Esqueçam Nietzsche e seus delírios de superação dos homens por "alguma coisa superior a si mesmos". São fantasias nefastas, que desembocam diretamente no elitismo, além de ramificarem com aberrações totalitárias como o nazismo.
Esqueçam as igualmente nefastas fantasias dos quadrinhos, que colocaram os humanos sob a tutela de um protetor extraterrestre, como se fossem eternas crianças, incapazes de zelar por si próprios. Sabemos que tipo de tutela ofereciam os propagadores destas fantasias.
Os super-homens verdadeiramente existentes são apenas homens que, além de dotados de enorme talento, fazem-se maiores em função dos desafios que enfrentam.
O esporte é pródigo em colocar os indivíduos diante de tais desafios. E é aí que tenho encontrado super-homens.
Como Muhammad Ali, não só um dos maiores pugilistas de todos os tempos, mas também um homem com uma visão tão grandiosa de si mesmo que era capaz de submeter-se a sofrimentos e pressões terríveis para se colocar à altura do modelo que erigira.
Assim, teve a mandíbula quebrada no 2º assalto de uma luta nem sequer decisiva e, ao invés de ir logo para o hospital receber tratamento e sedativos, preferiu suportar a dor insana até o final, com sério risco de agravar a contusão.
Qualquer ser humano normal consideraria injustificável tamanho sacrifício apenas para perder por pontos ao invés de abandono. Mas não Ali.
MUHAMMAD ALI, CAMPEÃO TAMBÉM FORA DO RINGUE - Depois, houve a luta do século contra George Foreman, que ele não poderia vencer mas venceu, aliando estoicismo, coragem e estratégia impressionantes.
Após nocautear o adversário, Ali teve até um ligeiro desmaio, tal o castigo que suportara. Nunca a história de Davi e Golias foi tão fielmente reproduzida em nossos tempos.
E era capaz igualmente de agüentar pressões morais como a que a sociedade estadunidense, a mídia e o submundo do boxe lhe moveram, para que se resignasse a posar de soldadinho de chumbo na Guerra do Vietnã.
Em nenhum momento se pretendeu colocá-lo em combate. Queriam-no como propagandista do pseudo-patriotismo, a protagonizar ações de relações-públicas que levariam outros a morrerem por uma causa injusta, enquanto ele permaneceria bem longe do abatedouro.
Sua recusa implicou a perda do cinturão mundial; a interrupção da carreira no auge, quando era imbatível; e prejuízo financeiro de milhões de dólares. Não cedeu, ficando anos fora dos ringues.
Para termos um parâmetro de comparação, lembremos de quando o grande goleiro Rogério Ceni foi afastado da equipe por causa de um bate-boca público com o presidente do São Paulo. Tinha carradas de razão, contra o arrogante cartola.
Já era um ídolo, mas foi abandonado pela imprensa esportiva, sempre mancomunada com os poderosos; pela infiel torcida organizada, sempre teleguiada pelos poderosos; e pelos torcedores comuns, sempre ressentidos contra os que quebram a hierarquia à qual eles próprios se submetem como cordeirinhos em seu cotidiano.
Ceni resistiu no limite do possível, foi mais digno do que a grande maioria dos esportistas brasileiros nessas situações. Mas, depois de algumas semanas de ostracismo, sucumbiu, admitindo um erro que não cometera.
Já Ali, perdendo muito mais, manteve-se firme até que o deixassem voltar incondicionalmente.
O MENINO KASPAROV SE FEZ HOMEM NO TABULEIRO - Outro super-homem da vida real é Garry Kasparov que, quando jovem gênio do xadrez, venceu um duelo épico contra o campeão Anatoly Karpov, em 1984.
Tão ousado nos tabuleiros quanto na vida, Kasparov simpatizava com o sindicato Solidariedade na Polônia e lançava críticas veladas à nomenklatura da URSS (a nova classe engendrada pelo desvirtuamento stalinista da revolução de 1917), enquanto Karpov fazia o gênero de fiel vassalo do regime. Isto tornou o match entre ambos, também, uma exacerbada guerra política.
Perdendo por 5x1, à beira do abismo (a disputa acabaria quando um deles obtivesse a sexta vitória), Kasparov decidiu imitar o cauteloso adversário, trancando seu jogo, não correndo mais riscos e apostando no erro alheio.
Fácil de falar, dificílimo de fazer, ainda mais quando se trata de um jovem desafiante contra um campeão adulto, em meio a pressão extremada.
Mas, conseguiu. Houve uma sucessão interminável de empates (mais de 20 consecutivos, dos 40 que o match registrou), até que foi Karpov quem entrou em parafuso, sucumbindo ao estresse.
Perdeu duas seguidas e perderia quantas mais disputasse, se o presidente da Federação não suspendesse arbitrariamente o match, decretando-o empatado por “desumanidade das regras”.
Um enxadrista brasileiro definiu com muita propriedade a indiscutível vitória moral de Kasparov: “o menino se fez homem no tabuleiro”.
O ESTILISTA FEDERER APRENDEU A SER GUERREIRO - Neste domingo, o suíço Roger Federer ingressou na seleta galeria dos esportistas que transcendem o próprio esporte, personificando virtudes maiores de um ser humano.
Fenômeno do tênis, Federer é “ótimo” ou “muito bom” em cada um de seus fundamentos. Com isto, reinava soberano e sem competidores que verdadeiramente o ameaçassem, até que o espanhol Rafael Nadal alcançou o seu nível competitivo no ano passado.
Acostumado a vencer sem muito esforço, o estilístico Federer foi surpreendido pelo tênis-força de Nadal, que compensava sua inferioridade técnica com uma incrível determinação, disputando cada ponto como se sua vida dependesse disso.
Num primeiro momento Federer ficou desconcertado, perdendo a confiança essencial ao grande tenista.
Mas, de 2008 para 2009 conseguiu se reconstruir, acrescentando a tenacidade às virtudes que já possuía.
O sexto título de Wimbledon seria a coroação de sua volta por cima, colocando-o como o maior recordista dos quatro torneios mais importantes (o chamado Grande Slam) em todos os tempos e devolvendo-lhe a condição de nº 1 do ranking.
Mas, encontrou pela frente um adversário inspiradíssimo, que fez a melhor exibição de sua carreira e nada tinha a perder, já que entrava como azarão.
Federer conseguiu suportar a pressão do favoritismo e a ansiedade de quem disputava a partida mais importante de todas que já travara, a um passo da consagração absoluta.
E, depois de mais de quatro horas de maratona tenística, com o set decisivo terminando num inacreditável 16x14, provou que agora é campeão também de firmeza e autocontrole, as virtudes que lhe faltaram no ano passado.
Foi um momento grandioso como só o esporte nos tem conseguido proporcionar nestes melancólicos tempos presentes.
CELSO LUNGARETTI
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