Em termos simbólicos, será um dos grandes momentos de Lula, ao escolher o exemplo certo no qual mirar-se: o de François Mitterrand, e nunca o de Getúlio Vargas.
Ciente de que os militantes da ultraesquerda italiana haviam cometido atos discutíveis em circunstâncias de enorme radicalização política, tendo sido depois julgados em meio a flagrantes violações de seus direitos, o presidente francês assumiu há 25 anos -- exatamente em 21 de abril de 1985, no 65º Congresso da Ligue des Droits de l'Homme -- a digna postura de oferecer-lhes abrigo em seu país, desde que tivessem abandonado a violência e não praticassem mais crimes.
A Lei Mitterrand fez o que a Itália deixou de fazer: promulgar uma anistia aos que travaram as lutas dos anos de chumbo, marcadas por excessos documentados de parte a parte.
Embora até hoje seus farisaicos defensores batam na tecla de que lá havia democracia, o certo é que algumas instituições funcionavam como se deve, outras não.
A repressão política e a Justiça incidiram em práticas não muito diferentes das adotadas pelas ditaduras latinoamericanas, como as torturas, a promulgação de leis de exceção (incluindo a que facultava a manutenção de um cidadão preso preventivamente durante mais de 10 anos!), o estímulo à delação premiada e a aceitação da palavra de um co-réu contra outro (permitindo a transferência de culpa), etc.
O Caso Battisti, aliás, registra um dos maiores descalabros do período: a falsificação de procurações por parte de advogados que defendiam co-réus cujos interesses eram conflitantes com os dele e, aparentemente, representaram-no com o objetivo de o prejudicar para favorecer a esses outros.
Ter aceitado como definitivas as procurações fraudadas, mesmo depois que a fraude foi cabalmente atestada por uma das mais eminentes peritas da Europa, deixa a Justiça italiana sob forte suspeita de cumplicidade com a farsa supostamente tramada entre advogados e promotores.
Por essas e outras, teria sido melhor para todos que as coisas permanecessem como Mitterrand as posicionara.
Mas, a ascensão da direita neofascista ao poder na Itália deflagrou uma rancorosa caça às bruxas, erigindo em símbolo Cesare Battisti, militante secundário de um grupo secundário da esquerda armada, dentre os aproximadamente 500 que atuaram durante a década de 1970 em seu país.
Tudo leva a crer que foi escolhido por sua crescente notoriedade como escritor. Era o alvo ideal para a demonstração de força que Silvio Berlusconi queria dar, exibindo sua cabeça como troféu que atestasse a vitória final da direita sobre a esquerda nas refregas dos anos de chumbo.
Para tanto, a Itália armou uma avassaladora campanha de pressões políticas e econômicas, com apoio midiático obtido a peso de ouro, para convencer a França a revogar o solene compromisso assumido em seu nome por Mitterrand.
Vai daí que, desde 2004, um homem a quem nenhum crime se imputava desde 1979 (sendo extremamente discutíveis os que lhe atribuíam antes disso), foi obrigado a uma fuga sem fim e sem real motivo, apenas porque a razão de estado conspirava contra ele e mobilizava recursos astronômicos para o crucificar.
No Brasil, a nova escalada direitista encontrou receptividade no Supremo Tribunal Federal: alguns ministros viram a chance de usar o Caso Battisti como ponto de partida para a criminalização da esquerda armada em geral (começando pela de um país democrático que resvalara momentaneamente para uma espécie de macartismo à européia e terminando naquela que resistiu a nossas ditaduras explícitas)
Secundaram-no as forças de oposição ao Governo Lula, na verdade interessadas principalmente nos ganhos propagandísticos que esperavam obter na corrida presidencial; e a imprensa, que hoje aqui assume totais características de indústria cultural, colocando a propagação das versões convenientes para o capitalismo muito acima do compromisso com a disponibilização da verdade.
Mas, a resistência de cidadãos dotados de espírito de justiça e dos abnegados defensores dos direitos humanos frustrou a tentativa de, durante o julgamento do pedido de extradição italiano no STF, não só revogar-se na prática a Lei do Refúgio e a jurisprudência consolidada, como também automatizar-se a sentença, com a abolição da instância final (o presidente da República).
Vai daí que Lula pode agora decidir se aceita ou não a mera recomendação de refúgio que o STF lhe mandou, decorrente de uma controversa e dividida votação de 5x4.
Mas, sabe-se que sua convicção íntima vai em direção oposta -- até porque não quer passar à História como responsável por infâmia semelhante à de Getúlio Vargas, ao não impedir que o STF entregasse à Europa outro troféu cobiçado pela mesmíssima direita troglodita, Olga Benário.
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