quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

EXPANDINDO A DISCUSSÃO SOBRE A IMPUNIDADE DOS TORTURADORES

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Em termos formais, o entendimento do jurista Carlos Weis sobre a condenação que o Brasil sofreu na Corte Interamericana de Direitos Humanos e a posição que deverá tomar face a ela é dos mais consistentes e embasados.

Então, como ponto de partida desta discussão, eu reproduzirei na íntegra seu artigo desta 4ª feira na Folha de S. Paulo:



DECISÃO JUDICIAL: CUMPRA-SE
Carlos Weis (*)
"Dadas suas recentes manifestações, a presidente da República vem indicando ter um compromisso decidido com a realização dos direitos humanos. Mas há um ponto sensível, que precisa ser enfrentado com firmeza: o pleno cumprimento da sentença condenatória proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Trata-se do caso Gomes Lund e outros, apresentado em 1995 pelo Centro pela Justiça e Direito Internacional (Cejil), pela Human Rights Watch/Americas e por familiares de pessoas desaparecidas na chamada 'Guerrilha do Araguaia', em que a Corte reconheceu a violação da Convenção Americana de Direitos Humanos como resultado das ações do Exército na década de 70.

Desde 1998, quando o país decidiu submeter-se às decisões daquele tribunal internacional, já sofreu outras três condenações, que, dadas suas dimensões e contexto, não se comparam à atual.

Agora, debruçando-se sobre fatos dolorosos da história recente do país, a Corte sentenciou que as disposições da Lei da Anistia são incompatíveis com a Convenção Americana e não podem impedir a investigação dos fatos e a identificação e punição de responsáveis por violações a direitos humanos.

Não bastasse ter jogado luz sobre as atrocidades do regime militar, a sentença é, em parte, oposta à recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que entendeu a citada lei como compatível com a Constituição e, portanto, de todo aplicável.

Apesar de algumas vozes terem se erguido contra a sentença internacional, o fato é que deve ser cumprida integralmente, não porque seja uma revisão do acórdão do STF (o que tecnicamente não é), ou porque ignore o imaginado acordo político que teria viabilizado a transição para a democracia, mas pelo fato de o Brasil ter, voluntariamente, reconhecido a competência da Corte Interamericana como obrigatória e de pleno direito para julgar denúncias formuladas contra si.

E, se palavra dada é palavra cumprida, o Brasil, por todos os seus órgãos, tem a obrigação de promover a imediata persecução criminal dos assassinos e torturadores do regime militar, cujos atos configuram "crimes de lesa-humanidade", sendo, assim, imprescritíveis.

Mais: deve tomar uma série de medidas, como reconhecer publicamente sua responsabilidade pelos fatos, tipificar o crime de desaparecimento forçado de pessoas, dar treinamento às Forças Armadas sobre direitos humanos etc., sem o que o país será vergonhosamente incluído no rol dos Estados para quem os direitos humanos só existem na medida de seus interesses.

Ainda que o acatamento das sentenças da Corte Interamericana seja novidade por aqui (a Suprema Corte da Argentina já o faz costumeiramente), importa reconhecer que a referida decisão oferece uma oportunidade de reencontro com o passado, como condição para a construção de uma sociedade verdadeiramente garantidora dos direitos humanos para todos.

O combate à tortura, que continua a existir para os presos comuns brasileiros, não pode mais esperar."
* mestre em direito pela USP, defensor público do Estado de São Paulo e coordenador do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo.
SINUCA DE BICO - Em termos políticos, no entanto, deve ser levado em conta que tudo isso deveria ter sido feito no momento da redemocratização do País, em 1985.

Não o foi por indesculpável omissão do Estado brasileiro.

Agora, estamos numa  sinuca de bico:
  • se processarmos as bestas-feras da ditadura de acordo com os procedimentos habituais do nosso Judiciário, extremamente lerdos e que facultam infinitas manobras protelatórias aos réus defendidos por bons advogados, nenhum deles estará vivo quando as sentenças condenatórias chegarem, finalmente, à fase de execução;
  • se, pelo contrário, impusermos trâmites diferenciados para tais casos, facilitaremos a vitimização de quem não merece compaixão nenhuma dos homens de bem.
Enfim, eu acredito que tudo deva ser apurado, todos os restos mortais resgatados, todas as culpas estabelecidas e todas as providências tomadas para evitar a repetição de ocorrências tão bestiais e hediondas.

Mas, temo que nossa insistência em aplicar punições concretas a tais indivíduos não só resulte vã como contraproducente, dando margem a um forte contra-ataque propagandístico da direita, que nos apresentará como rancorosos, vingativos, despóticos (no caso de introduzirmos trâmites legais diferenciados para estes casos) e desumanos (pela perseguição a velhinhos  com  o pé na cova).

Já se o Estado brasileiro decidir que eles são culpados mas deixar de puni-los por motivos humanitários (idade avançada) e como reconhecimento de sua própria incúria ao não ter agido como deveria no momento correto, a imagem que a opinião pública e os pósteros deles terão vai ser a pior possível: a de terríveis criminosos que, por mero acaso, não mofaram por muito tempo na prisão.

Receberão o que merecem, a execração eterna dos homens civilizados.

UM PONTO DE VISTA PESSOAL - Por último: eu sempre me guiei por meu próprio espírito de justiça e sempre fui fiel aos meus princípios, que valem para todas as situações, não oscilam ao sabor das circunstâncias.

Muito jovem, fiquei horrorizado com o que lia sobre a sanha vingativa dos israelenses, perseguindo ex-nazistas caquéticos, sequestrando-os em países como a Argentina, julgando-os em simulacros de tribunais e os linchando.

Não conseguia entender como alguém consegue odiar tanto, por tanto tempo, a ponto de igualar-se ao objeto de seu ódio, ao agir também ao arrepio das leis internacionais e das normas civilizadas.

Minha sensibilidade, meus instintos, são de um humanista e de um  brasileiro cordial.

Então, digamos, por piores que sejam os crimes cometidos por qualquer cidadão aos 20 anos, eu jamais concordarei com sua punição quando octogenário. Para mim, isto será vingança, olho por olho, dente por dente -- e não justiça.

Decidam o que decidirem os juristas, sempre defenderei o entendimento de que a prescrição dos crimes  é uma instituição da qual a civilização não pode abrir mão e que não comporta exceções.

Quando já passou tempo demais, o indivíduo está no fim da vida e não tem mais ânimo nem condições para reincidir, mais vale o deixarmos morrer em paz -- até para marcar bem a diferença entre humanos e desumanos.

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