USP: Um Foco Golpista?
Carlos A. Lungarzo
A Universidade de São Paulo (USP)
possui dúzias de excelentes especialistas nas ciências e nas áreas humanas, que
conseguem resistir a tendência a transformar a universidade num mercado, só
graças ao seu forte impulso vocacional, especialmente dos mais jovens. Mas, seu
trabalho é uma ilha no meio a um mar de politicagem, de tramoias financeiras, de
repressão e de fascismo enrustido.
Com efeito, essa enorme estrutura universitária, a mais cara da América
Latina (cujo orçamento é várias vezes maior que o de alguns estados), cujos
altos escalões estiveram sempre ligados
ao mais sórdido da politicagem paulista (e, até 2002, da federal), tem como
principal meta a formação de medíocres burocratas e tecnocratas ao serviço do
lucro das empresas, das tácticas das corporações militares e confessionais, da
política externa de chantagem contra países pequenos, dos truques sócio-políticos
para desestabilizar a democracia, de formação de políticos que controlem a faxina social, etc.
Para dar um exemplo recente, a USP
é a única universidade que contribuiu na campanha de difamação do escritor
italiano Cesare Battisti, com o fim de ajudar seu linchamento. “Especialistas”
em direito e relações internacionais deram, no total, pelo menos 17 entrevistas
à grande mídia, contando versões falsas, distorcidas e absurdas sobre as leis
de refúgio e extradição, e até fornecendo dados falsos sobre as estatísticas de
asilo no Brasil.
Dos 25 reitores de toda a história da USP, apenas 3 mereceram comentários
em centros científicos de qualidade internacional. Em compensação, muitos outros
foram (e alguns ainda são) muito apreciados em instituições burocráticas,
repressoras ou de negócios, e em organismos internacionais destinados a manter
o poder das elites sobre os setores populares. Alguns deles foram grandes
ideólogos da ditadura, coordenadores do AESI (ou ASI, um escritório de
espionagem, censura, repressão e terrorismo, que operou na USP entre 1972 e
1982), e até assessores “científicos” da Operação Condor, uma coordenadora de
sequestro político, tortura e assassinato criada em 1976 por Chile, Argentina e
Brasil.
Um desses “heróis” da cultura, duas vezes reitor, foi grande amigo de
Mussolini e de vários outros ditadores, dos quais se tornou valioso bajulador.
Mas, não quero exagerar. Houve outros, talvez quatro, que eram razoáveis
professores, segundo contam os velhos alunos e escreveram alguns artigos com um
número pequeno de erros.
A USP ficou menos conhecida por seus
excelentes cientistas, humanistas e artistas, que pelas fraudes econômicas,
como a célebre importação de material de Israel na década de 90, no meio a um
escândalo abafado com tanta violência que hoje as páginas da Internet onde se
falava deles já não existem. O responsável da fraude foi poupado e virou “marajá”
de uma fábrica privada de diplomas universitários.
Em fim, a história da repressão, da corrupção e do “terror acadêmico” na
USP requer muito espaço e tempo, e estou dedicando a esse tema um artigo
futuro. Agora quero me concentrar no mais grave e imediato: o que foi denunciado por alguns jornalistas
independentes como uma ameaça de golpe de Estado. (Vide)
O Ataque à USP
Em situações de enorme fascistização, um golpe de estado pode ser lançado
sem nenhum problema, e ser aplaudido com grande fervor pelas ralés de classe
média. Entretanto, quando o país possui, como atualmente o Brasil, uma
democracia formal bastante estável, e a situação das classes populares mostra
certo progresso em relação com governos anteriores, a necessidade de encontrar
consenso para um golpe obriga a estratégias mais refinadas. É evidente para
todos a campanha doentia de denuncismo, e até as declarações públicas de
dirigentes da ultradireita que fazem autocríticas: “Nos descuidamos ao permitir
que este governo avançasse. Devemos voltar ao poder”.
Não é excecional que um golpe de
estado aconteça usando como pretexto um fato truculento ocorrido numa Universidade.
O golpe de 28 de junho de 1966 na Argentina encontrou um pretexto nas denuncias,
durante os 6 meses anteriores, por libelos fascistas, confessionais e militares
que consideravam as faculdades guaridas de terroristas e armazém de armas, o
que, obviamente, era falso. Após o golpe militar, a gangue fardada invadiu a
universidade em 29 de julho, provocando dúzias de vítimas.
O incidente dos estudantes fumando maconha na USP não merece comentário. Apenas prova que a universidade, tanto
como o estado está sob o controle de higienistas e “purificadores” do mais
velho estilo inquisitorial, que, aliás, usaram este fato como pretexto para
colocar o campus sob o terror policial.
Quem é Rodas?
João Grandino Rodas estudou em
diversos lugares na década de 60 e seguintes. Nessa época, já não era comum a
figura do “acadêmico” caçador de títulos que fazia uma meia dúzia de
graduações, vários mestrados e doutorados para ter “conhecimento” de tudo. Isso
era um hábito semifeudal que entrou em decadência com a Revolução Industrial no
século 19.
Mas, apareceu outro novo estilo de especialista
em generalidades. Aquele que tinha vários diplomas que lhe permitissem
atuar em diversas áreas, vinculadas com o poder, e com órgãos internacionais de
controle social e exploração financeira. A Argentina, América Central e os EEUU
têm superlotação destes personagens, úteis para diversas formas de lobby, pressão, barganha, etc..
O mínimo que se poderia esperar de um reitor de uma universidade é ter
feito alguma atividade de pesquisa, que não deve confundir-se com fazer
discursos, balancetes, proferir sentenças, ou escrever colunas de jornal. Também
nos assuntos jurídicos é possível trabalhar com critério científico e, embora
isto seja raríssimo, o Brasil tem alguns casos honrosos. No caso de Rodas,
sugiro ao leitor ver o curriculum Lattes (vide).
Você vai perceber várias condecorações de tipo militar, não apenas brasileiras,
mas de alguns outros países da região, mas ficaríamos gratos se você
encontrasse algum trabalho profissional relevante, publicado em algum periódico
internacionalmente reconhecido.
Mas, essa “modéstia” de não querer parecer um “acadêmico” não é a única
virtude do reitor. Vejamos alguns fatos do “curriculum sigiloso” da sua
Magnificência.
1.
Sendo Diretor da Faculdade de Direito pediu em
22 de agosto de 2007, o assalto da PM
àquela faculdade, para expulsar violentamente estudantes e membros dos
movimentos sociais.
2.
Em janeiro de 2010, baixou portarias sigilosas (de conteúdo desconhecido), como nos
melhores tempos do Conselho dos Dez na República de Veneza, em 1335. Essas
portarias foram conhecidas muito depois
3.
Deu a duas salas os nomes “doadores” privados,
que assim compraram a imortalidade (ou quanto a USP durar) por alguns reais. O
fato contraria o regimento da USP ou parecer da Consultoria Jurídica, e outras
coisas.
4.
Transferiu 150.000 livros de bibliotecas locais
a um edifício decadente e sem condições de preservar o acervo. Afinal, para que
serve ler?
NOTA: Ambos os atos foram revogados
pela Congregação da Faculdade. Houve uma grande mobilização que incluiu assembléias
de mais de 1000 pessoas e greve de estudantes.
5.
Em novembro de 2009 foi nomeado pelo governador ao
cargo de reitor. Ele era o segundo colocado,
mas sua grande afinidade com os políticos paulistas foi mais forte. (Veja a
seção A Turma do Cilício, mais na
frente)
Estes fatos são bem conhecidos e o
leitor encontrará centenas de locais na Internet onde se fala disso.
Pessoa non Grata
Devido a sua política de “terra arrasada” com seus inimigos, aos que
perseguiu incansavelmente dentro da faculdade, foi declarado pessoas non grata pela Faculdade
de Direito. Nunca um reitor tinha sido qualificado assim.
Num ato insolente, outros diretores que nada tinham a ver com direito,
apoiaram o reitor contra a Faculdade. O fato é normal, já que quase todos os cargos
de 1º ou 2º escalão estão ocupados por alcoviteiros dos poderes estaduais. O
que sim merece surpresa é a digna reação da Faculdade de Direito, o que abre
certa esperança na luta contra o fascismo universitário.
Uma Mãozinha para os Carrascos
Em dezembro 1995, foi criada no Brasil a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) (vide),
com base na lei 9140, para investigar as desaparições forçadas e os homicídios
cometidos pelo Estado durante a ditadura.
Estas Comissões foram formadas nos
países que tinham saído de tiranias sangrentas, para reunir informação sobre as
pessoas mortas, torturadas e desaparecidas pelos militares, policiais e seus
patrões civis. Em toda a América Latina, salvo na Nicarágua, os governos não
tinham interesse em fazer justiça, mas queriam diminuir a pressão feitas pelos
familiares das vítimas, e por governos de outros países, para dar alguma
resposta sobre os massacres. A primeira dessas comissões foi a CONADEP,
instalada na Argentina em 1984, pelo governo de Raul Alfonsín. Entretanto, a
classe política, que tinha vivido bajulando e legitimando os crimes dos
militares, não queria que o processo se
radicalizasse. O jurista e filósofo argentino e “homem forte da CONADEP”,
Eduardo R. (falecido em 2005) me disse um dia: “é melhor uma Comissão que
encontre 1000 desaparecidos, que deixar os familiares soltos, pois eles poderiam
encontrar 30.000”.
Embora nunca ouvi uma confidência tão clara no Brasil, a criação do CEMDP
parece ter seguido a mesma linha. O presidente desta comissão em sua 1ª rodada
foi Miguel Reale Jr., e entre os
outros 6 membros havia um representante
dos militares e estava o futuro reitor Rodas,
que, naquela encarnação, era membro do MRE. (Vide)
Grandino Rodas interveio no
caso do filho da estilista Zuzu Angel, no
qual votou contra a culpabilidade da ditadura no assassinato do rapaz. Além
disso, indeferiu outros 45 pedidos
com diversos pretextos (falta de provas, esgotamento do prazo, etc.). Embora a
Comissão conseguiu algumas vitórias até o dia de hoje, os partidários da
ditadura colocados nela foram fundamentais para retrasar o processo durante
décadas. Talvez, apesar de todos os esforços atuais das vítimas da ditadura, o
dia de fazer uma moderada justiça demore muito.
A Turma do Cilício
Em junho e 2009, o Estado de São
Paulo entrevistou o candidato a reitor Grandino Rodas. Veja a versão em pdf.
aqui.
Na terceira coluna da p. A27 da edição do 20/06/2009, o repórter pergunta ao
candidato sobre sua tão falada vinculação a Tradição, Família e Propriedade (TFP), e ao Opus Dei, e sua colaboração em ações contra o movimento estudantil
durante a ditadura.
Para esclarecer, TFP é uma rede
interamericana fundada por famílias neonazistas das altas elites Argentina e
Chilena, que recrutam agressivos vândalos das juventudes católicas para
difundir o terror entre setores liberais e de esquerda. Nesses dois países,
eles já cometeram assassinatos de judeus, jovens de esquerda, gays e outros. No
Brasil, ela é mais pacífica e se limita a mensagens de ódio delirantes e a
imprecações contra os “pecadores”, incluindo os católicos mais liberais. Já o Opus Dei (vide) é a famigerada
prelacia do Vaticano que ficou célebre no filme O Código da Vinci.
Na reportagem da jornalista Renata Cafardo, o professor Rodas
desconversou. Disse que como estudante (de direito, filosofia e outras coisas) não
teve tempo para fazer política universitária. Como católico diz que não se
filiou a nenhum grupo específico, mas esclareceu que respeitava todos eles.
Na mesma entrevista, Rodes mostra simpatia pelo projeto Inclusp, um arremedo de inclusão social
inventado na USP para neutralizar a luta por ações afirmativas.
Ações em Andamento
O único membro do governo federal que reagiu à brutalidade “rodante” foi
o ministro da Educação, porém de uma maneira fraquíssima, com um comentário sem
sentido. Ele disse que não se pode tratar a USP como se fosse a Cracolândia. Então,
será que quando a polícia aplica sua política de prende a arrebenta na Cracolândia e não na USP, isso seria
admissível?
O Ministério Púbico de São Paulo empreendeu uma ação interessante, motivada
por uma denúncia anônima contra a reitoria da USP com base em possível...
“...violação aos princípios da
legalidade, impessoalidade, moralidade, burla ao acesso de cargo mediante
concurso público, lesão aos cofres públicos e improbidade administrativa”.
Rodas é o principal investigado, mas ação se desenvolve em sigilo, o que
impede que a opinião pública e os setores interessados tenham acesso. (Vide).
O motivo desta acusação é a nomeação de duas pessoas em altos cargos em
arrepio aos regulamentos, num cenário que parece ser de clientelismo e
nepotismo. Uma delas é o filho da antecessora de Rodas, Suely Vilela, outra
especialista em convocação de tropas quebra-cabeças. Mas, sejamos justos,
Vilela apenas fazia suas primeiras letras numa ciência na qual Rodas é grande
mestre.
O MP acusa ainda Rodas de criar cargos ad hoc para promover amigos, designações ilegais, e acumulações
proibidas de cargos públicos localizados em cidades bem distantes.
É importante destacar que estes
delitos foram denunciados pela ADUSP e que só tomaram estado público graças
à divulgação dos veículos da ADUSP. A
grande mídia, é claro, protege estes preclaros heróis.
Proposta
Nos últimos 50 anos, na Europa e na América Hispânica, as universidades
livraram fortes batalhas pela democracia, a política social, o secularismo e
contra o fascismo, colocando em xeque poderosos governos como os da Itália e da
França. No Brasil, a coragem dos funcionários, e de estudantes e professores
não pôde, no entanto, conseguir resultados radicais. O problema é que, num país
onde o espírito escravista está absolutamente vivo, não há limites para a repressão. E sabemos que, se a
repressão é total, a força bruta vence à razão, pois cortará até a última
cabeça.
É por isso que as lutas dos estudantes, professores e funcionários devem
ser reforçadas com ações de esclarecimento nacional e internacional. Não pode
ser exposta a vida de pessoas esclarecidas apenas para matar bactérias.
Este caso, embora seja um modelo de exacerbação, não é único. Nas últimas
décadas, as universidades da América Latina deveram lutar contra o terrorismo
de estado, contra o obscurantismo, as chacinas intelectuais e (por que não?) às
vezes físicas, a corrupção de suas autoridades, o macartismo, a censura, etc.
Lembremos, por exemplo, que, durante o massacre aéreo de Israel sobre o Líbano,
a USP proibiu a realização de uma palestra pública sobre o problema.
De todo esse histórico de repressão, podem tirar-se algumas lições, que
funcionam com efetividade diversa em diferentes casos. Devemos ser cientes que
a USP talvez ofereça o caso mais
difícil na América Latina para lutar pela democracia universitária. Devemos ser
conscientes que, além do ranço escravista, elitista e, sobretudo, racista, dos
altos quadros, hoje nos encontramos também com a herança da ditadura. Os reitores
que, por sua idade, não puderam ser úteis aos militares, pelo menos foram fiéis
discípulos de outros que o foram, como o inesquecível Luís Antônio da Gama e
Silva, cuja vocação repressora
chegou ao extremo de demitir professores que teriam sido bons colaboradores.
Como se tudo isto fora pouco, se
acrescenta o que Paul Samuelson chamou “fascismo de mercado”,
ou seja, o neoliberalismo, com sua política darwinista, e a transformação da
universidade num balcão de comércio. Mas, o pior, neste caso, é que as
autoridades são burocratas polivalentes ao serviço de qualquer causa rendosa,
dominados por um obscurantismo que já tinha gerado revoluções universitárias no
século 16 (e antes).
Entretanto, eis algumas medidas
que foram aplicadas em outros países, em caso de repressão exorbitada, e que
tiveram certo sucesso:
1.
Redação
de um folheto detalhado (neste caso pode ter umas 100 páginas), contando o
histórico recente da repressão e descrevendo as figuras dos algozes.
2.
Traduzir
este relatório às principais línguas e distribuir através das organizações que
defendem a democracia nas Universidades, e nos centros culturais. Há várias na
Europa e na América Latina.
3.
Pedir solidariedade
a Uniões Nacionais de Estudantes e de Professores, e a autoridades
universitárias progressistas (que, em alguns países existem), bem como às
outras universidades brasileiras.
4.
Pressionar
os organismos internacionais, aos quais os mentores da repressão possam estar
filiados, para boicotar estas figuras. Isto é, geralmente, o mais difícil,
porque repressores não pertencem a organismos que tenham interesses
progressistas. Para grupos de empresários, alianças militares ou políticas,
estas pessoas são úteis, e todos seus atos de barbárie mostram sua utilidade.
Finalmente, neste caso, a comunidade da USP deve apoiar, se houver
oportunidade, o MP em sua ação contra o Reitor.
Entre estas medidas, deve aparecer sempre um interrogante que todos
temos: Isto é apenas uma ação
autoritária, típica do espírito neo-fascista, ou é o embrião de um golpe? Não
temos suficientes elementos para saber, mas a hipótese deve ser pelo menos considerada.
Hoje a situação mundial não é como a de 1964, e embora um golpe de estado seja
possível, como prova Honduras, também é verdade que as correntes internacionais
desconfiam de novas ditaduras.
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