogado de defesa, para que fosse feita uma nova perícia dos documentos falsificados com peritos brasileiros.
Ø O relator não deu a mínima importância à notícia de que as procurações usadas para os advogados italianos, Pelazza e Fuga, foram fabricadas pelo procurador de Milão para simular que Battisti tinha defensores. Uma prova detalhadíssima dessa denúncia de Fred Vargas está na página de entrada de meu site


Visão Global

Ø      Depois do decreto presidencial recusando a extradição no dia 31/12/2010, Battisti deveria ter sido imediatamente liberado. Peluso, não obstante se recusou a fazê-lo. Isto contradiz a própria decisão da Corte enunciada no acórdão da extradição 1085. Este ato constitui o delito de alteração de decisão, e está considerado nas leis como crime de responsabilidade.O julgamento previsto para o dia 8 de maio sobre a validade do decreto presidencial é sem sentido, já que pretende julgar algo que já foi decidido pelo mesmo tribunal em novembro de 2009. Seu objetivo é estender o mais possível o sofrimento do réu, fato proibido pelas convenções contra torturas e tratamentos degradantes.
Ø      A prisão de Battisti foi abusiva em todos os trechos destes 46 meses. Mas, em alguns casos, foi diretamente ilegal. Por exemplo, em junho de 2007, já o STF deveria ter decidido se julgava Battisti de acordo com o pedido de extradição da Itália, ou o deixava em Liberdade. Quando foi declarado refugiado, a prisão de torno absolutamente ilegal. Qual é a imagem internacional de um país cujo refúgio consiste no seguinte: “Vamos refugiar você; entre neste calabouço”?
Ø      Durante todo o período, a maioria da mídia qualificou Battisti de terrorista. O terrorismo é crime internacional, e acusar falsamente alguém de um crime é delito de calúnia.
Ø      Algumas cláusulas dos regimentos são tão ambíguas que, às vezes, é impossível saber quem tem a responsabilidade por algo. É por isso que muitas pessoas (entre elas nós mesmos) se confundem sobre os fatos atribuíveis ao relator e ao presidente. Durante o tempo que foi presidente, Gilmar Mendes tentou politizar a extradição, insinuando ameaças contra o governo caso “desatasse” ao Excelso Pretório. Sua manipulação foi mais política, mas, de qualquer maneira, a agressão contra o prisioneiro, talvez em medidas diferentes, são compartilhadas por ambos: presidente e relator.

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