sábado, 19 de junho de 2010
Saramago: 'Democracia mascara governo dos ricos'
Correio do Brasil, 21 de outubro, 2003
Em recente visita ao Brasil, o escritor Saramago Pinheiro, prêmio Nobel de Literatura, falou do seu próximo livro, “Ensaio sobre a Lucidez”, que deve ser lançado no próximo ano. “É um romance profundamente político. Não no sentido de contar uma história em que políticos fazem isso ou aquilo. É político na sua essência”, disse. O livro discute uma questão fundamental: a democracia, “vai despertar uma grande polêmica e isso é o que eu quero que o livro faça”, resumiu Saramago.
Para o escritor, a democracia está em evidência na atualidade, mas aparece nas discussões políticas como uma palavra, um conceito por vezes mal empregado. Saramago questiona: “como é que nós podemos continuar a falar de democracia em uma situação como a que vivemos, hoje, em todo o mundo?” E ele mesmo corrige: “a palavra democracia não descreve corretamente a realidade atual.O verdadeiro nome é plutocracia, que significa governo dos ricos”.
Saramago defende que, para se ter uma democracia de fato, é necessário que ela permeie um tripé: a democracia política, a democracia econômica e a democracia cultural.
Ele reconhece que os cidadãos têm o poder de decidir quem vai governar sua nação, mas alerta que, do ponto de vista econômico, o verdadeiro poder está nas mãos das grandes empresas e das multinacionais.
“O voto pode tirar um do poder e pôr outro no lugar, mas não pode impedir que a Petrobrás, a Coca Cola, a Mitsubishi ou a General Motors – as grandes corporações – sejam realmente aqueles que governam o mundo”, disse. E reforçou: “nós não somos chamados para eleger o conselho de administração de uma multinacional, e o poder está nelas, a um ponto tal que os governos transformaram-se nos comissários políticos do poder final”.
Para Saramago, a democracia deveria ser objeto de um debate mundial. Do ponto de vista político, ele admite que eleições, votos e partidos políticos são avanços democráticos, mas alerta que ainda não são suficientes. “A democracia existe como expressão de uma vontade política dos cidadãos, e acaba por aí”, desabafa o escritor. Explica que as pessoas têm o poder de eleger seus representantes, mas não têm o controle sobre eles. Se errarem, só poderão corrigir a cada quatro ou cinco anos, com as novas eleições.
Saramago disse, ainda, que tirar o cidadão da vida política é muito fácil. “É um trabalho de alienação sucessivo, constante, cotidiano, de todas as horas e de todos os minutos, em que nós somos metidos dentro de um buraco no qual não podemos pensar”, explicou.
Por isso é importante que a democracia permeie também a expressão cultural. Uma das formas de intervir no pensamento das pessoas, segundo Saramago, é “a transformação do planeta em um espetáculo”, uma tática usada desde a Antigüidade. “Nós aplicamos hoje, sem qualquer sombra de dúvida, a grande doutrina do Império Romano, que consistia em dar: ‘Pão e Circo’. O mundo é um circo e nós temos o pão - os que têm - suficiente para que a coisa se equilibre. Não há um lugar para que o cidadão reflita, para que ele discuta”, argumentou.
Lançamento
O que é preciso para adivinhar o futuro? “Qualquer um de nós pode ser profeta, desde que cumpra uma condição: profetizar o pior, porque o pior acontecerá”, disse ele esta semana em São Paulo. Saramago lançou, nesta capital, o que considera ser sua biografia autorizada, “José Saramago: O Amor Possível”, escrita pelo jornalista espanhol Juan Arias. A obra aborda temas pessoais, como a infância e a família do escritor, e apresentam suas idéias sobre política, religiões, literatura.
O livro sai no Brasil cinco anos após seu lançamento na Europa e foi escrito a partir de entrevista que Arias fez com o autor, anos antes de Saramago receber o Prêmio Nobel de Literatura em 98. Os dois estiveram na Livraria Cultura para lançar a obra e debater com o público o tema “A Literatura e o Engajamento Político”.
Segundo Arias, a passagem do livro que mais o emocionou foi a descrição das lembranças do escritor a respeito do avô que, muito doente, abraçou as árvores de seu quintal e morreu dias depois. Ele lembrou, também, o evidente amor de Saramago pela esposa, a jornalista espanhola Pilar del Río. “Ela queria estar aqui, mas, por problemas familiares, não pôde chegar a São Paulo”, explicou Arias.
Saramago disse que o livro comprova a sua teoria sobre a profecia, uma vez que tudo o que previu na entrevista que deu origem ao livro ocorreu de fato. “Tudo quanto pude expressar de pior aconteceu”, constatou.
FONTE : CORREIO DO BRASIL - outubro 2003
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