A Nova Lei de Cotas
Carlos
Alberto Lungarzo
Prof. Tit. (r)
Univ. Est. Campinas, SP, Br.
8 de
setembro de 2012
No passado dia 29 de agosto, a presidente Dilma aprovou a lei
de cotas sociais para as universidades federais e instituições federais de
nível médio. Ela vetou o artigo 2º do projeto de lei, que exigia que os
beneficiários tivessem uma média mínima em suas disciplinas do 2º grau.
O veto é correto, pois condicionar o futuro de uma pessoa,
especialmente jovem, a um desempenho passado (geralmente contaminado por
avaliações erradas e problemas sociais) implica aceitar um determinismo
absoluto, o qual é radicalmente contrário à crença no poder da educação. No
caso de uma universidade, o requisito típico para o acesso é o fato de ter
concluído o colégio secundário. O critério não deve ser se o aluno está entre os
“melhores” da escola, mas apenas se sabe o necessário para continuar seus
estudos.
O projeto de lei foi apresentado pela primeira vez à Câmara
com o núm. 73, em 1999 (há 13
anos!), e depois de ataques múltiplas e manobras de todos os grupos elitistas e
racistas da sociedade, foram feitas modificações, que tomaram sua forma
definitiva em 2008 (há cinco anos!),
agora com o número 180.
Esta demora não deve alarmar ninguém: são apenas 13 anos, uma
pechincha se comparamos com o atraso que o Brasil tem em relação com outros
países. Com relação à Act of Civil Rights
dos EEUU (que é um protótipo do país racista e com leis discriminatórias
tipo Jim Crow), estamos apenas 48
anos atrás.
O Alcance da Lei
A lei exige que as universidades públicas federais e os
institutos técnicos federais reservem, pelo
menos, 50% das vagas para estudantes de escolas públicas. Essas vagas serão
distribuídas, por sua vez, proporcionalmente ao tamanho dos grupos étnicos
existentes na região, contemplando, entre outros, afrodescendentes e indígenas.
Isto resolve, acredito, a suposta contradição entre cotas raciais e cotas
sociais. Os racistas mais
moderados, não querendo negar o direito dos pobres ao estudo diziam: “aceitamos
cotas sociais, mas não raciais”. Depois, quando se falava de contas sociais,
argumentavam que aquilo era contra a dita “isonomia”, e que só o mérito devia
contar.
Observe que negros e índios entram em qualquer tipo de cota
social, já que são os mais indigentes da sociedade. Mas também é necessário que
existam cotas étnicas, tal como prevê esta lei. Eu penso que esta lei inclui
uma subdivisão em todas raciais, por causa da pressão feita por comunidades
negras e índias. Todavia, existem, porém, razões legítimas para que estas
etnias tenham suas próprias cotas.
1) Ao estar representados
proporcionalmente os diversos grupos raciais, estes terão uma esperança de que
os problemas específicos de sua comunidade sejam tidos em conta. Porque nem
todos os pobres tem exatamente o mesmo problema.
2) Ao incluir cotas raciais, a sociedade
reconhece que essas pessoas são compensadas, não apenas por ser pobres, mas por ser vítimas do racismo. É uma
oportunidade para que a sociedade faça autocrítica de seu racismo, se tiver
consciência.
3) Quando, como aconteceu várias vezes,
especialmente na USP, as elites brancas ameaçam criar tumulto para que não
entrem alunos negros ou índios, as cotas étnicas será uma boa oportunidade
para ensinar a esses racistas que não irão muito longe com sua força, e que, se
atacarem, terão a devida resposta.
Voltando á lei, devemos salientar que as universidades e
institutos federais terão quatro anos para implantar a
proporção de reserva de vagas estabelecida. Transcrevo os artigos principais do
projeto.
Art. 1º As
instituições federais de educação superior, vinculadas ao Ministério da
Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de
graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas
para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas
públicas.
Parágrafo
único. No preenchimento das vagas, 50% (cinquenta por cento) deverão ser
reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a
1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita.
Art. 2º Vetado
Art. 3º Em cada
instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º serão
preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas,
em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da
unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Parágrafo único. No caso de não
preenchimento das vagas segundo os critérios estabelecidos neste artigo,
aquelas remanescentes deverão ser completadas por estudantes que tenham cursado
integralmente o ensino médio em escolas públicas.
Art. 4º e 5º Análogos para as instituições
federais de ensino técnico de nível médio
Art. 8º As
instituições de que trata o art. 1º deverão implementar, no mínimo, 25% (vinte
e cinco por cento) da reserva de vagas prevista, a cada ano, e terão o prazo
máximo de 4 (quatro) anos, a partir da data de sua publicação, para o
cumprimento integral do disposto nesta Lei.
A Referência à Meritocracia
A presidente Dilma, ao comentar a lei, falou sobre dois
grandes desafios: um é o da inclusão, para permitir que um maior número de
estudantes possa acessar as universidades. O outro é a meritocracia, que
ela qualificou como “a excelência das universidades” (sic).
O conceito de meritocracia embora
seja aceito geralmente sem análise, é uma noção contextual e não absoluta. O
mérito para conseguir uma vaga de chefe de cozinha é saber cozinhar, ser capaz
de organizar os cozinheiros, fazer um cardápio, comprar alimentos bons, etc. É
muito diferente ao mérito que se pode exigir de um piloto de avião, que deve
saber dirigir, controlar instrumentos, entender panes e problemas meteorológicos, além de lida contra a tripulação.
O mérito necessário para entrar num curso de universidade é
possuir um conhecimento decente das noções do ensino médio. O mérito necessário
para permanecer no curso é mostrar
aprendizagem suficiente das novas noções que lhe foram ministradas.
Por outro lado, não esqueçamos que
desde o fim da ditadura, os critérios da CAPES, CNPq e outras agências para
qualificar o mérito dos pesquisadores
têm sido contestados frequentemente. Em 2002, houve uma avalanche gigantesca de
denúncias contra concessão arbitrária de bolsas e de postos de pesquisador. Até
membros de bancas qualificadores, que eram pesquisadores, se atribuíram bolsas
a si mesmos.
Menos visível é o critério
“meritocrático” usado nos concursos de professor. O número de candidatos é
pequeno e, especialmente nas universidades paulistas, algum deles é conhecido
ou recomendado por algum professor influente. As denúncias feitas aos jornais
não são geralmente publicadas, porque a mídia não está interessa em justiça,
mas em deixar que as “panelas” acadêmicas resolvam suas lides.
Ora, vamos fazer uma simples “regra de
três simples” Se esse é critério para determinar o mérito de professores e
pesquisadores, quão sério pode ser o critério de avaliação que, os professores
que foram formados nestas universidades, aplicariam na escola média?
Finalmente, lembremos
que a capacidade de sair bem colocado em alguns vestibulares (por exemplo, o da
FUVEST) depende num, digamos, 80%, da capacidade do aluno para lidar com
truques vendidos pelas indústrias de cursinhos. Essas indústrias não vendem
produtos baratos. Então, será que ganhar dinheiro faz parte dos méritos para entrar numa universidade?
Parece que
mérito para enriquecer e para estudar não têm nada a ver. Mas, para tornar a
coisa ainda pior, muitas pessoas enriquecem por acaso. Muitos de nossos filhos
puderam fazer cursos que permitiram seu progresso social, porque seus país
tivemos a sorte de poder pagar escolas caras e eficientes. Aqui, a final, qual
é o mérito?
Por que só Federais?
No Brasil,
especialmente nos estados mais poderosos, há uma crença errada de que o governo
federal não deve intervir em assuntos dos estados. Este raciocínio é engraçado.
Como o país está composto por estados, o governo federal não poderia, então,
fazer nada em nenhum sentido. Por exemplo, não deveria colher tributos nem ter
FFAA, pois seus membros são habitantes dos estados.
Um exemplo
especialmente perverso foi o massacre de Pinheirinho de Janeiro de 2012,
executado de maneira calculado pelo o governo do Estado de São Paulo. O governo
federal se limitou a umas queixas que pareciam prantos a boca pequena, mas
jamais ameaçou com intervir no estado e prender seus criminosos líderes
políticos, jurídicos e policiais.
Apesar dessa crença no estado todo-poderoso, o artigo 22 da Constituição
Federal diz, de maneira que não deixa qualquer dúvida:
Art. 22. Compete
privativamente à União legislar sobre
(...) XXIV -
diretrizes e bases da educação nacional
|
O critério
das cotas é uma diretriz de grande abrangência e não apenas um problema
específico. Portanto, deve ser decidido pela União. O fato de que as
universidades estaduais tenham sido “poupadas” de carga negro-índia é muito
grave, especialmente por causa do estado de SP.
Este estado,
o mais rico do país, o que tem maiores demandas e também maiores recursos, o
que influi na política científica e no perfil de universidade de toda a
federação, é visceral inimigo de qualquer forma de igualdade, especialmente
racial.
É verdade
que a lei não prejudica outros estados, como o Rio de Janeiro, cuja
universidade estadual (UERJ) tem um
sistema de cotas próprio bastante democrático desde 2003. Provavelmente, o
atual sistema de cotas da UERJ seja
socialmente mais avançado que o proposto pela lei Federal.
Mas, a lei
preservará o custoso e exclusivo santuário da alta burguesia paulista
representado por suas três universidades (especialmente a USP), que absorvem um
orçamento maior que o orçamento total de alguns estados da União. Isto não é um
detalhe. Não seria sensato dizer que a omissão da lei federal não pode
criticar-se apenas com base nas universidades paulistas. Pode, sim, porque elas
representam um poder político, ideológico e econômico maior que muitas outras
universidades juntas:
Em 2011, a
USP teve um orçamento oriundo dos cofres estaduais de aproximadamente 3 bilhões
600 mi de reais.
Ao isentar das
cotas às universidades paulistas, está sendo fechada a possibilidade de progresso
para as massas excluídas do estado, que estão entre as maiores do país. Em
segundo lugar, se continua reservando os lugares ditos “de excelência” para as
minorias da alta classe média branca do estado..
Em 19 anos
de trabalhar na UNICAMP conheci apenas nove alunos negros, que estudavam em
cursos de menor importância, onde as vagas não são disputadas. Inclusive, três
deles eram africanos financiados por seus países. Não sei se os outros 6 eram
brasileiros, mas devemos reconhecer que esta é uma proporção nanoscópica numa
universidade com milhares de alunos.
Em São Paulo
existe uma política de faxina social desde tempos remotos. Principal bastião do
Integralismo (uma fusão do pior do
fascismo italiano com o pior do falangismo espanhol), estado com maior número
de chefões do Opus Dei no continente,
e o exemplo mais exacerbado de escravagismo selvagem, sua política se
caracterizou sempre pela repressão: perseguição, marginalização e, muito
frequentemente, execução de pobres, detentos, favelados, afrodescendentes, e
todo outro “estorvo social” para a hegemonia das elites.
Sem adequada
educação, esses setores continuarão marginalizados, pois suas comunidades não
terão voz entre os fatores de poder.
O Limite de Ingressos
O limite de 1,5
salário mínimo para a renda total da família do candidato é baixo.
Famílias que sobrevivem com este dinheiro, mesmo pequenas (por exemplo,
pais e dois filhos), apenas conseguem comprar arroz e (nem sempre) feijão. Os
filhos destas famílias formam um grande exército de deserção escolar no ensino
básico, como é sobejamente conhecido.
Não pode
descartar-se que alguns membros desta faixa, dotados de especial força de
vontade, inteligência e vocação, consigam acabar o segundo grau e, portanto, sejam
candidatos para as cotas da universidade.
Mas, isso
não é a regra. Então, uma família que recebe 3 salários mínimos (que em
qualquer país civilizado estaria por baixo da linha de pobreza), não poderá
usufruir das cotas, porque seriam muito ricos para esse sistema. Ora,
por que se impõe um limite tão baixo?
A mesma lei
dá a resposta nos artigos 1º e 3º: Se os
sobreviventes de um salário e meio não
conseguirem preencher as cotas, elas poderão ser preenchidas por quaisquer
alunos que estudaram na escola pública. Ora, nem sempre no Brasil as pessoas
que vão a escola pública são indigentes. Em diversos estados há alguns colégios
públicos bons, onde assistem membros do operariado qualificado e até da classe
média baixa.
Pode
acontecer que:
1. Não haja suficientes alunos de
“salário e meio” para preencher as cotas.
2. As vagas restantes sejam preenchidas
por alunos de escolas públicas, que nem sempre são carentes, embora a maioria o seja.
Como as cotas das universidades são
sempre ínfimas, pode acontecer que haja suficientes alunos não carentes de
escola pública que preencham todas elas. Sabe-se que uma família que ganha
menos de 5 salários mínimos dificilmente consegue enviar um de seus filhos a uma escola privada.
3. Como os que ganham mais que o 1,5 não têm direito a cotas, deverão
disputar as vagas, sem qualquer ajuda, com os saídos dos melhores colégios
públicos ou com os que, mesmo sendo classe baixa, tiveram mais possibilidades
de estudar para o vestibular.
É natural pensar que uma família que
ganha 6 salários mínimos e tem um filho na escola pública, possa dar a esse
filho uma educação bem melhor que uma
de 2 salários mínimos. Então, o aluno de uma família de 2, 3 ou 4 salários não terá direito a cotas, mas também é
difícil que tenha recursos para pagar um cursinho,
como talvez tenha quem ganha 7 ou 8 salários.
4. Então, novamente, setores carentes
que ganhem entre 1,5 e (digamos) 4 salários mínimos, continuarão excluídos. Sem
dúvida, é um grande progresso que um aluno cuja família ganha 6 salários
mínimos possa entrar numa universidade excelente como a UFRJ, mas o objetivo de
tirar o pobre das “lojas de vendas de diplomas descartáveis” como as UNIQualquerCoisa da vida, não terá sido
totalmente resolvido.
Isto perpetuará o sistema de
hegemonia cultural dos setores meio e alto e, o que é mais importante para o
sistema, manterá negros, índios e favelados longe da educação e o conhecimento
de qualidade. O sistema sabe o que faz: se eles adquirirem esse conhecimento,
conseguirão algum progresso, e o modelo escravocrata que faz as delícias das
altas castas brasileiras começará a ruir.
Na Venezuela, há pessoas brancas e abastadas que dizem: “Que
vergonha! Hoje temos que compartilhar nosso espaço com negros e índios.” A
elite brasileira não tem esse motivo de queixa e não quer tê-lo.
Os Inimigos das Cotas
Toda
política que tenda a reparar as injustiças que colocaram a enorme maioria do
país (e de outros países da região) em situação extrema de carência e
discriminação, é resistida por setores racistas e darwinistas da sociedade.
Este problema existe em toda América Latina em diferente proporção, mas no
Sudeste brasileiro toma características exacerbadas.
Isso é
causado por diferentes fatores, e não apenas pelo desprezo racial que impregna
a história da colonização católico-luso-hispânica. Também há numerosos fatores
econômicos e políticos.
Os inimigos
das cotas por razões econômicas concretas são os que lucram com a venda de um
ensino baixíssimo, que os pobres devem comprar por falta de outra oportunidade.
Donos de faculdades de fim de semana, de cursinhos, de colégios que preparam o
aluno somente para o vestibular, fabricantes de apostilas, administradores da
indústria de mísseis “lança-diplomas” e outros similares são os principais
detratores do sistema.
Mas os
motivos puramente ideológicos não devem ser desprezados. São Paulo tem o
empresariado com maior margem de lucro no planeta, salvo comparando com os que
exploram o trabalho diretamente escravo em lugares como Serra Leoa ou a
Libéria.
Tanto os ricos
como as classes médias altas são suficientes para preencher todas as vagas dos
cursos mais requisitados das Universidades Paulistas. É verdade que, às vezes, alguns
alunos brilhantes das classes populares consegue quebrar o bloqueio. Mas é um
hábito equívoco confundir exceção com regra.
As classes
mais ricas podem mandar seus filhos às universidades caras dos EEUU, mas nem
sempre conseguem que eles entrem nas boas universidades, que, além de
dinheiro, exigem capacidade. Já as classes médias altas nem sempre podem manter
seus filhos em universidades dos países centrais. Uma maneira barata e
confortável de resolver esses gargalos é manter algumas universidades como feudo
exclusivo das classes altas e de sua periferia subserviente. A tecnologia do
país não exigirá que as universidades tenham realmente nível internacional.
Será necessário apenas que sejam reconhecidas pelos próprios empresários
brasileiros.
Fala-se que
a USP é a universidade que forma mais doutores no mundo. Este é um dado
interessada, porque fala de quantidade e não qualidade. Claro que entre os
doutores de Berkeley, que são muito menos, há dúzias de prêmios Nobel,
descobridores de moléculas e produtores de tecnologia essencial. Mas no Brasil
o problema é diferente. Se estimarmos a elite em sentido amplo em 1% da
população, isso significa que haverá milhares de jovens aspirantes a obter
diplomas de doutor da USP. Isso, obviamente, faz crescer o número de títulos.
Em universidades de grande prestígio, por exemplo na Europa, uma boa graduação
especializada permite uma vida sossegada, mas as aristocracias paulistas não
querem apenas isso: exigem o direito a usar as becas medievais nas “escola de
samba acadêmicas” em que será ungidos como doutores.
A
consciência deste poder da USP para distribuir títulos aparentemente
prestigiosos com base num esforço básico (a combinação perfeita), encoraja seus
líderes a considerar cada vez mais as melhores universidades paulistas como
feudo patrimonial.
Aliás, o chamado “programa de
inclusão” da USP é
um bom exemplo de recurso diversionista. Como disseram os nobres sicilianos
durante a unificação da Itália:
“Vamos simular algo que pareça uma
mudança para que tudo continue igual”.
Tudo isto explica, pelo menos em
parte, por que a elite branca, geralmente cristã, calcadas do antigo yuppismo americano, não pode tolerar uma
política que encha a universidade de negros e índios.
Falácias sobre as Cotas
A falácia
mais comum sobre as cotas é sustentada por leguleios que afirmam que elas ferem
o princípio de isonomia. Afirmado isto, se expandem em citações das mais
diversas “lavras” e de sua própria interpretação de Constituição, muito embora
o STF tenha deliberado por unanimidade que a política de cotas na
Universidade de Brasília não era anticonstitucional. (Vide)
O argumento
de que não se pode dar a ninguém um benefício porque isso seria ofender os que
não o recebem, é um enorme sem sentido. Isso só poderia ser razoável numa sociedade
onde todas as pessoas tivessem as mesmas oportunidades. Essa sociedade talvez
não exista, mas nem por isso podemos aderir ao caso oposto: no Brasil, existe
uma nano-micro-minoria que possui todas as
oportunidades, e uma maioria esmagadora que não
tem nenhuma.
Mais
importante que analisar a falta de lógica deste argumento, é estudar a
hipocrisia de seus arautos. Ninguém pensou um assunto tão simples como o
seguinte?:
Se as cotas
atacam a isonomia, por que não houve nunca protestas contra a política de cotas
para pessoas com dificuldades especiais (PNE), que existe desde há 21 anos,
garantida pela lei 8213 de 1991???
É verdade
que essa lei é letra semimorta como todas as leis sobre Direitos Humanos. As
ONGs de PNE denunciam falta de mais de 600.000
vagas (VIDE) para
deficientes. Mas, se os cruzados anticotas e sua conversa sobre isonomia fosse
sincera, eles teriam criticado as cotas para PNE com um ódio similar ao das
cotas sociais. Será que eles não o fizeram por sentimento humanitário? Não,
sentimentos não produzem lucros, amigos.
Os que pensam
que negros e índios devem ser tratados como ferramentas e mercadorias (não
muito valiosas) pois trata-los como gente ofende
a isonomia dos brancos, por que não
aplicam este critério aos portadores de deficiência? Não será que pessoas sem
problemas deveriam ofender-se porque um cadeirante tem direito a cotas e ela
não tem?
Mas, neste
caso, as elites têm várias razões para ficar caladas.
1. Os PNE são muitíssimo menos que os
aspirantes a cotas sociais ou raciais. Enquanto as cotas socioraciais deverão
constituir um 50% dentro de 4 anos, as cotas para PNE perfazem 2% apenas.
2. Os PNE aspiram, quase sempre, a
empregos em empresas, que nunca são bem
remunerados. As empresas dão estes empregos como esmolas, e aproveitam que
algumas PNE têm, por sua mesma condição, um temor permanente a perder o emprego
e trabalham mais do normal. A classe alta e média alta que se opõe a entrada de
negros, índios e pobres na Universidade não precisa desses empregos. Um jovem da classe alta ou média-alta,
mesmo se tiver uma disfunção, não precisará um emprego de empacotador num
supermercado.
3. A criação de cotas para PNE, mesmo se sua proporção fosse muito maior, não prejudica
economicamente donos de faculdades privadas, cursinhos, colégios de elite, etc.
4. As cotas PNE tampouco desafiam o darwinismo-racismo dos pais de famílias de
classe alta ou médio-alta. Um jovem burguês pode aceitar a presença de um PNE em sua sala de aula; incluso, pode
ter alguma pessoa com esses problemas em sua família. Mas seria diferente
compartilhar essa sala com uma metade de afrodescendentes, índios e indigentes.
Porque o Brasil é, como sempre se diz, um país miscigenado, mas a miscigenação acontece entre 90% de pobres. Os
donos do país não são quase nunca miscigenados.
O argumento da isonomia é
especialmente usado por leguleios e formadores de ideologia ao serviço de
mercadores da educação ou de famílias ricas que temem pelo “contágio racial” de
seus filhos; mas têm outros argumentos.
Os profissionais liberais e os
professores da elite usam o argumento da falta de preparo dos alunos da escola
pública.
Dada a especificidade de um curso
universitário (mesmo que seja de má qualidade), o conhecimento básico que se
aprendeu na escola é suficiente para encarar qualquer curso superior. Se os
alunos de escola de elite têm melhor rendimento na universidade, isso é causado
pela maior disponibilidade de tempo, pelas mesadas familiares, pela facilidade
para conseguir material de estudo, computador, livros, viagens e, sobretudo,
contatos sociais mais sofisticados. O
melhor rendimento não é porque o que se
aprende nas escolas de elite seja utilizado nas universidades. Com
efeito, nas universidades, os conhecimentos são encarados de maneira mais
profunda, e todos os conceitos do segundo grau são revistos. O peso deles na reaprendizagem
desses mesmos conceitos a nível universitário é menor de 5%.
Todavia, mesmo tendo em conta estas
vantagens dos mais ricos, os estudos feitos até agora nas universidades que
aplicam política de cotas, não encontram superior o desempenho dos alunos
privilegiados. Eles têm apenas maiores chances nos vestibulares, porque,
justamente, a especialidade das escolas mais caras é treinar os alunos para passar nos vestibulares mais complicados,
como o da FUVEST, sem que isto implique necessariamente ter adquirido
conhecimento sólido de melhor qualidade.
Uma razão poderosa contra o argumento
da “falta de base” dos estudantes, é que nenhum curso de universidade usa de maneira
intensa e especializada mais de três disciplinas aprendidas
no colégio.
1. Por exemplo, se você estuda engenharia,
pode sentir-se mais confortável se, ao entrar na faculdade, sabe mais matemática
e física que outros, mas o que você deve saber de português é o mesmo que
conhece qualquer cidadão alfabetizado. Se você pretende investigar ou publicar
em sua área, isso exigirá geralmente uma pós-graduação, durante a qual poderá tomar
cursos paralelos de redação. Já de história, geografia, biologia, artes, etc.
você só precisaria para ter cultura geral. Mas, será que o objetivo de
universidade é formar pessoas em cultura
geral? Não se diz com grande pompa que o ensino universitário é especializado?
2. Um estudante de medicina sentir-se-á mais
confortável com uma boa base em biologia e talvez em química, obtida na escola.
Mas, mesmo se não fez uma boa escola, o conhecimento prévio de biologia é
ensinado nos primeiros meses da graduação. Quanto conhecimento das outras
disciplinas (português, literatura, história e geografia) são necessários para
preencher uma receita?
3. Um estudante de ciências humanas pode se
beneficiar de ter feito um bom curso de ciências sociais, português e inglês na
escola, mas ele dificilmente usará ciências exatas ou naturais.
Se duvidar, convido você a mencionar cinco grandes cientistas sociais
atuais que saibam razoavelmente matemática e física.
(Eu ajudo com um exemplo: Noam Chomsky; arrume, por favor, outros quatro).
Por outro lado, para fazer uma boa
graduação existem livros produzidos no Brasil ou traduzidos excelentemente ao
português. Portanto, o argumento de que os alunos de escolas de elite têm um
bom inglês pode ser verdadeiro em alguns casos, mas é irrelevante para a
graduação. Será bom quando ele queira galgar um posto numa empresa
transnacional.
Gostaria de alguém que me possa
mencionar um tópico da graduação, em qualquer área e nível,
para o qual não existam fontes em
português.
Um diretor de uma Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, dizia, há alguns anos, que os alunos do ensino
público estão mal preparados, enquanto os alunos das boas escolas particulares
têm melhor preparo. Mas, será que ele está sugerindo que um aluno de uma boa
escola particular aprende medicina?
Quem conhece um colegial, mesmo que seja
o melhor do mundo, que tenha a disciplina medicina em seu curriculum?
O que sim é verdade, é que um aluno
formado em enfermagem numa escola técnica está melhor preparado que outros para
estudar medicina. Mas, isto justamente refuta os argumentos de nossos
farsantes: com efeito, as melhores escolas técnicas são as federais.
Outro exemplo triste: um chefe do
departamento de estatística da USP (não lembro seu nome), dizia, há alguns
anos, que os alunos das escolas públicas fazem cair a média de qualidade do curso,
que é controlada pela CAPES e as agências de pesquisa.
Ahhhh, como é isso?
Eu achava que uma universidade era
uma instituição de ensino, cujo objetivo era formar cidadãos instruídos e úteis.
Pelo jeito, em meus anos de professor fui permanentemente enganado. Não sabia
que o objetivo de um curso era apenas manter uma alta qualificação na CAPES,
para poder obter mais verbas, conseguir passagens para turismo qualificado em
congressos, e continuar fazendo pesquisas que nem sempre produzem um retorno
social.
(Em geral, grande maioria dos papers circula entre especialistas e
poucos deles são aplicados na produção de resultados operacionais. Novamente,
se duvida, pegue lápis e papel e faça uma lista de 30 descobertas da ciência brasileira que tenham tido influência no
cotidiano da sociedade.)
A verdade é muito simples: os
colégios de elites são máquinas muito eficientes de ensinar aos alunos a passar
no vestibular. Alguém poderia dizer que então essas escolas capacitam bem seus
estudantes. Em alguns casos realmente o fazem, mas uma norma social deve provir
da maioria dos casos e não das exceções.
O mais importante para o sucesso no
vestibular é conhecer as “dicas” que dão os cursinhos para se ajustar ao estilo
da FUVEST e outras empresas de “passagem”.
Há um
exemplo que ainda hoje é paradigmático. Na prova de Matemática da Fuvest para o
Vestibular de 2006/2007, a pergunta 35 tinha uma resposta incorreta. Os alunos
que fizeram cursinho colocaram o resultado que estava no gabarito da FUVEST,
mesmo que este fosse errado, porque nos cursinhos eles aprenderam a usar o
estilo da empresa e não a entender matemática séria.
Os que realmente sabiam matemática (e entendiam, por exemplo, que o zero é um número como qualquer outro, e
não um monstro) deram uma resposta rigorosa que a FUVEST considerou errada. Aliás, a empresa se recusou a anular a pergunta.
Veja isto em detalhe nos jornais da
época, que ainda estão na Internet, por exemplo: http://g1.globo.com/Noticias/Vestibular/0,,AA1375648-5604,00.html
Este caso é um exemplo importante porque
mostra que o vestibulando é mecanizado de tal modo que terá sucesso se diz o
que o vendedor de vestibulares quer que diga, a despeito de que isso
seja cientificamente errado.
As cotas contribuirão a enfraquecer
este teratológico instrumento de filtração social, mas isso acontecerá desde
que as autoridades apliquem a lei seriamente e não se amedrontem pela fúria dos
mercadores de diplomas e seus aliados políticos e jurídicos.
Obviamente, a esquerda e os
defensores de DH devem apoiar a nova lei com todo o esforço, mas é necessário
exigir que ela se estenda a todas as
universidades públicas (federais ou não) e que o limite de ingressos familiares
seja aumentado. (Por exemplo, a 5 salários mínimos).
Por outro lado, os movimentos sociais
devem esclarecer seus membros sobre as formas de sabotagem, bullying e terrorismo que podem receber
de algumas dessas instituições.
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