Contribuição aos fundamentos do NUPSI, por Lilian Kelian
A educação democrática é uma práxis, no sentido anteriormente desenvolvido, um fazer no qual a autonomia dos educandos e educadores é princípio e potência.
Os educadores democráticos consideram Iasnaia Poliana, a escola criada por Tolstoi em 1852, o princípio da sua tradição. O movimento das escolas democráticas intensificou-se a partir das décadas de 1960 e 1970 inspirado por dois importantes críticos da educação convencional: Alexander Sutherland Neill (1888-1973) e Ivan Illich (1926-2002). São escolas formais e experiências de educação não-formal que buscam a construção de uma comunidade de conhecimento a partir da autogestão administrativa e pedagógica por educadores, estudantes e, em muitos casos, pais.
Ao colocar o desejo de aprender e ensinar no centro de seu projeto, a educação democrática cria condições para o desenvolvimento integral de educandos e educadores. É assim que realiza um movimento de desalienação ao resgatar as dimensões corporal, afetiva, vivida e política desta integralidade e restabelecer sua comunicação profunda com aquelas consagradas pela pedagogia convencional, respectivamente as dimensões: intelectual, racional, acadêmica e pedagógica.
A democracia é compreendida como invenção coletiva que institui seus próprios mecanismos, conceitos e valores e cuja finalidade é a construção cooperativa do conhecimento. Toda institucionalidade democrática das suas criações mais visíveis (como o Projeto Pedagógico, a Assembléia, o Conselho e os diferentes fóruns de resolução de conflitos) às menos visíveis (como a cultura comunicativa das comunidades escolares, o papel mediador dos educadores, o envolvimento com as famílias) existe para estruturar, potencializar e conciliar os desejos singulares daqueles que formam sua comunidade.
Ao compreenderem a democracia como invenção coletiva e, portanto, dinâmica e aberta, tanto as escolas como o movimento que as reúne realizam um esforço político-pedagógico sistemático para não definir as formas da democracia. A auto-definição permanece como principal critério para a participação das experiências na rede de escolas democráticas (Alternative Education Resource Organization). Para além de uma postura ingenuamente tolerante, existe aqui uma aposta na possibilidade de que a convivência e cooperação de toda essa multiplicidade de comunidades, conceitos e práticas produzam excelência política e acadêmica.
Por todas essas ações comunicativas que a educação democrática põe em movimento, entre princípio e potência, entre desejos e entre as diferentes dimensões da nossa integralidade, essas experiências têm sido espaços que promovem a saúde em sua comunidade. E em alguns casos, para além de suas comunidades diretas.
Entretanto, os educadores democráticos permanecem com um dilema teórico superado apenas parcial e intuitivamente por suas práticas: como lidar com o sofrimento psíquico em suas comunidades? Uma parcela significativa das famílias que integram as comunidades dessas escolas experimentou configurações escolares, familiares e sociais limitadoras dos seus desejos ou mesmo violentas e encontram nas escolas democráticas acolhida e espaço para se desenvolver. Mas qual é o limite desse acolhimento quando alguém que sofre faz outros membros dessa comunidade sofrerem? Neill foi um dos educadores que mais refletiu sobre esse impasse, sem, no entanto, satisfazer-se com a solução encontrada. Ele inventou as “Lições Particulares”, espécies de sessões de análise em que trabalhava com determinados estudantes aspectos de sua vida familiar e outros assuntos considerados privados. Em muitos momentos, os estudantes responsáveis pela organização da Assembléia consultavam Neill para certificar-se de que as “contravenções” de um ou outro estudante não seriam um caso de “Lição Particular”. Entretanto, esse poder de definir quais assuntos seriam privados, no sentido de estar fora do espaço de pensamento e ação da institucionalidade democrática, não seria incoerente com a práxis das escolas?
Provavelmente o que impossibilitasse Neill de refletir mais livremente sobre a questão seja o fato de que ele, como outros educadores democráticos, estivesse tão preocupado com a autonomia das crianças que não se interrogasse sobre sua posição em relação a elas. Seu principal livro Summerhill: Liberdade sem medo´, pode ser lido como uma tentativa de esconder a relevância dos adultos para dar centralidade à potência das crianças. Antes de tudo, um manifesto político contra toda a reação conservadora em torno de Summerhil.
O que nos leva a outra questão importante: as práticas pedagógicas democráticas problematizaram enfaticamente a passagem da infância para a vida adulta, abrindo espaço para pensá-la como um processo complexo, não linear, singular. Entretanto, ao perdermos um pouco de vista a assimetria irredutível da relação entre adultos e crianças, perdemos também a possibilidade de indagar-nos sobre a posição de poder que o educador ocupa em relação às crianças. Uma posição a ser desconstruída no movimento mesmo em que é instituída.
Para além de uma utópica simetria, talvez o aspecto mais importante da ética democrática seja a possibilidade de manter viva a interrogação sobre a passagem da infância ao universo adulto e sobre aquilo que está ou não sob a responsabilidade dos educadores, numa relação (não entre dois, mas entre muitas pessoas de diferentes idades e que estão em diferentes momentos de descoberta do seu próprio desejo) cujo horizonte é o do cuidado e o da desconstrução do desejo de impor-se ao outro.
Talvez a questão da saúde mental possa ser pensada de maneira análoga, se existe a possibilidade de compartilhar mais amplamente a compreensão sobre alguém que sofre e as decisões que o encaminham para ajuda necessária. Entre o pedagógico e o terapêutico existe um sentido que a educação democrática busca construir ao se apoiar reciprocamente na dimensão social da saúde.
FONTE : http://www.politeia.org.br/tiki-index.php?page=A+dimens%C3%A3o+social+da+sa%C3%BAde+ap%C3%B3ia-se+essencialmente+na+educa%C3%A7%C3%A3o+democr%C3%A1tica
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