terça-feira, 14 de julho de 2009

SOLIDARIEDADE REVOLUCIONÁRIA: AINDA EXISTE?

Atendendo a pedido do poeta, jornalista e militante revolucionário Rubens Lemos (foto), fui porta-voz da greve de fome do seu filho Marcos Wilson em 1986.

Pouco há de novo, para mim, na luta que estou travando no sentido de evitar a extradição do companheiro Cesare Battisti e garantir-lhe o direito de viver em liberdade no Brasil.

Há exatos 23 anos vivi situações semelhantes, quando militantes nordestinos estavam em greve de fome e tive de fazer esforços desesperados para conseguir repercussão na imprensa, fundamental para sensibilizar-se as autoridades.

Daquela vez a esquerda foi mais omissa ainda do que agora, se é que isto serve de consolo.

Mesmo assim, ainda não consegui me habituar à constatação de que a maioria dos sites e portais ditos progressistas concede espaços incomensuravelmente maiores aos assuntos rotineiros do que ao exercício da solidariedade revolucionária.

O certo é que, pelos procedimentos adotados em todos os casos anteriores de concessão de refúgio humanitário, a decisão favorável do ministro da Justiça Tarso Genro seria o suficiente para a libertação de Battisti.

Se o Supremo Tribunal Federal entende que deva colocar em questão a Lei do Refúgio e a jurisprudência que ele próprio firmou com suas decisões anteriores, o mínimo de isenção determinaria que, pelo menos, pusesse o escritor italiano em liberdade provisória até apreciar o caso (o que está prometendo fazer, sem cumprir, há cinco meses...).

O inaceitável é que permaneça este quadro kafkiano, com Battisti preso desde março/2007 por crimes de que foi acusado alhures, não tendo sido libertado nem mesmo depois de o Governo brasileiro conceder-lhe refúgio, sem que a esquerda desenvolva todos os esforços a seu alcance para corrigir esta situação verdadeiramente aberrante.

Se depender dos companheiros muy amigos, Cesare está f... e malpago.

MILITANTES ABANDONADOS ÀS FERAS EM 1986

Quando montou sua peça sobre Zumbi, o bravo Teatro de Arena colocou logo no tema de introdução que se tratava de uma
"História da gente negra, da luta pela razão
Que se parece ao presente, pela verdade em questão
Pois se trata de uma luta muito linda, na verdade
É luta que vence os tempos, luta pela liberdade"
Como o episódio de Salvador/1986 também "se parece ao presente, pela verdade em questão", vale a pena evocá-lo aqui, reproduzindo trechos da narrativa que fiz em Náufrago da Utopia (Geração Editorial, 2005), que, até onde sei, é o único livro que registrou tal acontecimento.

Como escrevi boa parte do Náufrago na 3ª pessoa, refiro-me a mim pelo pseudônimo que então utilizava nos textos jornalísticos, para driblar a censura do regime militar: André Mauro.

Sem mais delongas, vamos ao que interessa:
"Final de 1986. André chega atrasado para a reunião da Cacimba, numa tarde de sábado. O grupo literário se distribui por cadeiras e pelo chão do quarto. A palavra está com um visitante ilustre: Rubens Lemos, jornalista, poeta e velho militante comunista. André cumprimenta a todos, pede desculpa pelo atraso e se acomoda. Rubens continua expondo o problema que o trouxe a São Paulo.

"Seu filho e três outros companheiros foram presos ao assaltarem um banco na capital baiana, alguns meses atrás. Dinheiro para a revolução, uma prática que já parecia extinta. Por serem todos petistas, a imprensa fez estardalhaço. E o partido, temendo que esse fato fosse explorado na campanha eleitoral, voltou as costas aos chamados quatro de Salvador.

"O PT está obsessivamente empenhado em livrar-se da imagem de reduto dos antigos terroristas.

"Na primeira eleição de que participou, em 1982, a lei eleitoral só permitia a exibição, no horário gratuito da TV, do currículo e foto de cada candidato. Os aspirantes petistas a deputados eram quase todos originários da resistência à ditadura — e orgulhavam-se disso, fazendo questão de destacar a condição de ex-presos políticos.

"A direita, por sua vez, aproveitou ao máximo para insuflar preconceitos. Colocava em circulação piadas tipo “os candidatos do PT não estão mostrando currículos, mas sim folhas corridas e boletins de ocorrência”...

"Então, na eleição de 1986, o que o partido mais queria era dar a volta por cima, projetando uma imagem de respeitabilidade. Quando a prisão dos quatro de Salvador ameaçou relacionar o PT com as expropriações outrora praticadas pela vanguarda armada, foi um deus-nos-acuda!

"Além de negar qualquer apoio a esses militantes, a tendência majoritária começou a reprimir e expurgar as correntes radicais abrigadas em suas fileiras. Pertencer simultaneamente à Articulação e ao PT continuou in, mas ser da Convergência Socialista e do PT virou out. Porta da rua é serventia da casa.

"Os quatro párias ficaram numa situação extremamente vulnerável — e os policiais, contrários à redemocratização do País, não desperdiçaram a chance. Agentes da Polícia Federal começaram a levá-los a outros Estados, sem mandado judicial nem comunicação a seus advogados, para serem mostrados a testemunhas de todos os assaltos a bancos ocorridos em passado recente.

"Nem mesmo a Ordem dos Advogados do Brasil obtinha permissão para dar assistência aos prisioneiros nessas praças e acompanhar os reconhecimentos. Havia uma intenção óbvia de inculpá-los de tantos delitos quanto fosse possível.

"A gota d’água foi o telefonema recebido por Rubens Lemos na rádio de Natal em que comanda um programa esportivo, alertando-o de que os explosivos recentemente roubados de uma pedreira se destinariam à simulação de uma revolta no presídio de Salvador; no meio da confusão, os quatro seriam assassinados.

"Lemos fez essa denúncia no ar, abortando — se havia — tal plano. Os quatro decidiram entrar em greve de fome a partir de segunda-feira. Dois dias antes, não há nenhum esquema de imprensa estruturado para fazer com que seu protesto repercuta nas principais capitais do País.

"O comitê de solidariedade paulista é imediatamente formado. E André aceita ficar com a missão mais difícil: colocar a greve de fome no noticiário...

"Começa enviando um comunicado à imprensa para cientificá-la da greve. Ninguém publica.

"Convence Lemos a escrever uma carta emocionada à população brasileira, afirmando que, em face de seus (reais) problemas cardíacos, delega ao povo a missão de assegurar a sobrevivência do filho Cícero, caso não possa fazê-lo pessoalmente. Ninguém publica.

"Visita deputados, redações, agências noticiosas. Na do Governo Federal, a Empresa Brasileira de Notícias, quem o atende é um agente do Serviço Nacional de Informações travestido de jornalista. Fazendo-lhe uma ameaça velada:
— O tempo não está bom para os presos políticos e muito menos para quem já esteve preso. Se for pra jaula de novo, é bem provável que nunca mais saia. Ou ir direto pra baixo da terra...

"Tem melhor sorte nos contatos com os correspondentes estrangeiros, que enviam algumas linhas a seus veículos. Mas é pouco para incomodar o governo brasileiro.

"A cada dia, aumenta a apreensão no comitê de solidariedade. André atua em tempo integral, atirando em todas as direções.

"Procura o promotor Hélio Bicudo, que já entrevistara para uma revista, e pede ajuda. Bicudo lhe dá uma apresentação para a Cúria Metropolitana de São Paulo. Acaba conseguindo uma carta anódina na Igreja, na linha por piores que hajam sido seus crimes, esses presos devem ter seus direitos respeitados. Ninguém publica.

"Faz idêntica gestão na OAB, obtém uma carta igualmente cautelosa e também a distribui inutilmente aos jornalistas.

"Manda um fax pessoal a todos os diretores-proprietários de veículos da grande imprensa, alertando-os de que, caso persista o boicote às notícias sobre a greve de fome, frustrando quaisquer chances de atendimento das reivindicações, caberá a eles a responsabilidade por qualquer tragédia que venha a ocorrer.

"Quando já não sabe mais o que fazer ou a quem recorrer, o colunista que escreve sobre o Rio de Janeiro na página de Opinião da Folha de S.Paulo, Newton Rodrigues, dedica todo seu espaço daquele dia ao assunto. Diz que recebeu do jornalista Lungaretti uma denúncia consistente sobre violação dos direitos humanos dos quatro de Salvador, tendo repassado-a ao ministro da Justiça, Fernando Lyra.

"André, que enviara o dossiê a Newton Rodrigues apenas por causa das posições libertárias que este assumia na coluna diária e do seu passado de resistência ao golpe de 1964, fica então sabendo que o veterano jornalista faz parte do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (...). Um golpe de sorte, no momento exato! Os quatro, segundo os médicos, começam a correr riscos mais graves!

"No dia seguinte, Rodrigues relata a seqüência do caso: o ministro determinou ao governador da Bahia, Waldir Pires, que tome as providências cabíveis para que a greve de fome tenha um desfecho humanitário.

"André e o comitê de solidariedade são informados de que o governador baiano oferece aos presos a garantia de não serem mais seqüestrados pela Polícia Federal para reconhecimentos arbitrários, além de estar disposto a permitir que estudem ou trabalhem durante o dia, somente pernoitando na prisão.

"Mas os quatro, empolgados com a mobilização de estudantes de Salvador em seu favor, pretendem prolongar a greve de fome por mais dois dias. Querem arriscar ainda mais a vida para desfrutar seu momento de glória, depois de terem sido vilipendiados pela própria esquerda!

"André compreende seus sentimentos, mas considera o êxito político mais importante do que o desagravo pessoal. Então, na reunião do comitê, ele é incisivo:
— Estávamos sem perspectiva nenhuma e a vitória praticamente caiu do céu. Não podemos permitir, de jeito nenhum, que ela se transforme em derrota.

"Decide-se mandar um ultimato a Salvador: ou os quatro saem imediatamente da greve, ou o comitê de apoio paulista vai mandar um comunicado a todos os jornais expressando sua discordância dessa postura.

"É um blefe pois, a julgar pelos precedentes, ninguém publicaria. Mas, surte efeito. Depois de mais de uma semana sem alimentar-se, os quatro são socorridos e se restabelecem plenamente.

"Como recompensa por ter agido enquanto o PT se omitia, André recebe um insulto insólito do dirigente petista Rui Falcão:
— O Lungaretti e os quatro de Salvador são todos cachorros loucos!"
ÚNICA ATITUDE DO PT: EXPULSAR TODOS ELES

Por último, vale acrescentar que, ao relatar este episódio no meu livro, ainda não havia registros na Internet a que eu pudesse recorrer para complementar o que retinha na lembrança, quase duas décadas depois.

Agora há, embora seja uma notícia bem tendenciosa, refletindo a visão repressiva que se mantinha inalterada nos órgãos de segurança em 1986 (vide aqui). De qualquer forma, serviu para complementar algumas informações imprecisas.

P. ex., a tentativa frustrada de assalto a uma agência bancária de Salvador ocorreu no dia 11 de abril de 1986 e o filho do meu falecido companheiro de coletâneas poéticas Rubens Lemos (1941/1999), que estava entre os militantes presos, era o Marcos Wilson, então com 22 anos.

Embora ficasse conhecido no noticiário como os quatro de Salvador, aparentemente o grupo tinha seis integrantes, dos quais foram identificados cinco: o próprio Marcos, José Wellington Diógenes, Cícero Araújo, Jari José Evangelista e Antonio Prestes de Paula. Talvez algum deles não tenha sido preso, pois a greve de fome, lembro-me bem, foi só de quatro.

Mas, acabaram todos cinco expulsos do PT, que não lhes deu chance de apresentar sua defesa e só se preocupou com os danos à sua imagem pública, não movendo uma palha para evitar que sofressem arbitrariedades na prisão.

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