DO BLOG EMPÓRIO DA PALAVRA DE SILVIA CÂNDIDO
Estou lendo o livro "Acordais", de Regina Machado e me divertindo bastante com esta leitura. O livro traz a receita certa para ser um contator de histórias. Ela detalha cada passo, contando também sua experiência ao longo dos anos que desenvolveu esta linda profissão. Inclusive, se vocês prestarem atenção nas agendas culturais de hoje, sempre há um espaço para os contadores. A Regina foi uma das responsáveis por isso.
Há algumas semanas fui assistir uma contação de história dela e apesar de atrasada, consegui ouvir três histórias. Uma delas chama-se A aventura de Chu, que está no livro Acordais, e ela reconta. A forma, a expressão e a suavidade com que ela conta é fascinante, me transportou para o universo do conto e de forma semelhante que o personagem entra no quadro que vê, eu também me transportei para lá.
A história quando é contada e bem contada, jamais sai da nossa memória e esta história da Regina não saiu da minha cabeça, tanto que ela me inspirou fazer um desenho sobre ela. Assim eu também coloco em prática esta tradição oral tão bela... Quem sabe, meus filhos e netos também irão ouvir e transmitir para tantas outras pessoas estas lindas fantasias que deixa a vida com sabores mais adocicados.
A aventura de Chu
Era uma vez dois amigos que viajavam pelo mundo. Heng e Chu passaram por países desconhecidos, rios, vales e montanhas.
Um dia, quando atravessavam uma floresta, viram que logo ia desabar uma tempestade. Procuraram um abrigo e viram ao longe um velho templo em ruínas. Correram para lá e foram recebidos por um velho monge muito sorridente. O monge lhes disse:
_ Amigos, quero que vocês me acompanhem até a sala dos fundos do templo. Lá está representada uma obra de arte como não existe igual. Venham ver o bosque de pinheiros que está pintado na parede do fundo do templo.
Ele se virou e foi devagar, arrastando os chinelos. Os dois amigos o seguiram. Quando chegaram à última sala, ficaram maravilhados. De fato, era uma magnífica obra de arte. Começaram a andar desde o começo da pintura, observando as árvores de todos os tamanhos e tons de verde. Perceberam que além dos pinheiros havia outras figuras, montanhas ao fundo, um sol dourado iluminando o céu, jovens em grupo, em pares, conversando, colhendo flores.
Chu ia na frente e, quando chegou bem no meio da parede, parou. Ali estava uma jovem tão linda que o deixou boquiaberto. Era alta, elegante, os olhos negros pareciam duas jabuticabas, a boca era como um morango maduro; tinha um cesto no braço, colhia flores e seus cabelos eram longos e negros, penteados em duas grossas tranças até a cintura. Chu apaixonou-se imediatamente por ela e ficou ali parado, contemplando cada detalhe daquela jovem tão bela.
Chu não sabe quanto tempo ficou ali, até que de repente sentiu como se estivesse flutuando, seus pés não tocavam o chão. Olhou à sua volta e viu um sol dourado iluminando o céu, ouviu vozes e percebeu que eram das jovens que ele tinha visto pintadas na parede. Foi então que se deu conta de que estava dentro do quadro.
Quando se refazia do susto, viu a jovem de quem tinha gostado, um pouco mais adiante. Ela olhou para ele, sorriu, jogou as tranças para trás e saiu correndo. Ele a seguiu até que ela chegou a um jardim cheio de pequenas flores coloridas, que ficava em volta de uma casa toda branca. Ela atravessou o jardim e parou diante da porta. Quando Chu se aproximou, eles entraram e ficaram parados em pé, um diante do outro, bem no meio daquele aposento silencioso.
Eles se abraçaram, e Chu sentiu que amava aquela jovem como se fosse desde sempre. Então, eles foram para a cama e na manhã seguinte eram marido e mulher. A jovem se levantou e foi pentear seus longos cabelos, mas agora não fez as duas tranças, e sim um coque na nuca, como era costume das mulheres casadas.
nquanto conversavam, ouviram barulhos estranhos lá fora, passos pesados, som de correntes. A jovem ficou pálida, fez um sinal para Chu não dizer nenhuma palavra. Foram até uma fresta da porta e espiaram para fora.
Viram um ser descomunal, inteiramente vestido com uma armadura de ferro. Com olhos ameaçadores, ele carregava na mão um chicote, grilhões e uma corrente. Ele disse para as jovens do quadro que estavam à sua volta, apavoradas:
_ Afastem-se. Sei que há um ser humano entre nós, não adianta esconder. Agora vou vasculhar dentro da casa, tenho certeza de que ele está lá.
A jovem ficou mais pálida ainda e disse:
_ Chu, depressa, esconda-se embaixo da cama, não dá tempo de mais nada
Chu mal teve tempo de correr para debaixo da cama quando viu a porta se abrir. Duas botas de ferro entraram para dentro do quadro. Enquanto isso, Heng olhava o quadro, e deu por falta do amigo. Perguntou ao velho monge onde ele estava e o velho monge respondeu:
_ Não se preocupe, ele não foi muito longe, não.
Batendo com os dedos na parede, chamou com voz tranquila:
_ Volte, senhor Chu. Já é tempo de encontrar seu amigo outra vez!
Nesse momento, Chu foi saindo de dentro da parede.
_ Onde você esteve? _ perguntou Heng.
_ Eu não sei _ disse ele. _ Estava embaixo da cama, ouvi um barulho terrível, saí para ver o que era e sem saber como, cheguei de novo nessa sala.
Os dois amigos voltaram a olhar o quadro desde o começo para se despedirem dele. Chu ia na frente; quando chegou no meio da parede, aquela jovem estava lá. Alta, elegante, os olhos como duas jabuticabas, a boca lembrava um morango maduro e ela colhia flores. Mas seus cabelos não estavam mais penteados em tranças, agora eles formavam um coque na nuca, como era o costume das mulheres casadas, naquele lugar.
Os dois amigos desceram as escadarias do templo em silêncio. A chuva já tinha parado e eles se foram sem dizer palavra. A viagem continuava.”
In Regina Machado. Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias. São Paulo: DCL, 2004, p.39-41. História traduzida e recontada por Regina Machado a partir de: Gougaud, Henri. “L’ aventure de Chu”, in L’Arbre à soleils. Paris, Éditions Du Seuil, 1979. P. 109.
Silvia Cândido
http://emporiodapalavra.blogspot.com/2009/05/regina-machado.html
Tudo de bom, contador de história resgata as formas de repasse das narrativas e divulga esse h´bito em desuso.
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