sábado, 8 de setembro de 2012

A NOVA LEI DE COTAS




A Nova Lei de Cotas
Carlos Alberto Lungarzo
Prof. Tit. (r) Univ. Est. Campinas, SP, Br.
8 de setembro de 2012
No passado dia 29 de agosto, a presidente Dilma aprovou a lei de cotas sociais para as universidades federais e instituições federais de nível médio. Ela vetou o artigo 2º do projeto de lei, que exigia que os beneficiários tivessem uma média mínima em suas disciplinas do 2º grau.
O veto é correto, pois condicionar o futuro de uma pessoa, especialmente jovem, a um desempenho passado (geralmente contaminado por avaliações erradas e problemas sociais) implica aceitar um determinismo absoluto, o qual é radicalmente contrário à crença no poder da educação. No caso de uma universidade, o requisito típico para o acesso é o fato de ter concluído o colégio secundário. O critério não deve ser se o aluno está entre os “melhores” da escola, mas apenas se sabe o necessário para continuar seus estudos.
O projeto de lei foi apresentado pela primeira vez à Câmara com o núm. 73, em 1999 (há 13 anos!), e depois de ataques múltiplas e manobras de todos os grupos elitistas e racistas da sociedade, foram feitas modificações, que tomaram sua forma definitiva em 2008 (há cinco anos!), agora com o número 180.
Esta demora não deve alarmar ninguém: são apenas 13 anos, uma pechincha se comparamos com o atraso que o Brasil tem em relação com outros países. Com relação à Act of Civil Rights dos EEUU (que é um protótipo do país racista e com leis discriminatórias tipo Jim Crow), estamos apenas 48 anos atrás.

O Alcance da Lei

A lei exige que as universidades públicas federais e os institutos técnicos federais  reservem, pelo menos, 50% das vagas para estudantes de escolas públicas. Essas vagas serão distribuídas, por sua vez, proporcionalmente ao tamanho dos grupos étnicos existentes na região, contemplando, entre outros, afrodescendentes e indígenas. Isto resolve, acredito, a suposta contradição entre cotas raciais e cotas sociais. Os racistas mais moderados, não querendo negar o direito dos pobres ao estudo diziam: “aceitamos cotas sociais, mas não raciais”. Depois, quando se falava de contas sociais, argumentavam que aquilo era contra a dita “isonomia”, e que só o mérito devia contar.
Observe que negros e índios entram em qualquer tipo de cota social, já que são os mais indigentes da sociedade. Mas também é necessário que existam cotas étnicas, tal como prevê esta lei. Eu penso que esta lei inclui uma subdivisão em todas raciais, por causa da pressão feita por comunidades negras e índias. Todavia, existem, porém, razões legítimas para que estas etnias tenham suas próprias cotas.
1)    Ao estar representados proporcionalmente os diversos grupos raciais, estes terão uma esperança de que os problemas específicos de sua comunidade sejam tidos em conta. Porque nem todos os pobres tem exatamente o mesmo problema.
2)    Ao incluir cotas raciais, a sociedade reconhece que essas pessoas são compensadas, não apenas por ser pobres, mas por ser vítimas do racismo. É uma oportunidade para que a sociedade faça autocrítica de seu racismo, se tiver consciência.
3)    Quando, como aconteceu várias vezes, especialmente na USP, as elites brancas ameaçam criar tumulto para que não entrem alunos negros ou índios, as cotas étnicas será uma boa oportunidade para ensinar a esses racistas que não irão muito longe com sua força, e que, se atacarem, terão a devida resposta.

Voltando á lei, devemos salientar que as universidades e institutos federais terão quatro anos para implantar a proporção de reserva de vagas estabelecida. Transcrevo os artigos principais do projeto.
Art. 1º As instituições federais de educação superior, vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.
Parágrafo único. No preenchimento das vagas, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita.
Art. 2º  Vetado
Art. 3º Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Parágrafo único. No caso de não preenchimento das vagas segundo os critérios estabelecidos neste artigo, aquelas remanescentes deverão ser completadas por estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.
Art. 4º e 5º Análogos para as instituições federais de ensino técnico de nível médio
Art. 8º As instituições de que trata o art. 1º deverão implementar, no mínimo, 25% (vinte e cinco por cento) da reserva de vagas prevista, a cada ano, e terão o prazo máximo de 4 (quatro) anos, a partir da data de sua publicação, para o cumprimento integral do disposto nesta Lei.

A Referência à Meritocracia

A presidente Dilma, ao comentar a lei, falou sobre dois grandes desafios: um é o da inclusão, para permitir que um maior número de estudantes possa acessar as universidades. O outro é a meritocracia, que ela qualificou como “a excelência das universidades” (sic).
O conceito de meritocracia embora seja aceito geralmente sem análise, é uma noção contextual e não absoluta. O mérito para conseguir uma vaga de chefe de cozinha é saber cozinhar, ser capaz de organizar os cozinheiros, fazer um cardápio, comprar alimentos bons, etc. É muito diferente ao mérito que se pode exigir de um piloto de avião, que deve saber dirigir, controlar instrumentos, entender panes e problemas meteorológicos, além de lida contra a tripulação.
O mérito necessário para entrar num curso de universidade é possuir um conhecimento decente das noções do ensino médio. O mérito necessário para permanecer no curso é mostrar aprendizagem suficiente das novas noções que lhe foram ministradas.
Por outro lado, não esqueçamos que desde o fim da ditadura, os critérios da CAPES, CNPq e outras agências para qualificar o mérito  dos pesquisadores têm sido contestados frequentemente. Em 2002, houve uma avalanche gigantesca de denúncias contra concessão arbitrária de bolsas e de postos de pesquisador. Até membros de bancas qualificadores, que eram pesquisadores, se atribuíram bolsas a si mesmos.
Menos visível é o critério “meritocrático” usado nos concursos de professor. O número de candidatos é pequeno e, especialmente nas universidades paulistas, algum deles é conhecido ou recomendado por algum professor influente. As denúncias feitas aos jornais não são geralmente publicadas, porque a mídia não está interessa em justiça, mas em deixar que as “panelas” acadêmicas resolvam suas lides.
Ora, vamos fazer uma simples “regra de três simples” Se esse é critério para determinar o mérito de professores e pesquisadores, quão sério pode ser o critério de avaliação que, os professores que foram formados nestas universidades, aplicariam na escola média?
Finalmente, lembremos que a capacidade de sair bem colocado em alguns vestibulares (por exemplo, o da FUVEST) depende num, digamos, 80%, da capacidade do aluno para lidar com truques vendidos pelas indústrias de cursinhos. Essas indústrias não vendem produtos baratos. Então, será que ganhar dinheiro faz parte dos méritos para entrar numa universidade?
Parece que mérito para enriquecer e para estudar não têm nada a ver. Mas, para tornar a coisa ainda pior, muitas pessoas enriquecem por acaso. Muitos de nossos filhos puderam fazer cursos que permitiram seu progresso social, porque seus país tivemos a sorte de poder pagar escolas caras e eficientes. Aqui, a final, qual é o mérito?

Por que só Federais?

No Brasil, especialmente nos estados mais poderosos, há uma crença errada de que o governo federal não deve intervir em assuntos dos estados. Este raciocínio é engraçado. Como o país está composto por estados, o governo federal não poderia, então, fazer nada em nenhum sentido. Por exemplo, não deveria colher tributos nem ter FFAA, pois seus membros são habitantes dos estados.
Um exemplo especialmente perverso foi o massacre de Pinheirinho de Janeiro de 2012, executado de maneira calculado pelo o governo do Estado de São Paulo. O governo federal se limitou a umas queixas que pareciam prantos a boca pequena, mas jamais ameaçou com intervir no estado e prender seus criminosos líderes políticos, jurídicos e policiais.
Apesar dessa crença no estado todo-poderoso, o artigo 22 da Constituição Federal diz, de maneira que não deixa qualquer dúvida:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre
(...) XXIV - diretrizes e bases da educação nacional
O critério das cotas é uma diretriz de grande abrangência e não apenas um problema específico. Portanto, deve ser decidido pela União. O fato de que as universidades estaduais tenham sido “poupadas” de carga negro-índia é muito grave, especialmente por causa do estado de SP.
Este estado, o mais rico do país, o que tem maiores demandas e também maiores recursos, o que influi na política científica e no perfil de universidade de toda a federação, é visceral inimigo de qualquer forma de igualdade, especialmente racial.
É verdade que a lei não prejudica outros estados, como o Rio de Janeiro, cuja universidade estadual (UERJ) tem um sistema de cotas próprio bastante democrático desde 2003. Provavelmente, o atual sistema de cotas da UERJ seja socialmente mais avançado que o proposto pela lei Federal.
Mas, a lei preservará o custoso e exclusivo santuário da alta burguesia paulista representado por suas três universidades (especialmente a USP), que absorvem um orçamento maior que o orçamento total de alguns estados da União. Isto não é um detalhe. Não seria sensato dizer que a omissão da lei federal não pode criticar-se apenas com base nas universidades paulistas. Pode, sim, porque elas representam um poder político, ideológico e econômico maior que muitas outras universidades juntas:
Em 2011, a USP teve um orçamento oriundo dos cofres estaduais de aproximadamente 3 bilhões 600 mi de reais.
Ao isentar das cotas às universidades paulistas, está sendo fechada a possibilidade de progresso para as massas excluídas do estado, que estão entre as maiores do país. Em segundo lugar, se continua reservando os lugares ditos “de excelência” para as minorias da alta classe média branca do estado..
Em 19 anos de trabalhar na UNICAMP conheci apenas nove alunos negros, que estudavam em cursos de menor importância, onde as vagas não são disputadas. Inclusive, três deles eram africanos financiados por seus países. Não sei se os outros 6 eram brasileiros, mas devemos reconhecer que esta é uma proporção nanoscópica numa universidade com milhares de alunos.
Em São Paulo existe uma política de faxina social desde tempos remotos. Principal bastião do Integralismo (uma fusão do pior do fascismo italiano com o pior do falangismo espanhol), estado com maior número de chefões do Opus Dei no continente, e o exemplo mais exacerbado de escravagismo selvagem, sua política se caracterizou sempre pela repressão: perseguição, marginalização e, muito frequentemente, execução de pobres, detentos, favelados, afrodescendentes, e todo outro “estorvo social” para a hegemonia das elites.
Sem adequada educação, esses setores continuarão marginalizados, pois suas comunidades não terão voz entre os fatores de poder.

O Limite de Ingressos

O limite de 1,5 salário mínimo para a renda total da família do candidato é baixo. Famílias que sobrevivem com este dinheiro, mesmo pequenas (por exemplo, pais e dois filhos), apenas conseguem comprar arroz e (nem sempre) feijão. Os filhos destas famílias formam um grande exército de deserção escolar no ensino básico, como é sobejamente conhecido.
Não pode descartar-se que alguns membros desta faixa, dotados de especial força de vontade, inteligência e vocação, consigam acabar o segundo grau e, portanto, sejam candidatos para as cotas da universidade.
Mas, isso não é a regra. Então, uma família que recebe 3 salários mínimos (que em qualquer país civilizado estaria por baixo da linha de pobreza), não poderá usufruir das cotas, porque seriam muito ricos para esse sistema. Ora, por que se impõe um limite tão baixo?
A mesma lei dá a resposta nos artigos 1º e 3º:  Se os sobreviventes de um salário e meio não conseguirem preencher as cotas, elas poderão ser preenchidas por quaisquer alunos que estudaram na escola pública. Ora, nem sempre no Brasil as pessoas que vão a escola pública são indigentes. Em diversos estados há alguns colégios públicos bons, onde assistem membros do operariado qualificado e até da classe média baixa.
Pode acontecer que:
1.     Não haja suficientes alunos de “salário e meio” para preencher as cotas.
2.     As vagas restantes sejam preenchidas por alunos de escolas públicas, que nem sempre  são carentes, embora a maioria o seja.
Como as cotas das universidades são sempre ínfimas, pode acontecer que haja suficientes alunos não carentes de escola pública que preencham todas elas. Sabe-se que uma família que ganha menos de 5 salários mínimos dificilmente consegue enviar um de seus filhos a uma escola privada.
3.     Como os que ganham mais que o 1,5 não têm direito a cotas, deverão disputar as vagas, sem qualquer ajuda, com os saídos dos melhores colégios públicos ou com os que, mesmo sendo classe baixa, tiveram mais possibilidades de estudar para o vestibular.
É natural pensar que uma família que ganha 6 salários mínimos e tem um filho na escola pública, possa dar a esse filho uma educação bem melhor que uma de 2 salários mínimos. Então, o aluno de uma família de 2, 3 ou 4 salários não terá direito a cotas, mas também é difícil que tenha recursos para pagar um cursinho, como talvez tenha quem ganha 7 ou 8 salários.
4.    Então, novamente, setores carentes que ganhem entre 1,5 e (digamos) 4 salários mínimos, continuarão excluídos. Sem dúvida, é um grande progresso que um aluno cuja família ganha 6 salários mínimos possa entrar numa universidade excelente como a UFRJ, mas o objetivo de tirar o pobre das “lojas de vendas de diplomas descartáveis” como as UNIQualquerCoisa da vida, não terá sido totalmente resolvido.
Isto perpetuará o sistema de hegemonia cultural dos setores meio e alto e, o que é mais importante para o sistema, manterá negros, índios e favelados longe da educação e o conhecimento de qualidade. O sistema sabe o que faz: se eles adquirirem esse conhecimento, conseguirão algum progresso, e o modelo escravocrata que faz as delícias das altas castas brasileiras começará a ruir.
Na Venezuela, há pessoas brancas e abastadas que dizem: “Que vergonha! Hoje temos que compartilhar nosso espaço com negros e índios.” A elite brasileira não tem esse motivo de queixa e não quer tê-lo.

Os Inimigos das Cotas

 

 

Toda política que tenda a reparar as injustiças que colocaram a enorme maioria do país (e de outros países da região) em situação extrema de carência e discriminação, é resistida por setores racistas e darwinistas da sociedade. Este problema existe em toda América Latina em diferente proporção, mas no Sudeste brasileiro toma características exacerbadas.
Isso é causado por diferentes fatores, e não apenas pelo desprezo racial que impregna a história da colonização católico-luso-hispânica. Também há numerosos fatores econômicos e políticos.
Os inimigos das cotas por razões econômicas concretas são os que lucram com a venda de um ensino baixíssimo, que os pobres devem comprar por falta de outra oportunidade. Donos de faculdades de fim de semana, de cursinhos, de colégios que preparam o aluno somente para o vestibular, fabricantes de apostilas, administradores da indústria de mísseis “lança-diplomas” e outros similares são os principais detratores do sistema.
Mas os motivos puramente ideológicos não devem ser desprezados. São Paulo tem o empresariado com maior margem de lucro no planeta, salvo comparando com os que exploram o trabalho diretamente escravo em lugares como Serra Leoa ou a Libéria.
Tanto os ricos como as classes médias altas são suficientes para preencher todas as vagas dos cursos mais requisitados das Universidades Paulistas. É verdade que, às vezes, alguns alunos brilhantes das classes populares consegue quebrar o bloqueio. Mas é um hábito equívoco confundir exceção com regra.
As classes mais ricas podem mandar seus filhos às universidades caras dos EEUU, mas nem sempre conseguem que eles entrem nas boas universidades, que, além de dinheiro, exigem capacidade. Já as classes médias altas nem sempre podem manter seus filhos em universidades dos países centrais. Uma maneira barata e confortável de resolver esses gargalos é manter algumas universidades como feudo exclusivo das classes altas e de sua periferia subserviente. A tecnologia do país não exigirá que as universidades tenham realmente nível internacional. Será necessário apenas que sejam reconhecidas pelos próprios empresários brasileiros.
Fala-se que a USP é a universidade que forma mais doutores no mundo. Este é um dado interessada, porque fala de quantidade e não qualidade. Claro que entre os doutores de Berkeley, que são muito menos, há dúzias de prêmios Nobel, descobridores de moléculas e produtores de tecnologia essencial. Mas no Brasil o problema é diferente. Se estimarmos a elite em sentido amplo em 1% da população, isso significa que haverá milhares de jovens aspirantes a obter diplomas de doutor da USP. Isso, obviamente, faz crescer o número de títulos. Em universidades de grande prestígio, por exemplo na Europa, uma boa graduação especializada permite uma vida sossegada, mas as aristocracias paulistas não querem apenas isso: exigem o direito a usar as becas medievais nas “escola de samba acadêmicas” em que será ungidos como doutores.
A consciência deste poder da USP para distribuir títulos aparentemente prestigiosos com base num esforço básico (a combinação perfeita), encoraja seus líderes a considerar cada vez mais as melhores universidades paulistas como feudo patrimonial.
Aliás, o chamado “programa de inclusão” da USP é um bom exemplo de recurso diversionista. Como disseram os nobres sicilianos durante a unificação da Itália:
“Vamos simular algo que pareça uma mudança para que tudo continue igual”.
Tudo isto explica, pelo menos em parte, por que a elite branca, geralmente cristã, calcadas do antigo yuppismo americano, não pode tolerar uma política que encha a universidade de negros e índios.

Falácias sobre as Cotas

A falácia mais comum sobre as cotas é sustentada por leguleios que afirmam que elas ferem o princípio de isonomia. Afirmado isto, se expandem em citações das mais diversas “lavras” e de sua própria interpretação de Constituição, muito embora o STF tenha deliberado por unanimidade que a política de cotas na Universidade de Brasília não era anticonstitucional. (Vide)
O argumento de que não se pode dar a ninguém um benefício porque isso seria ofender os que não o recebem, é um enorme sem sentido. Isso só poderia ser razoável numa sociedade onde todas as pessoas tivessem as mesmas oportunidades. Essa sociedade talvez não exista, mas nem por isso podemos aderir ao caso oposto: no Brasil, existe uma nano-micro-minoria que possui todas as oportunidades, e uma maioria esmagadora que não tem nenhuma.
Mais importante que analisar a falta de lógica deste argumento, é estudar a hipocrisia de seus arautos. Ninguém pensou um assunto tão simples como o seguinte?:
Se as cotas atacam a isonomia, por que não houve nunca protestas contra a política de cotas para pessoas com dificuldades especiais (PNE), que existe desde há 21 anos, garantida pela lei 8213 de 1991???
É verdade que essa lei é letra semimorta como todas as leis sobre Direitos Humanos. As ONGs de PNE denunciam falta de mais de 600.000 vagas  (VIDE) para deficientes. Mas, se os cruzados anticotas e sua conversa sobre isonomia fosse sincera, eles teriam criticado as cotas para PNE com um ódio similar ao das cotas sociais. Será que eles não o fizeram por sentimento humanitário? Não, sentimentos não produzem lucros, amigos.
Os que pensam que negros e índios devem ser tratados como ferramentas e mercadorias (não muito valiosas) pois trata-los como gente  ofende a isonomia dos brancos, por que não aplicam este critério aos portadores de deficiência? Não será que pessoas sem problemas deveriam ofender-se porque um cadeirante tem direito a cotas e ela não tem?
Mas, neste caso, as elites têm várias razões para ficar caladas.
1.     Os PNE são muitíssimo menos que os aspirantes a cotas sociais ou raciais. Enquanto as cotas socioraciais deverão constituir um 50% dentro de 4 anos, as cotas para PNE perfazem 2% apenas.
2.     Os PNE aspiram, quase sempre, a empregos em empresas, que  nunca são bem remunerados. As empresas dão estes empregos como esmolas, e aproveitam que algumas PNE têm, por sua mesma condição, um temor permanente a perder o emprego e trabalham mais do normal. A classe alta e média alta que se opõe a entrada de negros, índios e pobres na Universidade não precisa desses empregos. Um jovem da classe alta ou média-alta, mesmo se tiver uma disfunção, não precisará um emprego de empacotador num supermercado.
3.     A criação de cotas para PNE, mesmo se sua proporção fosse muito maior, não prejudica economicamente donos de faculdades privadas, cursinhos, colégios de elite, etc.
4.     As cotas PNE tampouco desafiam o darwinismo-racismo dos pais de famílias de classe alta ou médio-alta. Um jovem burguês pode aceitar a presença de um PNE em sua sala de aula; incluso, pode ter alguma pessoa com esses problemas em sua família. Mas seria diferente compartilhar essa sala com uma metade de afrodescendentes, índios e indigentes. Porque o Brasil é, como sempre se diz, um país miscigenado, mas a miscigenação acontece entre 90% de pobres. Os donos do país não são quase nunca miscigenados.
O argumento da isonomia é especialmente usado por leguleios e formadores de ideologia ao serviço de mercadores da educação ou de famílias ricas que temem pelo “contágio racial” de seus filhos; mas têm outros argumentos.
Os profissionais liberais e os professores da elite usam o argumento da falta de preparo dos alunos da escola pública.
Dada a especificidade de um curso universitário (mesmo que seja de má qualidade), o conhecimento básico que se aprendeu na escola é suficiente para encarar qualquer curso superior. Se os alunos de escola de elite têm melhor rendimento na universidade, isso é causado pela maior disponibilidade de tempo, pelas mesadas familiares, pela facilidade para conseguir material de estudo, computador, livros, viagens e, sobretudo, contatos sociais mais sofisticados. O melhor rendimento não é porque o que se aprende nas escolas de elite seja utilizado nas universidades. Com efeito, nas universidades, os conhecimentos são encarados de maneira mais profunda, e todos os conceitos do segundo grau são revistos. O peso deles na reaprendizagem desses mesmos conceitos a nível universitário é menor de 5%.
Todavia, mesmo tendo em conta estas vantagens dos mais ricos, os estudos feitos até agora nas universidades que aplicam política de cotas, não encontram superior o desempenho dos alunos privilegiados. Eles têm apenas maiores chances nos vestibulares, porque, justamente, a especialidade das escolas mais caras é treinar os alunos para passar nos vestibulares mais complicados, como o da FUVEST, sem que isto implique necessariamente ter adquirido conhecimento sólido de melhor qualidade.
Uma razão poderosa contra o argumento da “falta de base” dos estudantes, é que nenhum curso de universidade usa de maneira intensa e especializada mais de três disciplinas aprendidas no colégio.

1.     Por exemplo, se você estuda engenharia, pode sentir-se mais confortável se, ao entrar na faculdade, sabe mais matemática e física que outros, mas o que você deve saber de português é o mesmo que conhece qualquer cidadão alfabetizado. Se você pretende investigar ou publicar em sua área, isso exigirá geralmente uma pós-graduação, durante a qual poderá tomar cursos paralelos de redação. Já de história, geografia, biologia, artes, etc. você só precisaria para ter cultura geral. Mas, será que o objetivo de universidade é formar pessoas em cultura geral? Não se diz com grande pompa que o ensino universitário é especializado?

2.     Um estudante de medicina sentir-se-á mais confortável com uma boa base em biologia e talvez em química, obtida na escola. Mas, mesmo se não fez uma boa escola, o conhecimento prévio de biologia é ensinado nos primeiros meses da graduação. Quanto conhecimento das outras disciplinas (português, literatura, história e geografia) são necessários para preencher uma receita?

3.     Um estudante de ciências humanas pode se beneficiar de ter feito um bom curso de ciências sociais, português e inglês na escola, mas ele dificilmente usará ciências exatas ou naturais.

Se duvidar, convido você a mencionar cinco grandes cientistas sociais atuais que saibam razoavelmente matemática e física. (Eu ajudo com um exemplo: Noam Chomsky; arrume, por favor, outros quatro).
Por outro lado, para fazer uma boa graduação existem livros produzidos no Brasil ou traduzidos excelentemente ao português. Portanto, o argumento de que os alunos de escolas de elite têm um bom inglês pode ser verdadeiro em alguns casos, mas é irrelevante para a graduação. Será bom quando ele queira galgar um posto numa empresa transnacional.
Gostaria de alguém que me possa mencionar um tópico da graduação, em qualquer área e nível, para o qual não existam fontes em português.
Um diretor de uma Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, dizia, há alguns anos, que os alunos do ensino público estão mal preparados, enquanto os alunos das boas escolas particulares têm melhor preparo. Mas, será que ele está sugerindo que um aluno de uma boa escola particular aprende medicina?
Quem conhece um colegial, mesmo que seja o melhor do mundo, que tenha a disciplina medicina em seu curriculum?
O que sim é verdade, é que um aluno formado em enfermagem numa escola técnica está melhor preparado que outros para estudar medicina. Mas, isto justamente refuta os argumentos de nossos farsantes: com efeito, as melhores escolas técnicas são as federais.
Outro exemplo triste: um chefe do departamento de estatística da USP (não lembro seu nome), dizia, há alguns anos, que os alunos das escolas públicas fazem cair a média de qualidade do curso, que é controlada pela CAPES e as agências de pesquisa.
Ahhhh, como é isso?
Eu achava que uma universidade era uma instituição de ensino, cujo objetivo era formar cidadãos instruídos e úteis. Pelo jeito, em meus anos de professor fui permanentemente enganado. Não sabia que o objetivo de um curso era apenas manter uma alta qualificação na CAPES, para poder obter mais verbas, conseguir passagens para turismo qualificado em congressos, e continuar fazendo pesquisas que nem sempre produzem um retorno social.
(Em geral, grande maioria dos papers circula entre especialistas e poucos deles são aplicados na produção de resultados operacionais. Novamente, se duvida, pegue lápis e papel e faça uma lista de 30 descobertas da ciência brasileira que tenham tido influência no cotidiano da sociedade.)
A verdade é muito simples: os colégios de elites são máquinas muito eficientes de ensinar aos alunos a passar no vestibular. Alguém poderia dizer que então essas escolas capacitam bem seus estudantes. Em alguns casos realmente o fazem, mas uma norma social deve provir da maioria dos casos e não das exceções.
O mais importante para o sucesso no vestibular é conhecer as “dicas” que dão os cursinhos para se ajustar ao estilo da FUVEST e outras empresas de “passagem”.
Há um exemplo que ainda hoje é paradigmático. Na prova de Matemática da Fuvest para o Vestibular de 2006/2007, a pergunta 35 tinha uma resposta incorreta. Os alunos que fizeram cursinho colocaram o resultado que estava no gabarito da FUVEST, mesmo que este fosse errado, porque nos cursinhos eles aprenderam a usar o estilo da empresa e não a entender matemática séria.
Os que realmente sabiam matemática (e entendiam, por exemplo, que o zero é um número como qualquer outro, e não um monstro) deram uma resposta rigorosa que a FUVEST considerou errada. Aliás, a empresa se recusou a anular a pergunta.

Veja isto em detalhe nos jornais da época, que ainda estão na Internet, por exemplo: http://g1.globo.com/Noticias/Vestibular/0,,AA1375648-5604,00.html

Este caso é um exemplo importante porque mostra que o vestibulando é mecanizado de tal modo que terá sucesso se diz o que o vendedor de vestibulares quer que diga, a despeito de que isso seja cientificamente errado.
As cotas contribuirão a enfraquecer este teratológico instrumento de filtração social, mas isso acontecerá desde que as autoridades apliquem a lei seriamente e não se amedrontem pela fúria dos mercadores de diplomas e seus aliados políticos e jurídicos.
Obviamente, a esquerda e os defensores de DH devem apoiar a nova lei com todo o esforço, mas é necessário exigir que ela se estenda a todas as universidades públicas (federais ou não) e que o limite de ingressos familiares seja aumentado. (Por exemplo, a 5 salários mínimos).
Por outro lado, os movimentos sociais devem esclarecer seus membros sobre as formas de sabotagem, bullying e terrorismo que podem receber de algumas dessas instituições.

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