sexta-feira, 15 de maio de 2009

CONTO : "O CATA-VENTO MALUCO" - João Theobaldo Ribeiro (AMIGO OTÁVIO MARTINS DO JORNAL "NOTÍCIAS DO BRASIL" ENVIA)


















(Pré-roteiro para o curta metragem Circuladô-de-fulô)


João Theobaldo Ribeiro


Nunca perguntou ao pai porque a escolha de um tango argentino. Sua mãe, ele bem o sabia, fazia-lhe companhia, pelo simples hábito de permanecerem juntos em quase todos os momentos de lazer.
À tardinha, seu pai costumava colocar na eletrola sempre o mesmo disco de Gardel – “uma relíquia”, como costumava dizer – para em seguida sentar-se na sua poltrona preferida. Tudo parecia mais uma encenação da primeira vez que escutou – junto com sua mãe, supunha – a belíssima composição de Gardel, Razzano e Celedonio Flores.
Não lembrava direito desde quando os acompanhava naquele ritual - quase um culto à nostalgia. Enquanto o seu pai colocava, cuidadosamente, o vinil no prato da eletrola, sua mãe e ele tomavam acento nas outras duas poltronas e, sem qualquer palavra, aguardavam os primeiros acordes da introdução de Mano a Mano. Carlos Gardel, El Morocho, como era carinhosamente chamado pelos porteños, logo começaria a contar a história de um grande amor, numa gravação de 1923.
Quase encostada na parede do lado interno da grande varanda, a eletrola, instalada num móvel de três compartimentos, em madeira envernizada, ganhava um toque colorido por uma tela aveludada, verde-escuro, pespontada por fios dourados, que servia para cobrir o nicho onde estavam instalados os alto-falantes. Dali surgiriam os sons que impregnariam o ambiente com uma das mais lindas e conhecidas músicas do cancioneiro argentino.
A iluminação da varanda, que tinha todo um lado envidraçado, era proporcionada pelas réstias que escapavam do sol a se pôr detrás do quintal, atravessando por entre os galhos e as folhagens das enormes figueiras e um imponente abacateiro. Não se atinava para outros detalhes da imensa varanda, como se todo o ambiente fosse preenchido apenas pelo som que vinha da eletrola e aqueles tênues raios de sol, além dos três personagens que permaneciam imóveis e silentes durante toda a audição.
Logo após a última nota do Mano a Mano, o tempo retomava o seu curso e cada qual ia para o seu canto. Enquanto seus pais encaminhavam-se, vagarosamente, para o interior da casa, ele, num gesto quase autômato, dirigia-se ao seu quarto, que também lhe servia de estúdio. Localizado do lado esquerdo da varanda, quase chegando aos fundos da casa, a porta permanecia quase sempre fechada. Nem mesmo a senhora que ainda vinha, de vez em quando, para dar um jeito na casa, entrava em seu quarto. Ele mesmo se encarregava de arrumá-lo. Não obstante, era de fazer-lhe algumas confidências.
De sua janela ele podia estender a vista além do quintal, até alcançar os trigais que o sol – recém passada a primavera e já nos primeiros dias de calor mais forte – banhava com uma luz tão intensa, já ao tempo da colheita, que lhes davam a aparência de pequenas ondas douradas que corriam em direção ao horizonte, formadas pela suave brisa do verão. Durante o inverno, boa parte da terra ficava em descanso para outras safras, deixando um vazio, de aspecto triste, pela ausência da vegetação e de algumas flores que só voltariam na próxima primavera.
Do lado de fora, nada, ou quase nada, se ouvia depois que ele trancava-se no quarto. Espalhados pelo pequeno cômodo, enormes bonecos traziam entre as mãos, cada um, o seu instrumento: violinos, violas, celos e madeiras, postados, assim, como uma orquestra de câmara. Todos vestidos ao rigor de uma grande apresentação. Somente ele ouviria, através dos fones, a música que passava por um amplificador de alta fidelidade, trajando o melhor de seus figurinos para a ocasião; tinha, caídos sobre os ombros, os cabelos soltos e desalinhados, precocemente grisalhos. Após alguns instantes de concentrado silêncio, sussurrava, dirigindo-se aos outros componentes da pequena orquestra, a contagem que determinaria a divisão e o andamento dos compassos que viriam ao erguer a batuta, num gesto de extrema delicadeza e elegância, iniciando a regência de um dos mais belos quintetos de Mozart.
Depois que a mãe morreu, talvez por costume, ainda acompanhava o seu pai nas audições do tango de Gardel, que continuaram acontecendo por todas as tardinhas.
Em algumas manhãs, era de transpor os limites do quintal, para ficar próximo à plantação de trigo e dos canteiros de girassóis que a circundavam e ali permanecer, por longo tempo, imóvel, na feição de um espantalho, hipnotizado pelo espetáculo de luz e movimento.
O mesmo entusiasmo com que regia a pequena orquestra, dedicava para o restante do tempo na construção do seu cata-vento, de grandes dimensões, o qual ele chamava de circuladô de fulô; nome que aprendera em uma das canções de Caetano Veloso. Acreditava que a sua engenhoca ainda o levaria, como as asas de um beija-flor, em meio a uma noite estrelada, muito além dos trigais e dos imponentes girassóis.
No dia em que não mais precisou fazer companhia ao seu pai, para ouvirem o francês Charles Romuald Gardés – o verdadeiro nome de Carlos Gardel - numa de suas mais belas interpretações, trancou-se em seu quarto e dizem que nunca mais foi visto pela vizinhança.

*imagem : "Noite Estrelada "- de Vincent Van Gogh

CONTATO COM OTÁVIO MARTINS : E-mail – nb.jornal@yahoo.com.br

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