Em tempo de novela sobre os anos de chumbo, a revista Piauí publica as memórias do economista Pérsio Arida, sobre a revolução que passou em sua vida antes de ele decidir que queria mesmo era aperfeiçoar o capitalismo por meio de mirabolantes (e fracassados...) congelamentos de preços.
Trouxe à baila o drama dantesco de Massafumi Yoshinaga e, na minha opinião, negou-lhe a compaixão ("Mas quem chora a morte de um traidor?") que ele próprio, Pérsio, tanto tentou inspirar.
Eis os trechos referentes ao Massafumi no depoimento do Pérsio:
"A rotina daqueles tempos [em que o Pérsio estava preso no DOI-Codi/SP] só foi quebrada uma única vez. Todos fomos reunidos sem aviso no pátio para ouvirmos a preleção de dois ex-terroristas. Por um instante sequer entendi a expressão – se haviam sido presos, eram ex-terroristas por definição. Outro, no entanto, era o significado – eram terroristas arrependidos.
Massafumi Yoshinaga, disse um dos militares. Um patriota que se arrependeu dos assaltos a bancos e da guerrilha. Ele, que conhece o terror por dentro, quer transmitir a vocês uma mensagem importantíssima. Ouçam e meditem. É um pregador que presta um serviço à pátria, alertando a juventude brasileira para os riscos do comunismo e as ilusões da luta revolucionária.
Fiquei branco. Era o nissei da pesada que se hospedara na minha casa. Estava exatamente na minha frente. Impossível que não me tivesse reconhecido.
O nissei pediu a palavra logo depois do discurso do militar. Parecia ansioso por começar a falar. Discursou como numa assembleia estudantil. No meio da sua arenga, trocamos olhares furtivamente. Na linguagem oculta dos olhares, ele me disse que se lembrava de mim com tanta certeza quanto eu me lembrava dele. Terminada a falação, fomos encaminhados de volta para nossas celas. Não nos foi permitido conversar com eles.
Passei aquela noite em claro, esperando o momento em que fossem me chamar para uma sessão de torturas, de vingança. Havia escondido um terrorista em minha casa, portanto era cúmplice do terror, e não havia dito nada sobre o nissei no meu depoimento. Os caras iriam me bater para saber quem mais se escondera na minha casa.
O dia raiou, mais um dia inteiro se passou e outro e outro. Nada. Reinterpretei a situação: Massafumi Yoshinaga deve ter sido barbaramente torturado, pensei, faz esse papel de arrependido só para se livrar dos suplícios. É tudo fingimento. Por isso não me denunciou, por isso não nos permitiram conversar com ele a sós. Aquele discurso tinha sido um vexame público, vergüenza ajena, expressão concisa e intraduzível do espanhol, mas nada além de um vexame, uma estratégia de sobrevivência.
Ou será que os torturadores haviam penetrado por alguma fissura da alma do nissei? Diziam que ele tinha delatado vários companheiros. A convicção com que ele falava tinha algo de genuíno, e também de perturbador. Não eram as frases em si. Algumas poderiam perfeitamente ser verdadeiras (como seu raciocínio sobre a inviabilidade da luta armada), enquanto outras estavam encharcadas de constrangimento. Somente coagido alguém falaria bem da Transamazônica. Não eram as frases em si que me incomodavam – era a intuição de que a tortura poderia, em alguns casos, destruir o indivíduo, fazer com que ele deixasse, de certa forma, de ser quem era.
...Um dia encontrei, largada num canto e amarelada pelo passar do tempo, uma Veja com Massafumi Yoshinaga na capa e o título “O terror renegado”. A reportagem contava que o presidente Emílio Garrastazu Médici expressara, em audiência com dirigentes da Ordem dos Advogados do Brasil, sua satisfação com o depoimento público e espontâneo do ex-terrorista. Depois de preso, Massufumi Yoshinaga teria tido a oportunidade de familiarizar-se com as grandes obras de seu governo, como a Transamazônica e a extensão do mar territorial brasileiro para 200 milhas. Como recompensa pelo seu arrependimento, teve sua prisão condicional revogada, ganhando assim a liberdade. No momento, estava retido em um quartel por razões de segurança. As Forças Armadas o protegeriam contra a vingança dos terroristas ainda em liberdade.
Estranhei que Pérsio evitasse identificar o Marcos Vinícius Fernandes dos Santos, a quem conhecia desde o movimento secundarista, como o segundo "arrependido" que fez uma preleção a ele e outros prisioneiros do centro de torturas da rua Tutóia. Receio de ter, eventualmente, de responder à interpelação de um vivo?Li depois num jornal que terminou se suicidando. Suicídio de vergonha, de culpa e arrependimento, haraquiri de uma alma que não encontrava mais lugar neste mundo. Terrível como todo suicídio. Mas quem chora a morte de um traidor? Da minha parte, prefiro guardar dele apenas a memória daquele encontro furtivo de olhos no qual, mesmo tendo me reconhecido, nada revelou ao militar que com tanto orgulho o apresentou como um verdadeiro patriota".
Aliás, igualmente significativa é a omissão de que, bem antes da vez em que o abrigara e do reencontro no DOI-Codi/SP, o Pérsio já conhecia muito bem o Massafumi, como seu companheiro na Frente Estudantil Secundarista e seu adversário quando a FES rachou, cada um ficando de um lado.
As desavenças se aguçaram no tempestuoso congresso da União Paulista dos Estudantes Secundários do final de 1968, em que os dois foram figuras destacadas de suas respectivas tendências, não podendo descartar-se a hipótese de o Pérsio haver conservado até hoje rancores... de um morto!
A este racha seguiu-se, em outubro de 1969, outro em que os nervos ficaram à flor da pele, de parte a parte: o da VAR-Palmares. O Massa e o Pérsio não participaram do Congresso de Teresópolis, mas depois se posicionaram novamente em campos opostos.
Ou seja, ou a explicação se encontra nos lapsos de memória que o Pérsio diz terem sido nele causados pelas torturas, ou preferiu deixar convenientemente de lado os antecedentes do fato narrado, começando pelo ano de 1968, quando o Massa (e também o Marcos Vinícius e eu) foi seu companheiro e depois antagonista nas jornadas estudantis. Deixo aos leitores o julgamento.
Ou seja, ou a explicação se encontra nos lapsos de memória que o Pérsio diz terem sido nele causados pelas torturas, ou preferiu deixar convenientemente de lado os antecedentes do fato narrado, começando pelo ano de 1968, quando o Massa (e também o Marcos Vinícius e eu) foi seu companheiro e depois antagonista nas jornadas estudantis. Deixo aos leitores o julgamento.
Já o artigo que, em outubro/2009, eu escrevi sobre o Massafumi -- menos rebuscado, contudo honesto e bem mais compassivo --, pode ser acessado aqui.
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