Drogas e Repressão
Carlos A. Lungarzo
AIUSA 9152711
Segundo comunicado da Polícia Militar de São Paulo, a manifestação que teve lugar no dia sábado 28 de maio no centro financeiro da cidade em defesa da liberdade de expressão, teria contado com 4.000 manifestantes no momento de seu lançamento e com mais de 2.000 no instante da desconcentração. Se foi mantida a tradição de todas as polícias, desde a época do bonapartismo, de subcalcular o número dos inimigos, a passeata deve ter tido por volta de 7.000 participantes.
Durante a realização do evento, os passeantes presentearam o público e a polícia com flores, representando os votos de paz que se tornaram comuns desde a década de 1960, com o ressurgimento do pacifismo e da Nova Esquerda na Europa e nos EEUU.
Desta vez, a polícia evitou perseguições e provocações, e cumpriu seu acordo com os manifestantes, de permitir que a manifestação pudesse acontecer sem bombas nem pancadas. Apesar da nova recusa do Tribunal de Justiça de São Paulo para aceitar uma marcha pacífica (e, desta vez, uma marcha sem referência à maconha, sustentando apenas à liberdade de expressão), algum acordo de bastidores entre a polícia e o governo do estado deve ter impedido uma nova chacina, uma vez que a imagem da São Paulo como centro de repressão é uma das mais conhecidas na comunidade internacional de direitos humanos.
O evento anterior, ferozmente reprimido pelos jagunços urbanos, era uma marcha em prol da descriminalização da maconha que se realizou em diversas cidades do Brasil no dia 21 de maio, com graus também variados de repressão, embora nenhum tão alto como em São Paulo, um estado dominado pela pior combinação possível entre o capitalismo manchesteriano do século 19 e o obscurantismo patológico do Opus Dei. O ato tinha sido proibido no dia 20 pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP, sobre cuja nefasta história falarei um pouco num artigo próximo), sob o pretexto de constituir apologia do crime.
Curiosamente, o TJSP teve dificuldades para usar o mesmo argumento com a manifestação do dia 28, porque até para aqueles inquisidores seria um exagero dizer que uma marcha pela liberdade era uma “apologia do delito”. Como é bem conhecido, a marcha foi totalmente pacífica, e seus participantes acataram a ordem de ocultar a palavra “maconha” em seus cartazes e camisetas, mas isso não os poupou da sanha dos esbirros, que fizeram múltiplas detenções e agrediram fisicamente numerosas pessoas. A marcha do dia 28, pelo contrário, mostra uma microscópica faísca de esperança para uma futura luta geral contra os direitos humanos, não vinculada a nenhum assunto em particular.
Neste artigo, desejo analisar apenas um aspecto da questão: a relação entre a reclamação pela descriminalização do uso de entorpecentes e os direitos humanos. Num artigo complementar, vou me referir ao que poderia ser o surgimento de um frente de resistência múltiplo (envolvendo movimentos sociais de diversa espécie), para combater o obscurantismo e a repressão.
Direitos Reflexivos
As pessoas possuem direitos humanos que devem ser respeitados por outras pessoas, mas há alguns direitos básicos que devem ser também respeitados pelo mesmo agente; ou seja, são direitos que defendem a pessoa contra as agressões dela própria. Em outras palavras, são direitos que não podem ser abdicados por seu portador.
Chamo a estes direitos humanos reflexivos (que se refletem sobre o mesmo autor). Os direitos humanos reflexivos são poucos. Por exemplo, todos têm direito a que sua vida não seja interrompida por outra pessoa, mas alguém pode decidir acabar com sua própria vida por causas que envolvem seu próprio bem-estar (é o caso de quem se suicida ou pede ser beneficiado com a eutanásia para não sofrer uma doença irreversível e dolorosa; ou quem decide sacrificar sua vida em prol de uma causa concreta que ele considera mais importante que sua própria existência, etc.)
Mas, um direito humano reflexivo é aquele que impede que uma pessoa seja degradada ou agredida física ou moralmente, por outros ou por ela mesma. Neste caso, a pessoa “não tem direito” a tornar-se vítima de si mesma. Esta expressão “não tem direito” é uma metáfora para uma afirmação mais complexa. De fato, a pessoa que se agride a si mesma (como no caso de autoflagelação) está sofrendo um transtorno em sua capacidade mental e emocional. Portanto, o direito não está sendo utilizado para proteger alguém de si mesmo, já que isto parece sem sentido, porque estaríamos lhe impedindo decidir sobre ela própria. Protege-se a pessoa de qualquer fator que provoque um desequilíbrio psíquico que produza a autoagressão. A vítima deve ser tutelada e ajudada a curar o transtorno que a conduz a se autoagredir e, enquanto isso acontecer, ser controlada para evitar esses atos. Observe que isto é diametralmente oposto à negação da eutanásia. A eutanásia é uma maneira de evitar a degradação do sofrimento, ou seja, é liberar a vítima de agressão externa por doenças ou outras disfunções. É claro que o assunto é complexo e podem aparecer ambiguidades que requeiram um tratamento casuístico. Por exemplo, alguém pode precipitar-se e optar pela eutanásia num caso em que sua doença seria curável sem degradação da sua vida.
Os casos de autoagressão têm etiologias externas muito diversas: brigas familiares, sensação de desprezo e isolamento, perseguição do sistema político e social, tendências masoquistas endógenas, misticismo e ascetismo, etc., mas, em geral, só podem crescer num sistema psíquico emocional vulnerado. A índole da etiologia interna da autoagressão não é tão misteriosa: é uma mistura de sentimentos doentios. Entretanto, foi mistificada durante séculos pelo fanatismo religioso, e pelo proveito que tiraram dele inquisidores, linchadores e torturadores. Com efeito, ainda hoje, muitas seitas propõem certas formas de agressão violenta (como a autoflagelação no Opus Dei, e a Axoura entre grupos xiitas radicais) como ato de purificação. Muitas das exigências de seitas que parecem “normais” são também convites à autoagressão, como as limitações ao relacionamento sexual consentido, a condenação a gravidez indesejada, e assim em diante.
No caso do consumo de drogas, ele pode ser visto como autoagressão, já que os entorpecentes produzem um efeito negativo no organismo, tanto fisicamente, como psiquicamente. Entretanto, a solução final ao problema deveria ser a criação de ambientes sociais e psíquicos nos quais os fatores que deflagram esses vícios percam sentido. Mas, sendo que não em todos os casos é fácil ter sucesso, a solução parcial deve ser a adotada por medidas conciliatórias como as que caracterizam o modelo holandês, que permite um consumo moderado de droga leve, sob a vigilância do estado.
Na Holanda (cujo modelo tentou muitas vezes os países Escandinavos, a Suíça e o Reino Unido, mas não conseguiu vingar por causa de pressões de grupos moralistas e fascistoides) o consumo de droga pesada (que nunca foi autorizado), como crack e heroína diminui notavelmente, com base no princípio de minimização de danos (harm minimization, HM). Apesar das dificuldades (cada vez menores) para adotar o modelo holandês, programas de HM se utilizam até em países repressivos e puritanos como os EEUU desde há décadas, com resultados positivos verificados. O aumento do consumo mundial de droga nas últimas décadas não está relacionado com a HM, mas com o aumento massivo da oferta, o barateamento do produto (como no caso do atual oxi, ainda não avaliado em seus efeitos potencialmente demolidores), e também pelo entrosamento dos cartels de droga com os governos, os tribunais, as polícias, as forças armadas e, sobretudo, os bancos. (Este é um aspecto que está bastante documentando, mas requer uma exposição extensa. Em alguns lugares, como na Colômbia, isto é muito claro).
A repressão da vítima e não dos vitimadores, é uma política de extrema barbárie que ameaça todos os direitos humanos. Não é por acaso que neste momento se lança desde os mais tóxicos esgotos da direita brasileira, uma ofensiva contra o homoerotismo, contra o direito à maternidade responsável, contra os que exigem a divulgação dos crimes militares, e contra quaisquer outros que representem civilização, democracia ou humanismo. Também, como sempre fez o judiciário, até em países realmente democráticos, se manipula a liberdade de expressão que, na prática, é proibida a todos os que não são amigos do sistema.
Há vários aspectos sobre a repressão contra o consumo de drogas, que não podem ser analisados de uma vez só, e requerem uma ação educativa coordenada das organizações de Direitos Humanos:
v O consumidor de droga (mesmo quando se torna, pela necessidade de seu vício, colaborador dos traficantes) é vítima de uma doença de adição. Punir alguém por estar doente é uma amostra de medievalismo, como acontecia nas épocas em que a igreja considerava que o doente era amaldiçoado por Deus.
v Nem sempre o consumo de droga é claramente autoagressivo, embora possa tornar-se, se for exagerado. Como veremos na seção seguinte, o consumo de álcool e de tabaco é entre 20% e 50% mais nocivo e viciante que o da maconha. Entretanto, alguns bebedores “sociais” afirmam estar experimentando um prazer, e negam que sua alcoolização seja uma autoagressão.
v É totalmente oposto à democracia proibir a possibilidade de discutir um assunto, sobre o qual a mesma comunidade de direitos humanos não tem consenso. Pode proibir-se legalmente uma manifestação de racistas, de defensores da tortura ou da pena de morte, porque estes atos se propõem tornar a sociedade cada vez mais bárbara e cheia de ódios. (Nestes casos, porém, a justiça é complacente). Não pode, porém, proibir-se a discussão de um fato que, apesar de ter soluções duvidosas e conflitivas, não está ainda esclarecido, e se refere a ações (como fumar maconha) que são do foro íntimo da pessoa.
Estes assuntos são muito complexos, e exigem uma cuidadosa análise dos diversos fatores que entram numa política de drogas: sanitários, sociais, criminológicos, éticos, psíquicos e políticos. Mas, quero apenas referir-me brevemente ao caso mais simples e mais comentado: o da cannabis sativa (maconha ou marihuana), que é o fantasma dos juízes e promotores de nossa ainda colonizada, medieval e teocrática sociedade.
Maconha: Apenas um Símbolo
A maioria dos observadores de esquerda tende a ignorar o peso da ideologia e dos tabus místicos na formação da mente dos repressores, especialmente daqueles que se consideram mais “iluminados”, como os membros do judiciário. Por esse motivo, nem sempre as pessoas entendem os motivos da sanha irracional dos inquisidores contra o simples uso da palavra “maconha”. O uso da cannabis não interfere na economia das altas elites, como acontece, por exemplo, com os entorpecentes pesados, que são responsáveis pela perda de capacidade produtiva de muitos trabalhadores (pelo menos, nos países onde há emprego e tal perda de mão de obra é sensível). Por outro lado, tampouco pode pensar-se num ato de “bondade burguesa”, tentando proteger os viciados dos danos a sua saúde.
É claro que a ingestão ou aplicação de qualquer tóxico é nociva (pela própria definição de tóxico), e que o estado deveria envidar os maiores esforços em educar as pessoas e cuidar de sua saúde mental, de maneira que elas mesmas não desejem utilizar este recurso. Mas, isso não é apenas diferente, mas exatamente o oposto de criminalizar a dependência e até perseguir aos que querem que se ofereça uma solução legal a esse problema.
Com efeito, desde há pelo menos 5 décadas, os mais importantes centros mundiais da saúde investigam o potencial ofensivo da maconha em relação com outros entorpecentes, em particular com as chamadas “drogas legais”, como as bebidas alcoólicas e o tabaco. O problema tem suscitado centenas de pesquisas, onde se cruzam variáveis de todos os tipos, monitoradas por mecanismos de controle gradativamente mais robustos. É verdade que revistas de atualidade, programas de TV, magazines de divulgação pseudocientífica e outros veículos comerciais, têm aproveitado para criar confusão e apresentar dados de pesquisas nunca feitas, onde se mostra como a marihuana é mortal.
Em 2007, o prestigioso semanário britânico Lancet (considerado a 2ª. mais importante revista de medicina geral do planeta) apresentou os resultados de uma investigação decisiva na área, cuja estatística aparece na figura acima. Vale lembrar que já foram publicadas mais de 2000 pesquisas nos últimos 20 anos, com resultados compatíveis com este, mas o extremo rigor das provas feitas pelos pesquisadores que dirigiram esta equipe, torna esta a mais importante de todas.
Como os pesquisadores usaram uma escala de quocientes, faz sentido comparar proporções. Então, pode afirmar-se que o tabaco é aproximadamente 20% mais nocivo (em termos físicos e não psiquiátricos) que a maconha, e o álcool mais ou menos 30% mais nocivo (em termos físicos; esta estatística não compara efeitos psiquiátricos, mas acredita-se que a intoxicação alcóolica seja pelo menos tão destrutiva do aparato cognitivo como o é a intoxicação com cannabis). Por sua vez, ambos são, respetivamente, 50% e 30% (aproximadamente) mais viciantes que o cannabis.
Não precisa comentário o efeito social do álcool em relação com a maconha, quando se enumeram os acidentes, brigas e atos violentos executados por pessoas sob a ação de bebida alcoólica, em comparação com os raros casos equivalentes gerados pela cannabis. A influência da maconha em catástrofes sociais, como acidentes ou crimes, só acontece quando os usuários tem contraído alguma disfunção psicológica, o que pode ocorrer, às vezes, em viciados crónicos, mas nunca é tão frequente como em alcóolatras ou cocainômanos. A robustez destas estatísticas e bastante verificável, mas, mesmo que deixem alguma dúvida, não seria muita ingenuidade conferi-lhes algo mais de credibilidade que às conclusões que os magistrados tiram do código penal para provar qualquer afirmação, inclusive de tipo médico.
Por que, então, o álcool e o cigarro não carregam o mesmo estigma da maconha? De fato, o cigarro tem perdido numerosos adeptos, mas as bebidas alcoólicas são ardorosamente propagandeadas. Este é um ponto no qual joga um papel importante a ideologia da direita, e não apenas seus interesses econômicos. Se fosse apenas por estes interesses, muitos governos do mundo imitariam à Califórnia, tentando descriminalizar a maconha, para depois poder vender “grifes” de cannabis, e amassar fortunas como as dos donos das adegas. Nesse caso, teríamos nas redes de TV brasileira propagandas de fumadores de maconha nas praias e nas baladas.
No caso da maconha e de outras drogas que alteram o sistema cognitivo, a proibição, perseguição e violenta repressão têm muito mais a ver com a ideologia do aparato repressivo, especialmente do judiciário, que com lucros e vantagens materiais.
É um fato notório há dois séculos, que a principal base da repressão exercida sobre os povos pelas tiranias, exércitos e corpos policiais é de tipo místico e teocrático. Esta afirmação tem sido questionada mostrando o caráter ultrarepressivo do stalinismo e o maoísmo (autoproclamados ateus), mas deve ter-se em conta que esses sistemas construíram uma mística não tradicional, endeusando heróis, políticos e partidos, e sacralizando causas abstratas (nacionalismo, stakhanovismo, sacrifício, etc.). Apesar de sua suposta secularidade, sua ideologia é fortemente mística, cheia de venerações simbólicas, bandeiras, hinos, uniformes, marchas, homenagens e funerais.
De fato, nenhum sistema repressivo em grande escala até agora conhecido tem sido totalmente secular. Essa religiosidade da repressão leva de forma direita à caçada de bruxas dos consumidores de “entorpecentes”, mas também a sacralização das drogas ditas “nobres”, especialmente a bebida. Os entorpecentes, principalmente a maconha e os alucinógenos, não são vistos pela direita como colegas do álcool e o tabaco, pois o consumo destes últimos é considerado hábito digno e não vícios.
Os “entorpecentes”, especialmente aqueles que modificam a percepção sensorial (mescalina, LSD, peyotl e, de maneira diferente, a maconha e o harsh) foram usados muitas vezes como símbolo de desafio ao sistema, e incorretamente associados à liberdade sexual. (De fato, algumas destas drogas desinibem para a realização do ato sexual com desconhecidos, mas o fato de precisar usar fármacos para conseguir a “coragem” não é um sintoma de libertação sexual, mas, pelo contrário, é um sinal de personalidade reprimida).
Embora Santo Agostinho e outros famosos teólogos criticassem o excesso de álcool, as bebidas alcóolicas sempre estiveram presentes nos rituais cristãos. O vinho, por exemplo, é considerado tão nobre, que na mitologia católica ele pode ser transformado em sangue divino durante a missa. Aliás, bebidas fortes foram prezadas desde há milênios, como símbolo da virilidade e a belicosidade, e recomendada para aumentar a eficiência na guerra. No militarismo atual, o álcool segue sendo privilegiado, embora, nos EEUU, esteja concorrendo com drogas “ilegais” para aumentar o espírito assassino dos combatentes e torturadores. Nas elites mais parasitas e bizarras (que não são todas), é conhecida a adoração de certas bebidas, e até a formação de “sociedades secretas” de experts em degustar licores e outras bobagens.
O tabaco é uma descoberta mais recente, mas foi rapidamente adotada como símbolo de status, de mentalidade sisuda e de sucesso econômico. Os entorpecentes, pelo contrário, foram importados inicialmente de Oriente, ou de países cálidos da América, cujas culturas eram desprezadas pelos brancos e cristãos. Usados primeiros por árabes, chineses e índios, depois foram consumidos por boêmios, artistas e hippies, tornando seu caráter “provocador” ainda mais incômodo. Claro que os tribunais não mencionam que os maiores consumidores de drogas caras são as altas elites, e que as enormes fortunas geradas por sua venda é lavada pelos grandes bancos. Os magnatas que fazem possível o tráfico de drogas são justamente aqueles que recebem permanentes benefícios das sentenças judiciais.
A perseguição contra as drogas, usada em vez de um racional esvaziamento do tráfico e de recuperação dos viciados, é uma das mais cínicas e infames encenações da justiça latino-americana, entre as muitas que cultua seu zelo inquisitorial.
A solução universal ao problema das drogas está muito próxima ao modelo holandês, que deve ser, no entanto, melhorado, colocando a distribuição direta das substâncias sob o controle das secretarias de saúde das comarcas, e não dos coffee shops que fazem a distribuição no varejo. Aliás, para a política de HM seria necessário um permanente monitoramento médico: embora não possam liberar-se drogas de maior poder ofensivo, como a cocaína e a heroína (vejam o diagrama acima), deve ter-se em conta que a redução de heroína para cocaína já é uma minimização de dano, e o risco deve ser assumido.
Os holandeses têm conseguido manter o consumo individual de maconha fora do poder dos grupos econômicos e os traficantes, mas isso pode não acontecer em outros países e é necessário garantir o caráter social e controlado da distribuição de droga. Muitos pensam, com enorme razão, que se a descriminalização da droga fosse adoptada no Brasil, logo apareceriam numerosos empresários fabricando “a melhor maconha do mundo”. Mas, isto é parte do mesmo problema: a corrupção do poder público e a ausência de um estado que faça algo diferente que espancar e torturar a população.
Nos experimentos que foram feitos na década de 1970 nos drug aids de Montreal (únicos dos que tenho algum conhecimento íntimo), a redução de dano para drogas pesadas variava entre 10 e 15% sem recidivas, e algo mais do que isso com recidivas esporádicas. Na época, os casos sem solução ainda eram maioria, mas dados que conheço de segunda mão mostram que há uma tendência a que o grau de recuperação seja cada vez maior.
Se no Brasil isto não acontece, as causas são fáceis de encontrar. Por um lado, a brutalidade da repressão força o tráfico a adquirir as formas mais violentas de criminalidade, o que não acontece em Canadá nem na Europa Ocidental, salvo na Itália e na Península Ibérica.
Quem duvida honestamente disso, precisa apenas pegar as estatísticas da Interpol, da DEA ou as notícias dos jornais sérios (especialmente britânicos), e verá que o tráfico nos países mais avançados da Europa e ínfimo, se comparado com o que existe na América Latina.
A desmoralização do tráfico deveria conseguir-se mediante o corte da lavagem de dinheiro nos grandes bancos. Isso explica a diferença entre, por exemplo, a Noruega (onde não há uma política tão liberal sobre drogas como na Holanda, mas o consumo de droga tem também diminuído), com a Espanha, onde o uso de drogas causa estragos e, ao mesmo tempo, é o país europeu onde os bancos são os maiores processadores de fundos do tráfico. Por sua própria natureza, a banca do mundo todo se enriquece com negócios criminosos como tráfico de armas e drogas, mas em alguns países existem alguns controles, dentro do que é possível no capitalismo.
Outro fator grave em Brasil é a desmedida corrupção judicial, policial e política (que também existe, em outras proporções, nos EEUU), que torna à polícia um distribuidor secundário daquela porcentagem da droga que “desapropria” dos traficantes. A atual política de repressão, não apenas contra o tráfico, como contra o uso, e até contra o emprego da palavra “maconha” (um fetichismo típico das mentalidades mais atrasadas e supersticiosas do século IX) o único que pode conseguir é tornar este país ainda mais violador dos direitos humanos. Atualmente, muitos pensarão que impossível ir mais longe, mas não nos enganemos.
O desprezo tradicional pelos direitos humanos, também se fez sentir na área das drogas, já que o viciado é uma vítima dos interesses que movem o tráfico. Em particular, os voluntários de grupos que lutam contra a adição e se esforçam por recuperar os viciados, se queixam da absoluta indiferença, quando não desprezo e até perseguição, das autoridades.
Entretanto, nestes últimos tempos surgiram algumas esperanças. Parece que a sociedade civil tenta se reorganizar, depois de décadas de combate aos direitos humanos, de ironias dos governos, de desmoralização dos movimentos sociais que nos últimos 15 anos se tornaram quase invisíveis. Uma manifestação de 4000 é muito para uma sociedade repressiva, paralisada, manipulada pela mídia e dominada por gangues teocráticas paleolíticas. O reconhecimento do STF da união civil gay é um sinal de que até esta instituição é capaz de entender que é difícil viver estando a contramão da humanidade e atuando apenas como servidor de castas tradicionais.
Pessoalmente, vejo provável um lento recuo do obscurantismo das instituições nacionais e um discreto avanço da mentalidade humanitária em algumas décadas. Quem viver, verá! Um passo importante para isto poderá ser a criação de um escritório de Anistia Internacional no Brasil ainda este ano, como fora anunciado pelo Secretariado Internacional, e pessoalmente por seu chefe Salil Shetty, na visita que fez ao país em maio.
Este será um grande desafio para o Conselho de nossa ONG, já que o Brasil oferece muitas dificuldades. O Brasil não é o país mais difícil do mundo, mas Anistia não está instalada em todos os países, senão apenas em 52 que oferecem moderadas garantias de poder trabalhar (isto não quer dizer que esses países sejam paraísos dos direitos humanos, mas, pelo menos, sua situação é tolerável).
Já uma tentativa anterior, em 1986, não teve sucesso. Nessa data, ativistas de Direitos Humanos obtiveram autorização de Londres para abrir uma seção no Brasil, que contou com alguns devotados militantes como Rodolfo Konder, José Arbex, Marcelo Centenaro, Claudia Duarte (atual responsável pela Rede de Ação Urgente em português), e alguns outros, entre eles, membros de Tortura Nunca Mais.
Mas, em pouco tempo, grupos empresariais bem organizados, com o apoio de alguns funcionários do 2º escalão da ditadura, da grande mídia e de setores confessionais, conseguiram tomar por assalto a organização, com um propósito duplo: (1) torna-la numa empresa lucrativa para eles (como fez a indústria do brinquedo, propagando falsas campanhas sobre os DH das crianças), (2) distorcendo a imagem dos DH, anulando assim os efeitos que a ONG pretendia ter sob a sociedade. Quando Londres percebeu a situação, através de denúncias que vários membros fizemos, apareceu também a sempre presente cumplicidade do judiciário, que impediu a dissolução da organização e se recusou a condenar os que usavam seu nome impropriamente. Só em 2001 foi possível fechar esta falsificação.
Confio em que, tendo em conta esse fato (o único fracasso da organização no mundo), e a presença de uma equipe que conhece bastante bem o Brasil, desta vez dê certo, porque a luta pelos direitos humanos no Brasil apenas está, por enquanto, na avançada constituição brasileira (cujos preceitos não se cumprem), e nos planos de DH, sempre sabotados pela direita. A luta real, institucional e física recém começa.