Cada vez que apresento análises alternativas aos clichês esquerdistas dominantes, recebo uma enxurrada de críticas de certos companheiros, como se fosse um herege contestando mandamentos divinos...
O marxismo nem sequer existiria se o velho barbudo não tivesse ousado lançar sua visão alternativa aos clichês anarquistas dominantes. Mas, o vezo autoritário enraizou-se de tal forma na esquerda durante o pesadelo stalinista que nunca mais conseguimos nos livrar dele por completo.
Daí a facilidade com que o inimigo afasta de nós os cidadãos dotados de espírito crítico: ao defendermos com tanto ardor regimes execráveis e execrados como o de Gaddafi, damos todos os pretextos para sua máquina de propaganda trombetear que nosso objetivo último seria estabelecer tiranias. E a indústria cultural deita e rola em cima de nós.
Comigo não, violão. A despeito de quaisquer pressões dos que encaram o futuro com a nuca, continuarei tentando discernir o que está à frente e oferecer melhores opções ao movimento revolucionário do que as hoje prevalescentes.
Pois, queiramos ou não, é o capitalismo que domina o mundo e nós vimos perdendo terreno desde a segunda metade da década de 1980.
Está na hora de começarmos a virar esse jogo. E não será com Husseins, Gaddafis, al-Assads e Ahmadinejads que recolocaremos a revolução mundial em pauta.
Pois, é disto que se trata: regimes híbridos em países isolados são facilmente cercados e inviabilizados pelas potências capitalistas, o que acaba forçando-os, para sobreviverem, a incidirem em distorções de todo tipo. Tornam-se mais úteis para o inimigo como espantalhos do que para nós como cartões de visita.
Marx sonhava com uma onda revolucionária varrendo o planeta. É uma hipótese que se tornará cada vez mais viável com o agravamento das crises cíclicas do capitalismo (as quais, mais dia, menos dia, desembocarão numa depressão talvez ainda mais terrível que a da década de 1930) e com as catástrofes ambientais que se avizinham.
Se há um sentimento comum à maioria dos povos, neste início do século 21, é o repúdio a governos que achatam os governados. Até nos países árabes, como bem destaca Vladimir Safatle no seu ótimo artigo desta 3ª feira, Outro jogo, é "sintomático que a palavra mais usada seja respeito":
"Seus levantes (...) foram em nome do fim de uma mistura entre opressão política e desencanto econômico".
Trocando "opressão política" por "falta de verdadeira representatividade política", pode-se dizer o mesmo das revoltas européias. O povo quer respeito e quer o fim dos sacrifícios inúteis que o capitalismo putrefato lhe impõe, embora ainda não tenha consciência de que são inerentes ao sistema capitalista e só acabarão quando ele acabar.
A internet, principalmente, está sacudindo o marasmo secular. Há cada vez mais frações da massa se descobrindo como gente, "que é para brilhar, não para morrer de fome", na bela frase de Caetano Veloso.
E se recusando a ser "povo marcado, povo feliz", como disse o Zé Ramalho, completando o raciocínio do seu guru Geraldo Vandré, de que "gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente".
É entendendo, harmonizando-nos com e passando a expressar esse sentimento tão difuso quanto poderoso, que reconstruiremos a esquerda, tornando-a novamente capaz de sacudir o mundo -- e não lambendo a bota de tiranos.
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