O Caso Norambuena
Carlos A. Lungarzo
Contexto Geral
Mauricio Hernández Norambuena (MHN), nascido
no Chile em 1958, membro de uma família de cientistas e professores, é um
antigo militante dos movimentos de esquerda que lutaram no Chile contra a
segunda mais cruenta ditadura do Ocidente, a de Augusto Pinochet. (A primeira
foi a de 1976 na Argentina). Era formado em educação física, trabalhou como
professor e ganhou vários prêmios por suas atividades desportivas.
MHN viajou por vários países da América
Latina e colaborou com os movimentos antiditatoriais desses lugares. Durante a
segunda parte da ditadura chilena, em 1983, fundou-se no Chile o Frente Patriótico Manuel Rodríguez (FPMR),
com membros da esquerda alternativa e alguns antigos membros dissidentes do
Partido Comunista, do qual MHN seria o vice-chefe pouco depois. Usualmente, o
FPMR é chamado apenas “El Frente” pelos setores mais genuinamente de esquerda,
pois a expressão “Frente Patriótico” tem um ranço nacionalista e estalinista
incompatível com o marxismo e o internacionalismo.
Como sempre, os comunicadores do PIG
internacional, políticos e magistrados de direita qualificam o movimento de terrorista, mas os verdadeiros cientistas
sociais se referem ao Frente como far-left
urban guerrilla. (vide) É
fundamental ter em conta que grande parte dos membros do frente foram presos,
torturados e alguns até desaparecidos nos anos seguintes. O Frente abandonou a
luta armada no final da década de 80, e passou a integrar a aliança frente Juntos Podemos Mais, a coalizão de
esquerda que disputou as eleições e considerou encerrada a luta armada.
O Frente fez suas primeiras ações
desapropriando bens de supermercados e distribuindo-os nas favelas e também
vulnerando recursos do aparato repressivo (corte de corrente nos quarteis,
destruição de armas do Estado, etc.)
Em 07/09/1986, o Frente atacou Pinochet,
executando cinco membros da sua comitiva e deixando o tirano levemente ferido.
Pode ser discutível se isso foi um ato de “vingança revolucionária”, que, como
toda vingança, é indesejável. Mas, também pode pensar-se que a morte de
Pinochet naquele momento, dado o caráter personalista da ditadura, poderia ter
apressado a transição para a democracia. Ambas as conjecturas são
contrafactuais e, portanto, nunca saberemos qual era a posição correta, mas não
há dúvida de que, pelo menos, merece reflexão.
Cabe dizer que todas as ações em que
participou Norambuena no Chile, e, mais geralmente, todas as ações do Frente (mesmo aquelas nas quais não participou),
consistiram em ataques e execuções contra alvos militares e figuras
significativas da ditadura, torturadores e genocidas. Não houve vítimas inocentes, isso que a milicada chama com desprezo “danos colaterais”.
Também cabe indicar que, durante esse
período, produziram-se em todo Chile nutridas manifestações de centenas de
milhares de pessoas pedindo a queda da ditadura, o que significa que as ações
do Frente não iam contra a vontade
popular, como aconteceu em outros países com os grupos armados.
Quero deixar claro que estes argumentos que
mostram o lado político e social do Frente não
são necessários para exigir o fim da tortura de Norambuena no Brasil, mas
os utilizo para que o leitor esteja informado. Os direitos humanos valem para
todos, atores de crimes políticos ou comuns, pessoas apolítica, membros da
esquerda ou da direita, pessoas de qualquer idade e nacionalidade (a ideia de que um estrangeiro é um criminoso pior
que o nacional é um preconceito do século XV, muito forte nos estados
germânicos).
(Lembrem
que os ativistas de DH protestamos contra o linchamento de Gaddafi e Saddam
Hussein, apesar de ser os tiranos mais parecidos aos nazistas. Também
consideramos um abuso a execução de Ben Bin Laden sem prévio julgamento, por um
comando de assassinato dos EUA no Paquistão, especialmente quando al-Qā‘idah já era independente e
ramificada e a figura de Laden não tinha mais influência.)
Embora este comentário seja irrelevante para
este texto, parece claro que a luta armada de esquerda não deve oficializar-se,
constituindo uma espécie de exército popular, porque a violência progressista
só pode emergir de situações defensivas e organizar-se em movimentos
democráticos, como fizeram os anarquistas na Espanha em 1936. Embora “El
Frente” foi defensivo ao neutralizar vários torturadores e genocidas, ele
formou internamente um sistema de quadros sujeitos a disciplina militar. Isto,
como se vê em muitos outros países, leva aos que lutam pela liberdade a
tornar-se formalmente parecidos com os militares profissionais, embora não
cometam as mesmas atrocidades. Esta degradação da esquerda, se colocando no
mesmo plano que as FFAA tradicionais, foi bem clara na Argentina, sem
desconhecer que muitos de seus membros eram lúcidos e corajosos. Portanto, a
defesa de Norambuena, que é caso típico de DH, não implica que aceitemos nem
rejeitemos sua orientação política.
A Vingança das Elites
MHN foi a Cuba nos anos 90, onde teve algumas
desavenças com Fidel Castro por causa do desvio do antigo roteiro socialista, e
a falta de participação popular no governo. Finalmente, voltou ao Cone Sul e se
radicou no Brasil.
Em dezembro de 2001, Norambuena, junto com um
grupo de chilenos, colombianos, argentinos e brasileiros sequestraram um dos
maiores magnatas da publicidade do continente, com o objetivo de obter um
resgate que seria aplicado à luta guerrilheira em alguns países. O prisioneiro
esteve em cativeiro durante 53 dias e ficou livre o 2 de fevereiro de 2002,
quando a polícia assaltou o local onde estava sequestrado em São Paulo.
O artigo 148 do CP brasileiro estabelece uma
pena máxima de prisão de 5 anos para autores
de sequestro. Isto inclui até o caso de sequestro de crianças e doentes, e casos em que o sequestrado é ferido durante sua captura. Alguns
raptores têm sido condenados a penas maiores, por outros motivos: por exemplo,
porque o sequestrado morreu no ato de
sequestro. Qualquer um que veja TV sabe que o sequestrado por MHN não morreu.
Apesar da animosidade da mídia, dos inimigos
da esquerda brasileira, e da elite empresarial, nunca foi dito que o magnata
tivesse recebido coação física, salvo a de estar encerrado quase dois meses num
pequeno quarto. Quando foi liberado, deu uma breve entrevista à imprensa, e seu
estado físico, pelo menos de longe, parecia normal. Em sua entrevista, o mais
substantivo que disse é que descobriu que os raptores não eram brasileiros, porque ninguém falou nunca do Corinthians.
Apesar disso, Norambuena foi condenado a 30
anos. Não apenas a condenação é ilegal e desproporcional, como cruel e desumana,
pois ela transcorre no que, com cínico eufemismo, se chama Regime Disciplina
Diferenciado (RDD). Este é um método indireto de tortura sobre o qual já
falei aqui
brevemente, e também está citado no artigo recente de Celso Lungaretti. O RDD é
um método insano utilizado especialmente nas teocracias orientais, mas também
em estados maniqueístas como os EUA e a Itália.
O RDD brasileiro é possivelmente o pior de
Ocidente, se comparado com o sistema 41 bis da Itália e os outros conhecidos
nas Américas. Ele foi resultado da modificação do artigo 52 da Lei de Execuções
Penais pela lei nº 10.792
O
RDD viola os acordos assinados pelo Brasil contra as penas cruéis, e contra a
própria Constituição que proíbe os tratos degradantes. Além disso, ele só pode
ser aplicado por até 360 dias, e no caso de Norambuena já se passaram mais de
3000.
Os interessados em manter o sistema, e negam
a violação da Constituição dizem que manter uma pessoa isolada (incluso com
limitação de suas capacidades cognitivas) não
é cruel. (!!)
Além disso, o RDD foi instalado em 2003,
portanto, MHN teve uma pena que não existia na data do crime.
Quero fazer algumas reflexões.
1.
Por que, se no Brasil se exalta aos que
lutaram contra a ditadura com os mesmos métodos e eles/elas podem aceder aos
cargos mais altos do Estado, seus
equivalentes de outros países são perseguidos e torturados?
2.
O que faria o Brasil se tivesse um caso como
o de Anders Behring Breivik, que matou quase uma centena de pessoas, mas a
justiça norueguesa o está submetendo a um tratamento de restituição psicológica
e, em vez de estar num fétido buraco, habita um apartamento dentro de um
sistema prisional moderno, onde poder ler, escrever, usar Internet, etc.?
Bom... pensando
bem, talvez no Estado de São Paulo, Brevik receberia um prêmio. Ele é
neonazista.
Sugestões
1.
A pressão jurídica e política no Brasil
deve continuar, como se fez no caso de Cesare Battisti. Embora haja fortes
interesses na tortura e eventual morte de Norambuena, como uma advertência aos
que se insubordinam contra as elites, também é verdade que há vários juristas
que lideram uma campanha contra o RDD. Nesse sentido, é importante manter
contatos com um significativo setor progressista da OAB que combate o RDD e
também com juízes progressistas.
Há consenso de que são os tribunais superiores os que devem julgar se
esta moderna e indireta forma de tortura é constitucional.
2.
Uma prova de que o caso de MHN é uma
vingança extrema é que nenhum chefe do Narcotráfico sofreu RDD por tempo tão
longo.
3.
Portanto, junto com a pressão interna,
deve ser feita pressão externa e buscar apoio.
1)
Pressão
sobre a Comissão de DH da OEA e a Corte de Direitos Humanos da OEA (em San José
de Costa Rica). Também denúncias circunstanciadas de tudo isso perante a ONU e
outros organismos e ONGs internacionais.
2)
Procurar
ajuda em Grupos independentes de direitos humanos no próprio Chile e na
Argentina, pois ambos têm experiência em atrocidades do Estado.
3)
Redigir
e publicar manifestos nas cinco principais línguas de Europa Ocidental.
Finalmente, a ajuda que o grupo reclama para MHN deve estender-se aos outros culpados por esse sequestro, que ainda
amargam penas de prisão, mesmo que não seja num regime tão brutal.
Seria
bom que os carrascos e neonazistas pensassem uma coisa bem singela: se a tortura, o genocídio e as masmorras
medievais fossem eficientes, a Igreja teria dominado totalmente o mundo já no
século XIII, e os ateus teriam desaparecido. Mas, aconteceu o contrário:
surgiu a revolução Francesa, os Direitos Humanos e o socialismo. Um bumerangue.
Talvez eles decidam continuar experimentando até que a população mundial acabe.
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