Terça-feira, 5 de Maio de 2009
Míriam Santini de Abreu
Cada cidade tem a sua rugosidade. Peço essa palavra emprestada da geografia, ou melhor, do geógrafo brasileiro Milton Santos. É um conceito absolutamente poético quando a rugosidade nos faz parar na rua e tremer o olhar. Rugosidade, explica ele em um dos seus livros, é o que fica do passado como forma, espaço construído, paisagem. É o que resta do processo de eliminar, acumular, sobrepor, “com que as coisas se substituem e acumulam em todos os lugares”.
Em Florianópolis, rugosidades são aqueles casarões do centro, patrimônio histórico agora rodeado por prédios chiques com suas peles de vidro. Em São Leopoldo, onde morei, é uma pequena igreja que, para não ser demolida, ficou encravada nas paredes de um shopping center. Notar essas coisas é como descascar a história e encontrar diferentes cores de tinta.
Penso, com um certo encanto, que as rugosidades podem ser também de outro tipo, acumular outras coisas. Coisas que ligam o tempo de agora ao do passado através do fazer das gentes. É assim com as benzedeiras. No século 21, com tantas conquistas na medicina, há remédio e operação para quase tudo. Conseguir comprar a panacéia e se curar é outra coisa. Mas mesmo hoje há homens e mulheres que curam doenças com benzeduras de tudo quanto é tipo.
Em Caxias do Sul, a cidade onde nasci, uma das mais conhecidas era a velha Fedrizzi, onde minha mãe nos levava quando não conseguíamos dormir. Era uma insônia estranha, amedrontadora. No meio da noite, eu e meu irmão mais novo acordávamos e, com o pouco de luz que vinha da janela, víamos os objeto longe e perto, em rápida sucessão. Eu berrava e a mãe já sabia o motivo: eu estava “enxergando longe”. No dia seguinte, dá-lhe benzedura. Há pouco tempo, minha mãe é que andava com dor nas costas e foi procurar a Iró, outra benzedeira que mora perto de casa. Ela usa uma vela, que passa ao longo da curvatura da coluna enquanto faz orações e fala baixinho algumas palavras.
Lá na serra gaúcha também vive O Velho, cujo nome completo desconheço porque sempre o chamam assim. Mas é José. Se alguém torceu o pé no futebol, deu mau jeito nas costas ou no pescoço, profere a sentença: “Vou no Velho”. Ele mora em Caxias, nasceu em Vacaria e aprendeu a arte da cura com o pai. O Velho não é de muita conversa, mas a casa simples onde mora sempre tem gente precisando colocar alguma coisa no lugar. Se alguém faz muito fiasco, O Velho não perdoa: “Não pode estar doendo tanto”. Na saída, quem tem dinheiro dá o que pode.
Dirão alguns que é melhor procurar o posto de saúde ou chamar o Help. Talvez. Eles podem dar um jeito no corpo, mas as rugosidades também fazem bem para a alma.
Postado por Pobres&Nojentas às 19:49
FONTE : http://pobresenojentas.blogspot.com/2009/05/rugosidades-da-alma.html
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